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SOBRE A PSICANÁLISE DE CRIANÇAS SEPARADAS

Rachel Amin de Freitas
Psicanalista
Maître
em Psicopatologia/Universidade René Descartes/Paris V, Sorbonne
Especialista em Teoria Psicanalítica/Universidade Estácio de Sá/UNESA
Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise/RJ
Coordenadora do Projeto de Psicanálise aplicada na IV Vara da Infância, Juventude e Idoso de Teresópolis/RJ
rachelamin@uol.com.br



Resenha do livro:

Aubry, Jenny (1952-1986) Psicanálise de crianças separadas – Estudos clínicos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, Campo Matêmico, 2004, 393p.

 

  

O livro de Jenny Aubry, intitulado Psicanálise de crianças separadas, é uma coletânea de textos desta autora feita por sua filha, a também psicanalista Elizabeth Roudinesco.

Jenny Aubry além de psicanalista era também médica, razão pela qual ela nunca deixou de lado essa perspectiva na abordagem das afecções psíquicas infantis, o que muito influenciou em sua escuta analítica.

Essa chave de leitura dos sintomas será conservada durante todo o seu percurso profissional e, a essa primeira abordagem clínica será acrescentada, paulatinamente, a leitura psicanalítica do adoecer. Em seus artigos, ela se dedica a questionar se um médico pode ser um analista. Ela se pergunta quais as diferenças e aproximações entre a psicanálise e a medicina. A autora acredita que um médico precisa abrir mão de sua condição de médico para se tornar um analista. No entanto, ela assinala que será seu diploma de médico que abrirá as portas das instituições para que ali ele possa exercer a clínica psicanalítica.

Ela é levada a buscar o campo de saber da psicanálise para entender melhor as crianças gravemente desamparadas, tratadas no dispensário Parent de Rosan. Em 1946, Jenny Aubry é nomeada chefe do serviço de pediatria do Hospital Ambroisé Paré, em Boulogne (França), que teve suas instalações destruídas pela guerra, o que levou toda a equipe a se deslocar para o dispensário Parent de Rosan, onde estavam alojadas crianças com menos de três anos de idade em situação grave de desamparo. É a partir dessa experiência que a autora se dedica a examinar as conseqüências psíquicas da perda parental na vida daquelas crianças.

No ano de 1964, ela se torna membro fundador da École Freudienne de Paris, aproximando-se ainda mais da psicanálise de Lacan e dos membros da EFP, e passa a ter um papel importante na difusão da psicanálise, principalmente na região mediterrânea da França.

Nos artigos reunidos nessa coletânea, a autora trabalha as conseqüências físicas e psíquicas da separação das crianças de suas mães. Ela classifica essas conseqüências segundo o tipo de perda sofrida, se por morte ou abandono, e conforme a idade da criança no momento da perda, perguntando-se quais as saídas possíveis para tal desastre.

Ela defende a tese de que a carência grave de cuidados maternos pode levar a distúrbios mentais, sendo os casos mais preocupantes aqueles ocorridos na primeira infância. A autora elenca alguns destes distúrbios, tais como: distúrbios reacionais à base de inibição ou agressividade, paradas de desenvolvimento e retardamento psicomotor, neurose obsessiva, demência de tipo autístico e até psicose. Jenny Aubry acrescenta ainda, a partir de sua constatação clínica dos exames destas crianças, distúrbios psicomotores graves, doenças psicossomáticas e delinqüência. Todos esses sintomas dependem do tipo de perda e da idade da criança quando ocorreu a perda da mãe, já que ela acredita que a estrutura psíquica se organiza a partir dos cuidados maternos que uma criança recebe.

É o caso, por exemplo, de Robert, um caso tão difundido por Rosine Lefort, que ficou conhecido como “a criança e o lobo”, que é trabalhado neste livro. Trata-se da história de um menino nascido de pai desconhecido e de uma mãe que o deixava passar fome e o destruía, segundo a autora. Ele passa seus seis primeiros meses de vida com esta mãe e a partir de uma desnutrição grave deste bebê, esta mãe é convencida a interná-lo em um hospital.

Assim, ele percorre quinze instituições entre berçários e hospitais até chegar em Parent de Rosam, quando começa seu tratamento com Rosine Lefort. Ele porta afecções orgânicas importantes e distúrbios psíquicos que o fazem deslizar para a psicose. Depois de tantas privações, perdas e separações, esta criança tornou-se um ser em pedaços, o que nunca o deixou constituir-se como sujeito, levando-o a mergulhar num movimento caótico em direção à psicose.

A autora, além de elencar uma gama importante de referências bibliográficas no assunto, tanto no campo da psiquiatria quanto no campo da psicanálise, avalia a posição dos diversos estudiosos, colocando seus artigos em debate. Dentre eles, ela dá uma importância capital ao apontamento feito por Jacques Lacan da criança como sintoma do casal parental. Formulação esta que se encontra mais detalhada no próprio texto do autor, intitulado “Note sur l’enfant”, que pode ser encontrado no livro de Lacan, Autres Écrits.

Jenny Aubry exemplifica esta formulação com o caso, dentre outros, do pequeno Armand, que nasce dias depois da morte de seu tio materno. Sua mãe, então, recorre a um procedimento habitual na França. Ela dá ao filho, entre seus três nomes, o deste tio, nome pelo qual ele passa a ser tratado por toda a família. No entanto, Armad se recusa a representar o morto, passando assim, a assumir uma posição destruidora sobre todos à sua volta. Com esse caso, ela mostra como o filho toma lugar nas fantasias dos pais oriundas de experiências passadas. Por isso, escreve a autora, é que o desejo inconsciente dos pais sempre está presente no diálogo entre pais e filhos, seja qual for o nível da comunicação.

O leitor de Psicanálise de crianças separadas vai se surpreender com a variedade de textos que apresentam uma perspectiva singular, entre a psiquiatria e a psicanálise, e que se dedicam a uma avaliação clínica bastante rica dos correlatos orgânicos das perdas sofridas pelas crianças e suas conseqüências no funcionamento psíquico de cada uma. Ela questiona profundamente as possibilidades melhores ou piores de solução para tantos estragos.

Podemos perceber esse dilema nos casos relatados nestes textos, mas, sobretudo em “Experiências de um encaminhamento familiar curativo” em que o somatório de tantos fatores como a perda por morte ou abandono da mãe, a carência de cuidados maternos e a institucionalização destes bebês, em hospitais e berçários, coloca em risco sua sanidade mental e a possibilidade de uma boa solução.

Jenny Aubry, entretanto, acredita que quando um bebê teve a oportunidade de ficar os primeiros meses com sua mãe e, posteriormente, quando da separação teve a sorte de encontrar uma ama ou uma família substituta que efetivamente o acolhesse juntamente com um tratamento psicanalítico para ele, as possibilidades de solução deste desequilíbrio na vida desta criança aumentam consideravelmente.

O valor de sua perspectiva é nos levar a questionar os excessos de uma ambição terapêutica, politicamente correta, que nos leva a desprezar, muitas vezes, a dimensão do irreparável em jogo no abandono de crianças de tenra idade.

Texto recebido em: 03/10/2006.

Aprovado em: 23/01/2007.