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DO SANS FAMILLE, DE HECTOR MALOT, AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 



 

Catarina Coelho dos Santos
Titulaire du Baccalauréat en sciences économiques e sociales
Graduanda em Direito na UERJ
catdoms@yahoo.com.br


Resenha do Livro:

Malot, H. (1878). Sans Famille. Paris: Collection Bibliotèque Rouge, 1995.

  

Uma pequena resenha

No final do século XIX, floresce na França uma abundante literatura para crianças e adolescentes. Entre os mais conhecidos, podemos citar: Le petit chose, de Alphonse Daudet, L’enfant, de Jules Vallés, Poil de Carotte, de Jules Renard. São a expressão do ponto de vista humanitário, pedagógico e principalmente moral da época. Hector Malot era o homem certo para esta literatura educativa, pois sendo ele próprio um homem muito calmo, disciplinado e ponderado era considerado na sociedade do fim do século XIX como um exemplo de moral e bons costumes; e como tal foi recebido na corte da Espanha e no Vaticano.

Rémi, o personagem principal do romance, é um menino abandonado como ele mesmo afirma na primeira frase do livro,: ‘Je suis un enfant trouvé’. Até os oito anos ele julgava ter uma mãe, Sra. Barberin, e um pai que mora em Paris por causa de seu trabalho. Infelizmente, um acidente traz este homem de volta para casa em dificuldades financeiras que o levam a se livrar do menino, apesar do desgosto deste e da Sra. Barberin, que se consideram mãe e filho. Com muito pesar em deixar aquela que considera sua mãe, Rémi é vendido pelo pai adotivo ao Sr. Vitalis, músico itinerante, dono de três cães e um macaco, que os utiliza no número que apresenta nas cidades para ganhar a vida.

O Sr. Vitalis é um bom homem que se afeiçoa rapidamente a Rémi de quem cuida muito bem. Graças ao novo mestre, o menino aprende a ler, escrever, cantar, além de receber valiosas lições de vida através das viagens que o grupo faz. Um dia, o grupo pára em uma cidade grande, onde um guarda começa um entrevero com Rémi. Para protegê-lo, o Sr. Vitalis acaba preso e o menino fica sozinho no mundo com os animais.

Ao parar na beira de um rio para descansar, o pequeno conhece a Sra. Milligan e seu filho Arthur, passageiros de um barco ali parado, e pedem a Rémi que faça sua apresentação com os animais. Muito encantados com os talentos do grupo, eles os convidam para ficar no barco. Rémi aceita de bom grado, pois está faminto e acaba por se afeiçoar à Sra. e ao seu filho doente, que só o pequeno consegue alegrar. O Sr. Vitalis acaba sendo liberado da prisão, e a Sra. Milligan pede para ficar com Rémi, mas Vitalis não aceita. A jornada continua na direção de Paris, mas, no caminho, apanhados por uma tempestade de neve, o menino acaba perdendo dois dos cães do mestre, o macaco fica doente por causa do frio e acaba por morrer. Vitalis e Rémi chegam a Paris doentes, sem dinheiro, sem comida, sós com um cachorro. Cansados, param debaixo de uma marquise para dormir.

Quando Rémi acorda, ele está em um quarto desconhecido, a casa é de um jardineiro chamado Acquin. Ele lhe explica que durante a noite seu mestre morreu, e o convida a permanecer em sua casa e trabalhar com ele. A família do jardineiro o recebe muito bem, ele se torna um membro rapidamente, e se afeiçoa especialmente à filha menor de Acquin, Lise. Tudo corre muito bem até o dia em que uma tempestade destrói as estufas de flores do jardineiro, fazendo com que ele perca seu sustento e não possa mais pagar a casa. A dívida se acumula de tal forma que o jardineiro acaba preso, e cada um de seus filhos vai morar com um familiar diferente. Rémi volta para a estrada com o seu cão e a certeza de já ter encontrado uma família e um lugar, lhe dava forças para continuar sua jornada através do país. Na saída da cidade, o menino encontra Mattias, um adolescente que trabalhava com um conhecido de Vitalis. Mattias está sem trabalho nem rumo, e pede a Rémi para seguir viagem com ele. Os dois vão para o sul da França visitar a Sra. Barberin. Ao chegar, a Sra. lhes informa que um homem rico tinha vindo procurar Rémi e que o Sr. Barberin tinha partido com o homem para procurá-lo em Paris. Os dois meninos seguiram para capital e receberam lá a notícia da morte de Barberin, e foram instruídos a seguir para Londres procurando a verdadeira família de Rémi.

