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Tania Coelho
dos Santos
taniacs@openlink.com.br
O
discurso da ciência prospera, liberando os indivíduos das
amarras da autoridade e da tradição,
dispensando os pais das funções de proibição e autorização
junto a seus filhos. Há famílias recompostas e uma grande
reinvenção dos direitos e deveres parentais em curso.
Discute-se o direito à homoparentalidade. Pergunta-se se as famílias
monoparentais são carentes. Haveria, entretanto, um conceito
psicanalítico de família? Segundo Jacques-Alain Miller a família
é constituída pelo Nome do Pai, pelo desejo da mãe e o objeto
a. A família não é
um conjunto de laços ou deveres, ela é essencialmente unida
por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo?
Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um
segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe?
Como
manejar essas letras que designam, sem confundir, os lugares da
mulher e do desejo da mãe; do homem e do Nome do pai; do objeto
a e da criança?
Margareth Pires do Couto e Ana Lydia Santiago apontam o fracasso
das utopias comunitárias que supunham poder dispensar a família
na constituição psíquica pois, como afirma Lacan, há uma função
de resíduo exercida pela família, a despeito de todas as
transformações em sua forma de organização, que assegura a
ela uma transmissão irredutível. Essa transmissão não é da
ordem das necessidades e da realidade e sim de uma dimensão
simbólica, mais precisamente, de um desejo que não seja anônimo.
As autoras sublinham a posição de Lacan (2003, p. 369) em
“Nota sobre a criança”: “A função de resíduo exercida
(e ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução
das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão
– que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações
das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva,
implicando a relação com um desejo que não seja anônimo. [§]
É por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do
pai. Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de
um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de
suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o
vetor de uma encarnação da Lei no desejo.” As autoras
concluem que desse modo, ele desloca a função da família de
uma transmissão da cultura para um dispositivo de transmissão
do desejo e de contenção do gozo, ou seja, de transmissão da
castração.
Serge
Cottet traz à discussão o tema das famílias recompostas
enfrentando a difícil questão em jogo, seja nas adoções,
seja no exercício da parentalidade substitutiva: é a mesma
coisa se uma criança tem sua própria mãe ou é criada pela mãe
do vizinho? E quanto ao pai? O pai é uma função simbólica e
aquele que a encarna é substituível? Serge Cottet insiste que
não. Recorda que se o pai não se confunde com genitor, é
porque o que conta para um sujeito, em sua fantasia, é o desejo
em jogo na sua concepção. O segredo de sua origem, o fato de
que tenha sido ou não desejado, é o cenário que não se reduz
à filiação biológica, mas que não é separável dela.
Catarina
Coelho dos Santos resenhou o romance clássico Sans
Famille, de Hector Malot, sobre o longo périplo de uma
criança desgarrada, adotada por várias famílias substitutas,
até encontrar sua família consangüínea. Estruturado nos
moldes dos romances familiares dos adolescentes, retrata a questão
central sobre a criança, como objeto a:
é a mesma coisa ter a sua própria família ou uma família
adotiva? Em sua resenha, ela conclui que a legislação
brasileira contemporânea não redefine a família, apenas
regulamenta as suas novas formas «substitutas» da consangüínea
sem destituir por completo a família «natural» de sua posição
de núcleo estruturador da vida social.
A
psicanálise entende por laço social e por conseguinte, por laço
familiar: um discurso sem palavras. Hebe Tízio ressalta que na
perspectiva sociológica a civilização introduz o gozo no laço
social sintomatizado, faz cidadãos conforme os modelos aceitáveis.
Na perspectiva da psicanálise, a civilização tem a ver com o
discurso. Para Lacan, o discurso excede a palavra, vai mais além
dos enunciados que realmente se pronunciam. O discurso subsiste
sem palavras porque se trata de relações fundamentais que se
sustentam da linguagem. O discurso sustenta a realidade, a
modela sem supor o consentimento por parte do sujeito.
Sílvia
Tendlarz destaca a mudança na formalização lacaniana sobre o
pai, depois da introdução do objeto a . É o pecado do pai, e não suas virtudes, que impulsiona a
idealização: estratégia para salvar o pai do desejo,
elevando-o ao pai do amor. Márcia Rosa Vieira, a partir de um
fragmento clínico, se propõe a examinar a construção dessas
duas versões do pai — inesquecível e pecador —,
interrogando os fantasmas de uma analisanda acerca do vínculo
conjugal em sua família.
No
último ensino de Lacan, o pai digno de ser amado e respeitado
enquanto tal, é um homem vivo e encarnado que coloca uma mulher
no lugar de objeto a.
Márcia Zucchi revela toda a importância desse deslocamento da
função do pai na teoria psicanalítica para a abordagem dos
novos sintomas. Uma anorexia do início do século, por exemplo,
não poderia ser considerada do mesmo modo que hoje quando o
Outro não é mais consistente, e sim localizado. O sintoma
psicanalítico foi pensado por Freud como a mensagem
inconsciente dirigida pelo sujeito ao Outro da cultura
representado na figura paterna idealizada. É preciso encontrar
os modos singulares de relação do sujeito contemporâneo ao
pai - enquanto lei que organiza a relação do sujeito ao real
– pois não existem mais ideais universais de identificação.
