topo_index
titulo_esq_interno titulo_interno_clinica
                                                                                                                                                  

VERSÕES DO PAI NA HISTERIA

 



Márcia Maria Vieira Rosa
Doutora em Letras pela UFMG
Professora do Curso de Especialização em Psicologia da UNILESTEMG

Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Membro da Associação Mundial de Psicanálise

marcia.rosa@globo.com

Resumo:

A partir de um fragmento clínico, este texto se propõe a examinar a construção de duas versões do pai - inesquecível e pecador—, interrogando os fantasmas da analisanda acerca do vínculo conjugal em sua família. Trata-se circunscrever os efeitos de seus fantasmas em sua vida amorosa, bem como de investigar a possibilidade de ultrapassá-los.

Palavras-chave: função paterna, histeria, conjugalidade, família

 

 

 

VERSIONS OF THE FATHER IN HISTERYA

 

Abstract

From a clinical fragment, this text is willing to examine the construction of two versions of the father – unforgettable and skinner - , questioning the pacient’s ghosts on the conjugal bond in her family. It means to circumscribe the effects of her love life, as well as to investigate the likelihood of overstepping them.

Keywords: fatherly hole, hysteria, conjugality, family

 

Primeira versão do pai: inesquecível

D. é uma mulher em torno dos seus 40 anos, profissional liberal bem sucedida, casada há uns 20 anos e mãe de dois filhos adolescentes. O encontro com um "namorado" de adolescência em uma festa que reuniu a sua antiga turma de colégio secundário, e o fato de ter "ficado" com ele, funcionou como um esbarrão no real que, além de desarranjar, colocou em questão aquilo que ela tão cuidadosamente construíra nos últimos tempos, seja a nível familiar, seja a nível profissional. A partir deste real, 'real do sexo', ela vai se re-interrogar sobre “quem ela é” e sobre “o que quer”.  Isso a leva a demandar uma segunda fatia de análise, já que passara pela experiência de uma primeira análise que durara alguns anos e que ela dera como concluída.

O encontro com o “namorado” da adolescência — alguém quem ela desejou, mas que evitou namorar — fez com que D. retornasse a uma época de sua vida que julgava resolvida, levando-a a "remexer no baú" e a fazer sair dele as dificuldades que tivera com o pai durante alguns e longos anos de sua vida. Seu pai, sujeito a altos e baixos, a insultava e humilhava nas suas tentativas de ter uma vida afetiva, ao mesmo tempo em que se orgulhava de seu desempenho escolar.

O reencontro com esse amor, marcado na adolescência pelo impossível, deu lugar a sentimentos de culpa, de expectativa e a auto-recriminações, uma vez que ela lastima ter se exposto perante os outros ao ter "ficado" com ele; no entanto, o efeito maior desse encontro foi o de produzir um retorno ao passado, uma espécie de adesividade ou de fixação ao passado. A partir daí, poderíamos dizer que D. "sofre de reminiscências", reminiscências que a ocupam de tal modo que as pessoas de sua convivência cotidiana vêm se incomodando com as suas mudanças: tomada por lembranças, ela muitas vezes se afasta de atividades que lhe eram cotidianas, e isso perturba as pessoas que lhe são próximas. Em frente a essa versão do Outro Paterno, e ao modo como ela absorve o sujeito, evocamos Freud quando define como histérico aquele sujeito que "sofre de reminiscências". Neste sentido, no baú da histérica encontramos o pai e ele parece inesquecível.

A hipótese de que o sofrimento por reminiscências é a causa da histeria localiza-se nos primeiros escritos freudianos. A primeira formulação da expressão, salvo engano, encontra-se em "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar", escrita por Breuer e Freud em 1893. A questão é apresentada nos seguintes termos:

"[...] podemos inverter a máxima 'cessante causa cessat effectus' ['cessando a causa cessa o sofrimento'] e concluímos dessas observações que o processo determinante continua a atuar de uma maneira ou de outra durante anos ¾não indiretamente, através de uma corrente de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora ¾ da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no estado de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito após o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências." (Freud, 1893, p. 48)

Para explicar a sobrevivência dessas lembranças, que parecem não estar sujeitas a um desgaste ou esvaecimento, Freud e Breuer sustentam que "um corpo estranho" opera incessantemente como causa estimulante da doença até que o sujeito se liberte dele ou, em outros termos, "os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos incompletamente ab-reagidos". (Ibid., p. 47;50)

À guisa de exemplo, Freud menciona o caso da mãe de uma criança adoentada que, quando o filho adormeceu, concentrou toda a sua força de vontade em manter-se imóvel a fim de não acordá-la. Por causa disso, produziu um ruído estalejante com a língua (um exemplo de contra-vontade histérica) que se repetiu numa ocasião subseqüente, na qual ela desejava manter-se perfeitamente imóvel. Daí surgiu “um tique que, sob a forma de um estalido com a língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que se sentia excitada". (Ibid., p. 45)

Para os autores da “Comunicação Preliminar”, o trauma psíquico (a doença do filho) — ou mais precisamente a lembrança do trauma — atua como um corpo estranho que, mesmo muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente provocador, pois ainda se acha em ação. (Ibid., p. 46) Freud, que nos idos de 1893 está apresentando a sua terapêutica ao mundo científico, sugere então que "o processo psíquico que originalmente ocorreu deve ser levado de volta ao seu status nascendi e então receber expressão verbal." (Ibid., p.47) Portanto, é preciso que o sujeito evoque a lembrança do fato (a doença do filho) que provocou o sintoma (o estalido com a língua) e desperte a emoção que o acompanhou, traduzindo-a em palavras.