Na Inglaterra, Rémi e Mattias encontram uma família bem diferente daquela que tinham imaginado: Os Driscoll. Além de não serem ricos como pareceu aos Barberin, eram ladrões que faziam os meninos lhes darem tudo o que ganhavam nas apresentações. Rémi fica muito triste, e não se adapta a essa nova família. Mattias começa a desconfiar que o amigo não é filho dos Driscoll, mas uma criança seqüestrada por eles. Uma visita recebida pelo Sr. Driscoll confirma essa teoria, é o Sr. James Milligan, cunhado da Sra. Milligan, que está escondendo Rémi, o filho mais velho de seu falecido irmão, esperando que Arthur, seu sobrinho mais jovem, seja levado pela enfermidade rapidamente para que possa se apossar da fortuna da família.

De posse desta informação, Mattias e Rémi aproveitam a primeira chance para fugir, voltar para a França onde eles esperam encontrar o barco da Sra. Milligan. Ao chegar, os meninos param na casa da irmã do jardineiro Acquin, a Sra. Suriot para visitar a pequena Lise, mas a família já não está mais lá. A nova moradora informa a Rémi que a Sra. Suriot ficou viúva e por essa razão teve que partir e que a Sra. Milligan tinha levado Lise para a cidade de Vevey na Suíça, deixando mensagem aos meninos para encontrarem-na lá. Mattias e Rémi encontram a Sra. Milligan acompanhada do cunhado malvado. Amedrontado, Rémi envia Mattias para contar a Sra. o que sabiam.

A Sra.Milligan rapidamente recolhe Rémi e facilmente confirma com a Sra. Barberin que ele realmente é seu filho seqüestrado. Rémi retoma muito feliz seu lugar em sua verdadeira família. Os anos se passam, e os dois meninos vivem agora uma vida feliz e confortável. Rémi se casa com Lise, Mattias se torna um músico conceituado, e Arthur, o irmão de Rémi se casa com a irmã de Mattias. Rémi vive ainda com a lembrança do Sr. Vitalis, que para ele, na sua vida de criança abandonada, foi quem realmente lhe ensinou a ser um homem.

Vitalis foi a quem Rémi considerou como pai. Apesar da mensagem óbvia do autor de que família é aquela que cuida, estranhamente Rémi acaba acolhido por sua mãe e irmão consangüíneos, o que leva a questionar o compromisso de Malot com a moral de sua história. Família é aquela que ama e cuida, adota de fato, mas a verdadeira família é aquela que em que o sujeito foi gerado, seu lugar de origem, um laço insubstituível, único, onde a consaguineidade confina com o evento da chegada ao mundo.

 

Família, paternidade e criança no direito civil brasileiro

Dentro do contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação nacional reconhece dois tipos de família, a «natural» e a «substituta»:

«Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes

Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.»

Percebe-se, de modo geral, que a definição da entidade familiar, do ponto de vista da lei, fica cada vez mais fluida; o estado tem cada vez mais poder de regulação sobre a família, que não é mais um núcleo decisório central, nem sequer a responsável pela regulação da vida social. A lei assumiu esse papel, reconhecendo inclusive seu dever de controlar eventuais abusos no exercício do poder familiar por parte dos pais. O Código Civil de 2002 consagrou determinadas adaptações do texto da lei ao contexto social, mantendo todavia uma ênfase no casamento como estrutura essencial da unidade familiar. A utilização da supra mencionada distinção entre família «natural» e «substituta», constante do Estatuto da criança e do adolescente, não permite dúvidas sobre a intenção do legislador.

«Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.

Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.

Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.»

Art 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.

Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.

Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica.

Art. 1.588. O pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente.

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.»

Assim como na história de Malot, a legislação nacional se posiciona de acordo com a tendência atual na cultura, isto é: nem contra, nem a favor do casamento tradicional, monogâmico e indissolúvel. A legislação adapta-se à realidade de fato: as famílias recompostas. A legislação não redefine a família, apenas regulamenta as suas novas formas «substitutas» da consangüínea e que necessitam de balizamento, sem todavia, destituir por completo a família «natural» de sua posição de núcleo estruturador da vida social.

Texto recebido em: 11/03/2007.

Aprovado em: 10/04/2007.