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A
família foi, na China, durante séculos, o princípio ordenador
do universo, como se ela apresentasse uma hierarquia natural,
fundasse uma harmonia universal. O pai como chefe e a mãe ao
seu lado: tal é o modelo de ordem universal regendo o laço
social, mas também o movimento dos planetas – o que reenvia a
família - no extremo, do lado da natureza. Pensar a família
como estando ao lado da natureza é uma tentação, uma vez que
entre os animais, este tipo de laço existe (não entre os
insetos que se apresentam a nós, muito mais como uma metonímia
da sociedade), mas em outras espécies. Há sempre a tentação
de fundar a família sobre a reprodução.
É
possível que hoje, no discurso da ciência se possa dar o
matema da reprodução, dar uma fórmula significante. Isso
torna ainda mais necessário o estabelecimento de uma
descontinuidade entre os modos de reprodução e a família, e
explica também aquilo que nós chamamos de "dimensão histórica
da família", que não foi sempre tal como nós a
conhecemos hoje: no decorrer do tempo, foram inventados
diferentes modelos de família, o que nos permite estabelecer
esta descontinuidade entre a natureza e a família.
Família,
Santa Família
O
traço de gênio do cristianismo, tão distante da crença
chinesa, foi ter elevado a família ao divino, ao ponto que
falamos de Santa Família. A psicanálise, como o cristianismo,
é também solidária da família. Lacan diz que a psicanálise
participa da ideologia edipiana, que não é uma subversão da
família. Ao contrário, os analistas pensavam, de certo modo,
em consolidar a família e os valores exaltados pela psicanálise
até Lacan, eram os valores familiares. Os judeus mergulhavam aí
as raízes tão profundas que os analistas norte-americanos
pensavam que, ao final de sua análise, o analista deveria ser
casado e fiel; essas eram para eles as condições para o fim da
análise.
A
psicanálise, na versão popular, praticou uma espécie de
deciframento da vida a partir da família, como se não
reencontrássemos na vida senão diferentes metonímias do pai,
da mãe, dos irmãos e das irmãs. A psicanálise contribuiu
para esta familiarização do mundo, como se ela tivesse se
deixado absorver pela neurose.
Há
sempre alguma coisa a resolver nos laços de família, como se
houvesse aí alguma coisa a ser compreendida, como se aí
residisse sempre um problema não resolvido cuja solução deve
ser buscada em alguma coisa que a família tem escondida.
Segundo Lévi-Strauss, a família é um grupo social que
apresenta três características ao menos: ela tem origem no
casamento, ela é formada pelo marido, pela esposa, e pelas
crianças nascidas dessa união, e ainda mais alguns membros.
Seus membros são unidos pelos laços legais, de direitos e
pelas interdições sexuais.
O
que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família?
Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no
mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou
no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas
crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai,
pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos
por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família
é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não
dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não
dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a
mãe?
É
por essa via que o falo se introduz na família, que é seu deus
mais essencial. É por isso que na China existe o culto dos
ancestrais, aqueles que estão mortos – que cessaram de gozar
– a fim de não perturbar a harmonia da família. Para o neurótico,
há sempre alguma coisa incrível no laço sexual entre o pai e
a mãe. Que significa o Édipo senão que eles não gozam
daquilo que deveriam gozar?
E
se o gozo da mãe não foi interditado para o menino, ele ficará
toda a sua vida envolvido nesse gozo. Compreendemos bem porque o
cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada
menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O
princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o
segredo.
A
família encarnada
Lacan
aporta algo fundamental ao ligar o tema da família com a língua
para explicar racionalmente o segredo da família. O ponto de
partida é que a língua falada por cada um é um assunto de família
e que a família no inconsciente é, primordialmente, o lugar
onde aprendemos a língua materna. É por isso que o lugar da
família está ligado à língua que falamos, quero dizer, que
falar, falar numa língua já é dar testemunho de um laço com
a família. É por isso que é desejável fazer uma análise na
sua língua materna. É possível fazer uma análise numa outra
língua, mas alguma coisa então se perde, embora outra coisa
possa ser recuperada, pois quando alguém faz uma análise numa
outra língua se efetua uma desfamiliarização. Com efeito,
nossa própria língua, que nós falamos, é sempre a língua
que alguém falava antes de nós. Logo, se a família é uma
"encarnação", ela é uma encarnação daquilo que
Lacan chama de lugar do Outro. Em psicanálise, o lugar do Outro
se encarna na figura da família.
Eu
disse que a língua não se "aprende" no sentido pedagógico
de aprendizagem; nascemos na língua, no mundo da língua,
aquela que nós falamos, e é nisso que a metapsicologia
freudiana encontra seus verdadeiros fundamentos. Lacan procurou
um fundamento biológico para a falta-a-ser, mostrando que o ser
humano nasce inacabado, mais inacabado que qualquer outro
animal, pois, para satisfazer suas necessidades, lhe é preciso
o cuidado do outro. Os animais também têm necessidade dos
cuidados do outro quando são pequenos, mas o que especifica o
humano é que ele chama o Outro, que ele transforma em gritos os
apelos, de modo que os primeiros gritos da criança são já
balbucios, com escansões nos sons que variam de uma língua
para a outra; muito rápido, aquilo que dizem as crianças – o
balbucio, os barulhos – se distingue segundo a língua em que
se banharam.
