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Primeira
versão do pai: inesquecível
D.
é uma mulher em torno dos seus 40 anos, profissional liberal
bem sucedida, casada há uns 20 anos e mãe de dois filhos
adolescentes. O encontro com um "namorado" de adolescência
em uma festa que reuniu a sua antiga turma de colégio secundário,
e o fato de ter "ficado" com ele, funcionou como um
esbarrão no real que, além de desarranjar, colocou em questão
aquilo que ela tão cuidadosamente construíra nos últimos
tempos, seja a nível familiar, seja a nível profissional. A
partir deste real, 'real do sexo', ela vai se re-interrogar
sobre “quem ela é” e sobre “o que quer”.
Isso a leva a demandar uma segunda fatia de análise, já
que passara pela experiência de uma primeira análise que
durara alguns anos e que ela dera como concluída.
O
encontro com o “namorado” da adolescência — alguém quem
ela desejou, mas que evitou namorar — fez com que D.
retornasse a uma época de sua vida que julgava resolvida,
levando-a a "remexer no baú" e a fazer sair dele as
dificuldades que tivera com o pai durante alguns e longos anos
de sua vida. Seu pai, sujeito a altos e baixos, a insultava e
humilhava nas suas tentativas de ter uma vida afetiva, ao mesmo
tempo em que se orgulhava de seu desempenho escolar.
O
reencontro com esse amor, marcado na adolescência pelo impossível,
deu lugar a sentimentos de culpa, de expectativa e a
auto-recriminações, uma vez que ela lastima ter se exposto
perante os outros ao ter "ficado" com ele; no entanto,
o efeito maior desse encontro foi o de produzir um retorno ao
passado, uma espécie de adesividade ou de fixação ao passado.
A partir daí, poderíamos dizer que D. "sofre de reminiscências",
reminiscências que a ocupam de tal modo que as pessoas de sua
convivência cotidiana vêm se incomodando com as suas mudanças:
tomada por lembranças, ela muitas vezes se afasta de atividades
que lhe eram cotidianas, e isso perturba as pessoas que lhe são
próximas. Em frente a essa versão do Outro Paterno, e ao modo
como ela absorve o sujeito, evocamos Freud quando define como
histérico aquele sujeito que "sofre de reminiscências".
Neste sentido, no baú da histérica encontramos o pai e ele
parece inesquecível.
A
hipótese de que o sofrimento por reminiscências é a causa da
histeria localiza-se nos primeiros escritos freudianos. A
primeira formulação da expressão, salvo engano, encontra-se
em "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos:
comunicação preliminar", escrita por Breuer e Freud em
1893. A questão é apresentada nos seguintes termos:
"[...]
podemos inverter a máxima 'cessante causa cessat effectus'
['cessando a causa cessa o sofrimento'] e concluímos dessas
observações que o processo determinante continua a atuar de
uma maneira ou de outra durante anos ¾não
indiretamente, através de uma corrente de elos causais
intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora ¾
da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no
estado de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito
após o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências."
(Freud, 1893, p.
48)
Para
explicar a sobrevivência dessas lembranças, que parecem não
estar sujeitas a um desgaste ou esvaecimento, Freud e Breuer
sustentam que "um corpo estranho" opera
incessantemente como causa estimulante da doença até que o
sujeito se liberte dele ou, em outros termos, "os pacientes
histéricos sofrem de traumas psíquicos incompletamente
ab-reagidos". (Ibid.,
p. 47;50)
À
guisa de exemplo, Freud menciona o caso da mãe de uma criança
adoentada que, quando o filho adormeceu, concentrou toda a sua
força de vontade em manter-se imóvel a fim de não acordá-la.
Por causa disso, produziu um ruído estalejante com a língua
(um exemplo de contra-vontade histérica) que se repetiu numa
ocasião subseqüente, na qual ela desejava manter-se
perfeitamente imóvel. Daí surgiu “um tique que, sob a forma
de um estalido com a língua, ocorreu durante um período de
muitos anos sempre que se sentia excitada". (Ibid.,
p. 45)
Para
os autores da “Comunicação Preliminar”, o trauma psíquico
(a doença do filho) — ou mais precisamente a lembrança do
trauma — atua como um corpo estranho que, mesmo muito depois
de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente
provocador, pois ainda se acha em ação. (Ibid.,
p. 46) Freud, que nos idos de 1893 está apresentando a sua
terapêutica ao mundo científico, sugere então que "o
processo psíquico que originalmente ocorreu deve ser levado de
volta ao seu status
nascendi e então receber expressão verbal." (Ibid., p.47) Portanto, é preciso que o sujeito evoque a
lembrança do fato (a doença do filho) que provocou o sintoma
(o estalido com a língua) e desperte a emoção que o
acompanhou, traduzindo-a em palavras.
