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Uma
pequena resenha
No
final do século XIX, floresce na França uma abundante
literatura para crianças e adolescentes. Entre os mais
conhecidos, podemos citar: Le petit chose, de Alphonse
Daudet, L’enfant, de Jules Vallés, Poil de Carotte,
de Jules Renard. São a expressão do ponto de vista humanitário,
pedagógico e principalmente moral da época. Hector Malot era o
homem certo para esta literatura educativa, pois sendo ele próprio
um homem muito calmo, disciplinado e ponderado era considerado
na sociedade do fim do século XIX como um exemplo de moral e
bons costumes; e como tal foi recebido na corte da Espanha e no
Vaticano.
Rémi,
o personagem principal do romance, é um menino abandonado como
ele mesmo afirma na primeira frase do livro,: ‘Je suis un
enfant trouvé’. Até os oito anos ele julgava ter uma mãe,
Sra. Barberin, e um pai que mora em Paris por causa de seu
trabalho. Infelizmente, um acidente traz este homem de volta
para casa em dificuldades financeiras que o levam a se livrar do
menino, apesar do desgosto deste e da Sra. Barberin, que se
consideram mãe e filho. Com muito pesar em deixar aquela que
considera sua mãe, Rémi é vendido pelo pai adotivo ao Sr.
Vitalis, músico itinerante, dono de três cães e um macaco,
que os utiliza no número que apresenta nas cidades para ganhar
a vida.
O
Sr. Vitalis é um bom homem que se afeiçoa rapidamente a Rémi
de quem cuida muito bem. Graças ao novo mestre, o menino
aprende a ler, escrever, cantar, além de receber valiosas lições
de vida através das viagens que o grupo faz. Um dia, o grupo pára
em uma cidade grande, onde um guarda começa um entrevero com Rémi.
Para protegê-lo, o Sr. Vitalis acaba preso e o menino fica
sozinho no mundo com os animais.
Ao
parar na beira de um rio para descansar, o pequeno conhece a
Sra. Milligan e seu filho Arthur, passageiros de um barco ali
parado, e pedem a Rémi que faça sua apresentação com os
animais. Muito encantados com os talentos do grupo, eles os
convidam para ficar no barco. Rémi aceita de bom grado, pois
está faminto e acaba por se afeiçoar à Sra. e ao seu filho
doente, que só o pequeno consegue alegrar. O Sr. Vitalis acaba
sendo liberado da prisão, e a Sra. Milligan pede para ficar com
Rémi, mas Vitalis não aceita. A jornada continua na direção
de Paris, mas, no caminho, apanhados por uma tempestade de neve,
o menino acaba perdendo dois dos cães do mestre, o macaco fica
doente por causa do frio e acaba por morrer. Vitalis e Rémi
chegam a Paris doentes, sem dinheiro, sem comida, sós com um
cachorro. Cansados, param debaixo de uma marquise para dormir.
Quando
Rémi acorda, ele está em um quarto desconhecido, a casa é de
um jardineiro chamado Acquin. Ele lhe explica que durante a
noite seu mestre morreu, e o convida a permanecer em sua casa e
trabalhar com ele. A família do jardineiro o recebe muito bem,
ele se torna um membro rapidamente, e se afeiçoa especialmente
à filha menor de Acquin, Lise. Tudo corre muito bem até o dia
em que uma tempestade destrói as estufas de flores do
jardineiro, fazendo com que ele perca seu sustento e não possa
mais pagar a casa. A dívida se acumula de tal forma que o
jardineiro acaba preso, e cada um de seus filhos vai morar com
um familiar diferente. Rémi volta para a estrada com o seu cão
e a certeza de já ter encontrado uma família e um lugar, lhe
dava forças para continuar sua jornada através do país. Na saída
da cidade, o menino encontra Mattias, um adolescente que
trabalhava com um conhecido de Vitalis. Mattias está sem
trabalho nem rumo, e pede a Rémi para seguir viagem com ele. Os
dois vão para o sul da França visitar a Sra. Barberin. Ao
chegar, a Sra. lhes informa que um homem rico tinha vindo
procurar Rémi e que o Sr. Barberin tinha partido com o homem
para procurá-lo em Paris. Os dois meninos seguiram para capital
e receberam lá a notícia da morte de Barberin, e foram instruídos
a seguir para Londres procurando a verdadeira família de Rémi.
Na
Inglaterra, Rémi e Mattias encontram uma família bem diferente
daquela que tinham imaginado: Os Driscoll. Além de não serem
ricos como pareceu aos Barberin, eram ladrões que faziam os
meninos lhes darem tudo o que ganhavam nas apresentações. Rémi
fica muito triste, e não se adapta a essa nova família.