A
família, lugar da demanda
Podemos
dizer que a família se instala no inconsciente do neurótico
porque ela é o lugar onde o sujeito experimentou o perigo. A
família, com efeito, é o lugar do Outro da língua, logo, é o
lugar do Outro da demanda. A demanda deve passar pela língua -
com os efeitos traumáticos que se produzem sobre as
necessidades do ser humano – pois, ao passar pela demanda, se
produz um desvio das necessidades que serão, então, marcadas
por uma falta. É o que Lacan isola nas primeiras anotações de
seu texto dos anos trinta "Os complexos familiares".
No segundo parágrafo, ele comenta a economia paradoxal dos
instintos na família, que ele centra justamente sobre o fato
que os instintos são, na espécie humana, tributários de
modificações paradoxais das necessidades. Nesta época, ele
afirmava que, no quadro da família humana, pode-se observar que
as instâncias culturais dominam as instâncias naturais. O que
é uma maneira de dizer que, no homem, a língua, por meio do
significante, domina tudo aquilo que é natural e que é o que
se passa na família humana.
Nesse
desvio, seus efeitos traumáticos, são essencialmente o fruto
da produção de um resto, aquilo que não se pode demandar. A
incidência da demanda sobre a necessidade é a produção de
alguma coisa que não podemos demandar porque não podemos dizê-la,
de sorte que a conseqüência da demanda é dupla: o desejo e a
pulsão, para chamá-las pelo seu nome em psicanálise. O desejo
é a parte implícita do significado veiculada pela demanda, é
a parte latente, escondida; o desejo é a parte que podemos
interpretar naquilo que foi dito. A pulsão é a parte não
interpretável do dito, é como uma doença da necessidade
natural: aquilo que nós chamamos de objeto pulsional é objeto
de uma necessidade não natural que se manifesta com insistência,
mas que não conhece um ciclo de satisfação que lhe permita
chegar ao fim. Na satisfação freudiana, a pulsão é
constante, ela não conhece o ciclo, e Freud a define como
eterna.
No
espaço da família, o sujeito faz a experiência da demanda, do
poder como poder de sim ou não, ele faz sua primeira experiência
de reconhecimento da fala. É também nesse espaço que o
sujeito começa a decifrar o desejo – ele me diz isso, mas o
que ele quer em me dizendo isso? –, que é a questão sobre o
desejo do Outro, questão que nasce primordialmente no espaço
da família. Por essa razão, ela é um lugar inesgotável de
interpretação, pois cada família tem um ponto de "não
se fala disso", não existe família sem esse ponto; isso
pode ser o tabu do sexo ou falar da falta de um ancestral. No
centro dos assuntos de família encontram-se sempre coisas
proibidas.
Bem
entendido, há primeiramente o tabu do incesto. É a razão pela
qual a família como lugar do Outro da língua, é também o
lugar do Outro da lei. Se vocês não compreendem o que é o
lugar do Outro em Lacan, pensem a família como encarnação de
um espaço onde o gozo supremo – que é, para os dois sexos,
gozar da mãe - é proibido; ela é interditada, eis porque
podemos dizer que o lugar do Outro, segundo Lacan, é a metáfora
da família.
O
conto familiar
A
família é um mito que dá forma épica àquilo que opera a
partir da estrutura, e as estórias de família são sempre o
conto que diz como o gozo que o sujeito merecia, que ele tinha
direito, lhe foi subtraído. É por isso que podemos dizer que
alguma coisa não é sadia no gosto pela família e, como dizia
André Gide: "Famílias, eu vos odeio" – mas é bem
entendido o grito de um perverso e de sua rebelião contra a família
enquanto ela propõe gozar da castração. Na família, o gozo
é interditado e um gozo substituto é proposto: gozar da castração,
quer dizer, gozar do roubo da castração. Quando o paciente
fala da família, ele fala do reencontro com o gozo, da perda do
gozo, daquele que o substitui; foi assim que pudemos pensar na fórmula
de cada sujeito a partir de suas relações de família. Essas fórmulas
traduzem, com efeito, o modo pelo qual o gozo foi perdido e como
um outro veio substituí-lo.
Lacan
escreveu isso como metáfora paterna: a relação do pai ladrão
com o desejo da mãe. A metáfora paterna é como a encarnação
da substituição da natureza pela cultura; essa metáfora é
realizada pela língua, ela própria, pois pelo fato de falar, a
metáfora paterna encarna a substituição da necessidade pelo
significante. Assim, porque o ser humano deve fazer passar a
necessidade pela palavra, isso implica que a suposta metáfora
paterna cumpre-se por meio do fato de aguardar o que dirá o
outro para satisfazer a necessidade; é nesse momento de
substituição da necessidade pelo significante que nasce o fenômeno
de desvio que se chama pulsão.
Traduzido
por Tania Coelho dos Santos.
Notas:
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