Para
o psicanalista dos Estudos
sobre a Histeria, se a reação foi reprimida, a emoção
permanece vinculada à lembrança e, nesse sentido, ab-reagir,
isto é, reagir posteriormente, pode implicar em ir "das lágrimas
a atos de vingança". (Ibid.,
p. 48). Todavia, continua ele, "a linguagem serve de
substituto para a ação, [...] falar é por si mesmo o reflexo
adequado, quando, por ex., essa fala corresponde a um lamento ou
a enunciação de um segredo atormentador, por ex., uma confissão."
(Ibid.) Ele observa
que a linguagem reconhece a distinção entre uma ofensa que foi
revivida, até mesmo por meio de palavras, e aquela que teve que
ser aceita. Curiosamente, ele destaca o fato de que o uso lingüístico
descreve uma injúria que foi sofrida em silêncio como “uma
mortificação” (Kränkung), termo que, em alemão, se presta a um jogo significante
com o “fazendo adoecer”. (Ibid.,
p. 49)
Essas
manifestações levam Freud (1893) a postular que a divisão da
consciência, tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob
a forma de double
conscience, encontram-se presente num grau rudimentar na
histeria. (Ibid.,
p. 53) Assim, “um grave trauma (tal como ocorre na neurose
traumática) ou uma supressão laboriosa (como de uma emoção
sexual, por ex.) pode ocasionar uma separação de grupos de idéias
mesmo em pessoas que são, sob outros aspectos, não afetadas; e
isso seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida.” (Ibid.,
p. 52) Em vista disso, o psicanalista conclui que, “se a
lembrança do trauma psíquico deve ser considerada tão atuante
quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho, muito
depois da sua entrada forçosa, e se, não obstante, o paciente
não tem nenhuma consciência de tais lembranças ou do
surgimento delas — então devemos admitir que idéias
inconscientes existem e são atuantes.” (Ibid.,
p. 276)
Freud
mostra "os poderes da palavra". Se o esquecimento vai
ganhar o estatuto de ato falho e fazer parte das formações do
inconsciente, as reminiscências parecem ter nesse momento
estatuto semelhante uma vez que são determinadas de modo
inconsciente: — o sintoma não surge ligado a impressões
recentes, mas em conexão com lembranças das mesmas. (Ibid.,
p. 218) O que se atesta aí, digamos, agora em uma linguagem
lacaniana, não é senão a divisão do sujeito. Existe um ‘não
saber’ em jogo e ele divide o sujeito. Existe, além disso,
uma descontinuidade psíquica e temporal da causa ao efeito,
isto é, há uma hiância entre S1 (o trauma ou a emoção
sexual) e S2 (a lembrança) de tal modo que é a retroação de
S2 sobre S1 que faz com que S1 sofra o efeito de recalcamento.
Em outros termos: o esquema da significação em geral, no qual
só ao final do discurso pode-se perceber o que ele visava desde
o início e da temporalidade do sintoma histérico é aquele do a
posteriori (Vinciguerra, 1994, p. 47-48).
A
afirmação de que “os histéricos sofrem de reminiscências”
é reescrita na seqüência da teoria freudiana nos trabalhos
sobre A Interpretação de
Sonhos e sobre a Metapsicologia (principalmente no texto
“O inconsciente”). Pode-se
supor que a concepção do desejo como indestrutível levou
Freud à conclusão de que o inconsciente ignora o tempo. No
entanto, cabe indagar e, até mesmo, colocar a trabalho a
possibilidade do sujeito livrar-se dessa atemporalidade do
inconsciente, uma vez que as reminiscências, assim sustentadas,
abrem caminho para a repetição. Em vista disso, deparamo-nos
com a questão: seria a histérica capaz de esquecer-se desse
pai, até então inesquecível?
Segunda
versão do pai: pecador
Dora:
“Sou filha de meu pai. Tenho um catarro , exatamente como ele.
Ele me fez ficar doente, como fez também a Mamãe. É por causa
dele que tenho essas paixões selvagens, que são punidas pela
doença.” (Freud,
1905[1901], p. 79-80)
Lacan:
“O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da
lei — mas a herança do pai é aquilo que nos designa
Kierkegaard, é seu pecado”. (Lacan,
1964, p. 38)
Retomemos
o caso de nossa ‘histérica que sofre de reminiscências’.
Em uma sessão surgem na série associativa os significantes
“chave” e “tempo”, significantes que a levaram a
perceber que “a chave estava no tempo”. Essa sessão
concluiu-se aí, e na seguinte, ela trouxe o que foi uma cena
constante na sua infância e adolescência: as bebedeiras do
pai. Calculava-se o
tempo que ele gastava bebendo, porque, depois, ele apagava e
quando acordava, antes que bebesse de novo, era terrível; caso
se entrava em casa neste preciso momento, corria-se o risco de
levar um rádio na cabeça ou qualquer outra coisa. Ele atirava
o que estivesse a seu alcance. Tudo girava, pois em torno desse
tempo paterno, tempo de tensão e distensão da satisfação
pulsional trazida pelo objeto oral presentificado pela bebida. A
questão era a de saber “qual a boa hora de chegar em casa?”
e, caso se chegasse antes, era preciso ter o cuidado de ficar na
garagem, ou mesmo pelas escadas e corredores, de modo a
respeitar o tempo das bebedeiras paternas. O “Outro tempo”
leva, portanto, a esse tempo do Outro, do Outro Paterno.