Para o psicanalista dos Estudos sobre a Histeria, se a reação foi reprimida, a emoção permanece vinculada à lembrança e, nesse sentido, ab-reagir, isto é, reagir posteriormente, pode implicar em ir "das lágrimas a atos de vingança". (Ibid., p. 48). Todavia, continua ele, "a linguagem serve de substituto para a ação, [...] falar é por si mesmo o reflexo adequado, quando, por ex., essa fala corresponde a um lamento ou a enunciação de um segredo atormentador, por ex., uma confissão." (Ibid.) Ele observa que a linguagem reconhece a distinção entre uma ofensa que foi revivida, até mesmo por meio de palavras, e aquela que teve que ser aceita. Curiosamente, ele destaca o fato de que o uso lingüístico descreve uma injúria que foi sofrida em silêncio como “uma mortificação” (Kränkung), termo que, em alemão, se presta a um jogo significante com o “fazendo adoecer”. (Ibid., p. 49)

Essas manifestações levam Freud (1893) a postular que a divisão da consciência, tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de double conscience, encontram-se presente num grau rudimentar na histeria. (Ibid., p. 53) Assim, “um grave trauma (tal como ocorre na neurose traumática) ou uma supressão laboriosa (como de uma emoção sexual, por ex.) pode ocasionar uma separação de grupos de idéias mesmo em pessoas que são, sob outros aspectos, não afetadas; e isso seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida.” (Ibid., p. 52) Em vista disso, o psicanalista conclui que, “se a lembrança do trauma psíquico deve ser considerada tão atuante quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho, muito depois da sua entrada forçosa, e se, não obstante, o paciente não tem nenhuma consciência de tais lembranças ou do surgimento delas — então devemos admitir que idéias inconscientes existem e são atuantes.” (Ibid., p. 276)

Freud mostra "os poderes da palavra". Se o esquecimento vai ganhar o estatuto de ato falho e fazer parte das formações do inconsciente, as reminiscências parecem ter nesse momento estatuto semelhante uma vez que são determinadas de modo inconsciente: — o sintoma não surge ligado a impressões recentes, mas em conexão com lembranças das mesmas. (Ibid., p. 218) O que se atesta aí, digamos, agora em uma linguagem lacaniana, não é senão a divisão do sujeito. Existe um ‘não saber’ em jogo e ele divide o sujeito. Existe, além disso, uma descontinuidade psíquica e temporal da causa ao efeito, isto é, há uma hiância entre S1 (o trauma ou a emoção sexual) e S2 (a lembrança) de tal modo que é a retroação de S2 sobre S1 que faz com que S1 sofra o efeito de recalcamento. Em outros termos: o esquema da significação em geral, no qual só ao final do discurso pode-se perceber o que ele visava desde o início e da temporalidade do sintoma histérico é aquele do a posteriori (Vinciguerra, 1994, p. 47-48).

A afirmação de que “os histéricos sofrem de reminiscências” é reescrita na seqüência da teoria freudiana nos trabalhos sobre A Interpretação de Sonhos e sobre a Metapsicologia (principalmente no texto “O inconsciente”). Pode-se supor que a concepção do desejo como indestrutível levou Freud à conclusão de que o inconsciente ignora o tempo. No entanto, cabe indagar e, até mesmo, colocar a trabalho a possibilidade do sujeito livrar-se dessa atemporalidade do inconsciente, uma vez que as reminiscências, assim sustentadas, abrem caminho para a repetição. Em vista disso, deparamo-nos com a questão: seria a histérica capaz de esquecer-se desse pai, até então inesquecível?

 

Segunda versão do pai: pecador

Dora: “Sou filha de meu pai. Tenho um catarro , exatamente como ele. Ele me fez ficar doente, como fez também a Mamãe. É por causa dele que tenho essas paixões selvagens, que são punidas pela doença.” (Freud, 1905[1901], p. 79-80)

Lacan: “O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei — mas a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado”. (Lacan, 1964, p. 38)