Mattias começa a desconfiar que o amigo não é filho dos
Driscoll, mas uma criança seqüestrada por eles. Uma visita
recebida pelo Sr. Driscoll confirma essa teoria, é o Sr. James
Milligan, cunhado da Sra. Milligan, que está escondendo Rémi,
o filho mais velho de seu falecido irmão, esperando que Arthur,
seu sobrinho mais jovem, seja levado pela enfermidade
rapidamente para que possa se apossar da fortuna da família.
De
posse desta informação, Mattias e Rémi aproveitam a primeira
chance para fugir, voltar para a França onde eles esperam
encontrar o barco da Sra. Milligan. Ao chegar, os meninos param
na casa da irmã do jardineiro Acquin, a Sra. Suriot para
visitar a pequena Lise, mas a família já não está mais lá.
A nova moradora informa a Rémi que a Sra. Suriot ficou viúva e
por essa razão teve que partir e que a Sra. Milligan tinha
levado Lise para a cidade de Vevey na Suíça, deixando mensagem
aos meninos para encontrarem-na lá. Mattias e Rémi encontram a
Sra. Milligan acompanhada do cunhado malvado. Amedrontado, Rémi
envia Mattias para contar a Sra. o que sabiam.
A
Sra.Milligan rapidamente recolhe Rémi e facilmente confirma com
a Sra. Barberin que ele realmente é seu filho seqüestrado. Rémi
retoma muito feliz seu lugar em sua verdadeira família. Os anos
se passam, e os dois meninos vivem agora uma vida feliz e
confortável. Rémi se casa com Lise, Mattias se torna um músico
conceituado, e Arthur, o irmão de Rémi se casa com a irmã de
Mattias. Rémi vive ainda com a lembrança do Sr. Vitalis, que
para ele, na sua vida de criança abandonada, foi quem realmente
lhe ensinou a ser um homem.
Vitalis
foi a quem Rémi considerou como pai. Apesar da mensagem óbvia
do autor de que família é aquela que cuida, estranhamente Rémi
acaba acolhido por sua mãe e irmão consangüíneos, o que leva
a questionar o compromisso de Malot com a moral de sua história.
Família é aquela que ama e cuida, adota de fato, mas a
verdadeira família é aquela que em que o sujeito foi gerado,
seu lugar de origem, um laço insubstituível, único, onde a
consaguineidade confina com o evento da chegada ao mundo.
Família,
paternidade e criança no direito civil brasileiro
Dentro
do contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação
nacional reconhece dois tipos de família, a «natural» e a «substituta»:
«Art.
4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e
do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.
Art.
19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e
educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,
em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes
Art.
25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos
pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Art.
28. A colocação em família substituta far-se-á mediante
guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica
da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.»
Percebe-se,
de modo geral, que a definição da entidade familiar, do ponto
de vista da lei, fica cada vez mais fluida; o estado tem cada
vez mais poder de regulação sobre a família, que não é mais
um núcleo decisório central, nem sequer a responsável pela
regulação da vida social. A lei assumiu esse papel,
reconhecendo inclusive seu dever de controlar eventuais abusos
no exercício do poder familiar por parte dos pais. O Código
Civil de 2002 consagrou determinadas adaptações do texto da
lei ao contexto social, mantendo todavia uma ênfase no
casamento como estrutura essencial da unidade familiar. A
utilização da supra mencionada distinção entre família «natural»
e «substituta», constante do Estatuto da criança e do
adolescente, não permite dúvidas sobre a intenção do
legislador.
«Art.
1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto
menores.
Art.
1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder
familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro
o exercerá com exclusividade.
Parágrafo
único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder
familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para
solução do desacordo.
Art.
1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da
união estável não alteram as relações entre pais e filhos
senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em
sua companhia os segundos.»
Art
1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou
estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do
relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar,
exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou
companheiro.
Parágrafo
único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao
pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.
Parágrafo
único. Verificando que os filhos não devem permanecer sob a
guarda do pai ou da mãe, o
juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade
com a natureza da medida, de preferência levando em conta o
grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de
acordo com o disposto na lei específica.
Art.
1.588. O pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o
direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser
retirados por mandado judicial, provado que não são tratados
convenientemente
Art.
1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou
por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação.
Art.
1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido
pelos pais, conjunta ou separadamente.
Art.
1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição
de família.»
Assim
como na história de Malot, a legislação nacional se posiciona
de acordo com a tendência atual na cultura, isto é: nem
contra, nem a favor do casamento tradicional, monogâmico e
indissolúvel. A legislação adapta-se à realidade de fato: as
famílias recompostas. A legislação não redefine a família,
apenas regulamenta as suas novas formas «substitutas» da
consangüínea e que necessitam de balizamento, sem todavia,
destituir por completo a família «natural» de sua posição
de núcleo estruturador da vida social.
Texto
recebido em: 11/03/2007.
Aprovado
em: 10/04/2007.
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