Encontramos aí a histérica e seu Outro, seu Outro cujo desejo
ela sustenta por procuração, chegando até mesmo, em um certo
tempo de sua vida, a beber em demasia. A própria liberdade para
ficar com o antigo “namorado” teria sido favorecida pela
bebida.
Se
é verdade que o inconsciente freudiano ignora o tempo, não se
pode dizer o mesmo em relação à pulsão. “Os textos de
Freud sobre a pulsão não são homogêneos àqueles sobre o
inconsciente, no que tange à questão do tempo. Freud não diz
que a pulsão está fora do tempo, mas que ela implica um tempo
de tensão e, em decorrência, um tempo de distensão — tensão
e distensão da satisfação pulsional” (Soler,
s/d, s/p).
Quanto
à pulsão é interessante dizer, com Lacan, que Freud nos
introduz a ela “fazendo uso a todo momento dos recursos de língua,
e não hesitando em se fundar em algo que só tem pertinência a
certos sistemas lingüísticos, as três vias, ativas, passivas,
e reflexivas”.(Lacan,
1964, p. 168) Por conseguinte, podemos concluir que o tempo
pulsional é o tempo da gramática, o que nos leva a falar em
uma gramática pulsional. A conjugação desses tempos
gramaticais possibilita ao sujeito construir uma resposta sobre
o objeto que ele é no desejo do Outro. Assim, “se onde estava
o significante advém a castração, onde estava o ser uma parte
de saber advém” (Soler,
s/d, s/p)1.
Em
uma referência a esses tempos pulsionais —ativo, passivo,
reflexivo—poderíamos dizer, sorver, ser sorvido, se fazer
sorver, numa referência à pulsão oral desse pai que sabia se
fazer intragável. Estão em jogo aí não apenas o sujeito
dividido e sintomatizado (S/), não apenas o simbólico através
do qual o sujeito recebe a sua mensagem de modo invertido e no a
posteriori, mas também o objeto a em sua vertente
mais-de-gozar. Pelo que tudo indica, ele se apresenta aí através
do objeto oral, mais-de-gozar desse pai alcoólatra que dá as
coordenadas temporais da vida e do desejo dessa família e que
faz com que sua filha fique ab-sorvida pelas suas reminiscências.
Jacques
Alain-Miller, em suas conferências sobre A
erótica do tempo, afirma que:
“o
sujeito dividido é um efeito do significante absolutamente dócil
às cadeias sucessivas de significantes, [portanto, à
temporalidade], enquanto o objeto ‘a’ é um produto, um
resto e, como tal, manifesta, encarna a inércia do gozo. É ao
objeto a que podemos atribuir os fenômenos de desaceleração
do tempo e, correlativamente, a inversão desses fenômenos em
aceleração.” Assim, “o objeto a é o fator que
desregula o desenrolar uniforme do tempo. O sujeito barrado não
desregula o tempo, ele desregula o pensamento.” (Miller,
2000, p. 67)
Se,
ainda nos termos de Miller, a afirmação psicanalítica de que
o inconsciente não conhece o tempo “se inscreve no esforço
freudiano para demonstrar que o inconsciente é um ser real” (Ibid.,
p.28), podemos finalizar dizendo tratar-se para essa analisante
de perlaborar essa atemporalidade, através da qual ela sustenta
o amor ao pai e um passado de excesso, de excesso pulsional como
alvo passivo. Nesse sentido, parece oportuna a idéia de que o
sujeito histérico possa tomar a herança paterna e fazer com
ela qualquer coisa de próprio.
Texto recebido em: 11/03/2007.
Aprovado em: 10/04/2007.
Nota
1.
Lacan falará posteriormente em 'lógica' e não em 'gramática'
do fantasma. Poderíamos interrogar então como articular o
tempo e a lógica do fantasma. Temos aí uma questão para uma
investigação posterior.
Referências
Bibliográficas
FREUD,
Sigmund. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago , 1974.
_____________
(1893) Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação
preliminar. Estudos sobre a histeria. v. II;
_____________
(1893) Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos:
uma conferência. v. III;
_____________
(1900) Um sonho é a realização de um desejo. V.IV;
_____________
(1905 [1901]) Fragmento da análise de um caso de histeria. V.
VII;
_____________
(1915) O inconsciente. V.XIV.
LACAN,
J. (1964) O seminário:
Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988.
MILLER,
Jacques-Alain (2000). A
erótica do tempo. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de
Psicanálise.
SOLER,
C. O tempo em análise. Conferência pronunciada na Biblioteca
Freudiana Brasileira. São Paulo. Inédita.
VINCIGUERRA,
Rose Paule. Le temps
propres à l’hystérie chez Freud. Le
temps fait symptôme. La
Cause Freudienne, Revue de Psychanalyse. Paris: Navarin Editeur,
1994.
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