Simone
Bianchi também se pergunta sobre um novo sintoma, a
hiperatividade. Ela sustenta que ele diz respeito àquilo que a
criança realiza como objeto a
da fantasia familiar. A família contemporânea se estrutura
menos em torno do pai como ideal e muito mais em torno da criança
como objeto a . A família
não se constitui mais a partir da metáfora paterna, fase clássica
do complexo de Édipo; e sim pela maneira como a criança é o
objeto de gozo da família, não somente da mãe, mas da família
e da civilização. A criança é o objeto a
liberado, produto.
Éric
Laurent, em sua entrevista “Como criar a los ninõs”, ao
Jornal La Nación, enfrenta essa questão dos transtornos
escolares, sublinhando que são efeitos do novo papel que a
escola e os professores vêm concentrando sobre si por dois
motivos. Primeiramente, a generalização de um modelo único de
educação para todas as crianças, conseqüência da igualdade
de direitos. Em segundo lugar, a redução do tempo de convivência
entre mães e filhos, fruto do trabalho extradoméstico das
mulheres. A televisão tornou-se o ritual comum à família. Mas
a televisão não é a oração comum da tradição, aquela que
permitia vincular os membros da família através dos rituais.
Quando o único ritual é a televisão, comer diante dela, falar
sobre ela ou ficar em silêncio diante desse aparato, isto
permite articular pouco a posição do pai entre proibição e
autorização.
A
juíza Inês Joaquina Coutinho se pergunta: a separação do
casal ou a família mono-parental pode contribuir para a prática
de atos infracionais pelos filhos? A resposta, lamentável e
preocupante, é positiva. Sua larga experiência na jurisdição
infanto-juvenil demonstra esta realidade. Marcela Decourt
entrevistou a professora e psicóloga clínica Terezinha Féres
que deu seu testemunho favorável sobre a experiência das famílias
recompostas. Ela acredita que as crianças das novas famílias são
mais criativas e que a separação dos casais não contribui,
necessariamente, para o desajustamento infanto-juvenil.
Rachel
Amin Freitas resenha a coletânea de trabalhos de Jenny Aubry, Psicanálise
de crianças separadas. A psicanalista revela as graves
patologias narcísicas que resultam da ausência do pai, ou da mãe
na formação da criança.
Como
responder analiticamente ao fracasso da função paterna em
promover os efeitos de interdição e de sublimação na
juventude desbussolada? Philippe Lacadée reconhece que a
adolescência é efetivamente um momento difícil, na medida em
que o sujeito deve separar-se da autoridade parental, o que é
ao mesmo tempo o momento mais necessário, mas também, o mais
doloroso de seu desenvolvimento. A metamorfose da puberdade é
um momento de transição que não vai se dar, talvez, sem
correr riscos. Alguns adolescentes se apóiam, sem o saber,
neste formidável sintagma do poeta Arthur Rimbaud, “a
verdadeira vida”, e o que, em seu nome, os impulsiona a correr
riscos freqüentemente vitais, sem nenhuma consciência do
perigo iminente. Os comportamentos de risco são novos sintomas,
sinais de uma nova clínica, que tem a ver com uma certa prática
de ruptura, um curto-circuito da relação ao Outro. Estes
comportamentos de risco mantêm um certo endereçamento ao
Outro. Como e porque alguns adolescentes decidem prescindir do
Outro, e podem até mesmo recusar o Outro no qual se apoiaram
durante a infância, colocando suas vidas em jogo, sua
“verdadeira vida”?
Éric
Laurent defende a concepção de um analista cidadão, pronto
para interferir nos impasses cruciais de nossa civilização.
Mais uma vez, em sua entrevista, “Como criar a los ninõs”,
ele sublinha a importância da literatura pois alguns escritores
explicitamente pensaram em elaborar, com sua obra, uma maneira
de proteger as crianças da tentação do niilismo, e orientá-las
na cultura e nas dificuldades da civilização, apresentar
figuras nas quais o desejo pudesse articular-se num relato. Com O
Senhor dos Anéis, por exemplo, Tolkien fez uma tentativa de
propor às crianças, aos jovens, uma versão da religião, um
discurso sobre o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os
corpos, as transformações do corpo, todos esses mistérios do
sexo, do mal, que atravessa uma criança; versões da
paternidade.
É
consenso que as funções de proibição e autorização,
prerrogativa do Nome-do-Pai, que vacilam na família,
sobrecarregam a escola e deixam crianças e adolescentes
entregues ao risco do desbussolamento. É preciso formar
analistas capazes de articular essas funções em outros espaços.
Como
formar analistas cidadãos? Mirta Zbrun examina a
Escola criada por Lacan e a formação do analista, com as questões
que lhe são essenciais: o fim da análise, o procedimento do
passe e a formação dos psicanalistas. Ela mostra que estas noções
são tratadas como conceitos e não como preceitos. Em sua tese,
ela examina a Sociedade Psicanalítica criada por Freud e as
outras sociedades geradas no decorrer do movimento psicanalítico
para demonstrar idéia central de que ‘não há analista sem
escola’.
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