Retomemos o caso de nossa ‘histérica que sofre de reminiscências’. Em uma sessão surgem na série associativa os significantes “chave” e “tempo”, significantes que a levaram a perceber que “a chave estava no tempo”. Essa sessão concluiu-se aí, e na seguinte, ela trouxe o que foi uma cena constante na sua infância e adolescência: as bebedeiras do pai.  Calculava-se o tempo que ele gastava bebendo, porque, depois, ele apagava e quando acordava, antes que bebesse de novo, era terrível; caso se entrava em casa neste preciso momento, corria-se o risco de levar um rádio na cabeça ou qualquer outra coisa. Ele atirava o que estivesse a seu alcance. Tudo girava, pois em torno desse tempo paterno, tempo de tensão e distensão da satisfação pulsional trazida pelo objeto oral presentificado pela bebida. A questão era a de saber “qual a boa hora de chegar em casa?” e, caso se chegasse antes, era preciso ter o cuidado de ficar na garagem, ou mesmo pelas escadas e corredores, de modo a respeitar o tempo das bebedeiras paternas. O “Outro tempo” leva, portanto, a esse tempo do Outro, do Outro Paterno. Encontramos aí a histérica e seu Outro, seu Outro cujo desejo ela sustenta por procuração, chegando até mesmo, em um certo tempo de sua vida, a beber em demasia. A própria liberdade para ficar com o antigo “namorado” teria sido favorecida pela bebida.

Se é verdade que o inconsciente freudiano ignora o tempo, não se pode dizer o mesmo em relação à pulsão. “Os textos de Freud sobre a pulsão não são homogêneos àqueles sobre o inconsciente, no que tange à questão do tempo. Freud não diz que a pulsão está fora do tempo, mas que ela implica um tempo de tensão e, em decorrência, um tempo de distensão — tensão e distensão da satisfação pulsional” (Soler, s/d, s/p).

Quanto à pulsão é interessante dizer, com Lacan, que Freud nos introduz a ela “fazendo uso a todo momento dos recursos de língua, e não hesitando em se fundar em algo que só tem pertinência a certos sistemas lingüísticos, as três vias, ativas, passivas, e reflexivas”.(Lacan, 1964, p. 168) Por conseguinte, podemos concluir que o tempo pulsional é o tempo da gramática, o que nos leva a falar em uma gramática pulsional. A conjugação desses tempos gramaticais possibilita ao sujeito construir uma resposta sobre o objeto que ele é no desejo do Outro. Assim, “se onde estava o significante advém a castração, onde estava o ser uma parte de saber advém” (Soler, s/d, s/p)1.

Em uma referência a esses tempos pulsionais —ativo, passivo, reflexivo—poderíamos dizer, sorver, ser sorvido, se fazer sorver, numa referência à pulsão oral desse pai que sabia se fazer intragável. Estão em jogo aí não apenas o sujeito dividido e sintomatizado (S/), não apenas o simbólico através do qual o sujeito recebe a sua mensagem de modo invertido e no a posteriori, mas também o objeto a em sua vertente mais-de-gozar. Pelo que tudo indica, ele se apresenta aí através do objeto oral, mais-de-gozar desse pai alcoólatra que dá as coordenadas temporais da vida e do desejo dessa família e que faz com que sua filha fique ab-sorvida pelas suas reminiscências.

Jacques Alain-Miller, em suas conferências sobre A erótica do tempo, afirma que:

“o sujeito dividido é um efeito do significante absolutamente dócil às cadeias sucessivas de significantes, [portanto, à temporalidade], enquanto o objeto ‘a’ é um produto, um resto e, como tal, manifesta, encarna a inércia do gozo. É ao objeto a que podemos atribuir os fenômenos de desaceleração do tempo e, correlativamente, a inversão desses fenômenos em aceleração.” Assim, “o objeto a é o fator que desregula o desenrolar uniforme do tempo. O sujeito barrado não desregula o tempo, ele desregula o pensamento.” (Miller, 2000, p. 67)

Se, ainda nos termos de Miller, a afirmação psicanalítica de que o inconsciente não conhece o tempo “se inscreve no esforço freudiano para demonstrar que o inconsciente é um ser real” (Ibid., p.28), podemos finalizar dizendo tratar-se para essa analisante de perlaborar essa atemporalidade, através da qual ela sustenta o amor ao pai e um passado de excesso, de excesso pulsional como alvo passivo. Nesse sentido, parece oportuna a idéia de que o sujeito histérico possa tomar a herança paterna e fazer com ela qualquer coisa de próprio.  

Texto recebido em: 11/03/2007.

Aprovado em: 10/04/2007.

Nota

1. Lacan falará posteriormente em 'lógica' e não em 'gramática' do fantasma. Poderíamos interrogar então como articular o tempo e a lógica do fantasma. Temos aí uma questão para uma investigação posterior.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago , 1974.

_____________ (1893) Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. Estudos sobre a histeria. v. II;

_____________ (1893) Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. v. III;

_____________ (1900) Um sonho é a realização de um desejo. V.IV;

_____________ (1905 [1901]) Fragmento da análise de um caso de histeria. V. VII;

_____________ (1915) O inconsciente. V.XIV.

LACAN, J. (1964) O seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988.

MILLER, Jacques-Alain (2000). A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise.

SOLER, C. O tempo em análise. Conferência pronunciada na Biblioteca Freudiana Brasileira. São Paulo. Inédita.

VINCIGUERRA, Rose Paule. Le temps propres à l’hystérie chez Freud. Le temps fait symptôme. La Cause Freudienne, Revue de Psychanalyse. Paris: Navarin Editeur, 1994.