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Entrevista com
Éric
Laurent
Delegado Geral da Associação Mundial de Psicanálise
Docente da Seção Clínica do Hospital Val de Grace
AME da École de la Cause Freudienne
ericlaurent@lacanian.net
ASSUNTO:
AMP-UQBAR – Entrevista com Eric Laurent
Data: Segunda-feira, 04 de junho de 2007 – 8h34m
De: Oscar Ventura <
o.ventura@arrakis.es>
Para: AMP-UQBAR amp-uqbar@elistas.net
Prezados
Colegas:
AMP-Uqbar reproduz em continuação a entrevista editada no
suplemento dominical do jornal argentino La
Nación, publicada no dia de ontem, quinta-feira, 03 de junho.
Como
criar as crianças
Eric
Laurent é um dos continuadores do ensino de Jacques Lacan.
Sustenta que não se pode pensar a clínica fora de sua época.
Veio este ano a Buenos Aires e falou com LNR sobre a família
hoje, época de crise no laço social.
Longe
de estar fechado em seu consultório, viaja pelo mundo fazendo
conferências que são ouvidas por pessoas de dentro e de fora do
âmbito “psi”, encarnando o que ele postulou como o
analista-cidadão: aquele que elabora o que diz de maneira tal que
possa incidir na civilização.
Você
disse que ali onde não há mais família, ela subsiste apesar de
tudo. O que é que subsiste?
A
partir do momento que se pode pensar como o fim de uma certa forma
tradicional de família e a partir da igualdade dos direitos, seja
entre homens e mulheres, entre filhos e pais ou entre as gerações,
se deslocou a maneira como se articulava a autoridade. Ademais,
com a separação entre ato sexual e procriação, e com a procriação
assistida, vemos uma pluralização de formas de vínculos que
permitem articular pais e filhos fora da forma tradicional. Uma
das discussões entre as civilizações dos países hoje é o que
se pode chamar família em torno de um filho. Isto se pode fazer
tanto com famílias monoparentais, como quando há duas pessoas do
mesmo sexo ou várias pessoas que se ocupam dele. É o que fica do
que era a oposição, em um dado momento, entre um modelo de família
tradicional ou nada, nada que se pudesse chamar família segundo a
definição do código civil napoleônico, a partir do ponto de
vista laico: uma certa forma que permitia transmitir os bens e
articular os direitos, mas fora não havia nem bens nem direitos.
Agora há pluralização completa e se segue falando de família
porque é uma instituição que permite bens e direitos e a
articulação entre gerações. Então, é o que fica; nesse
sentido, creio que há uma conversação através de nossa
civilização, uma pergunta que dá muitas respostas, que alguns
aceitam, outros recusam e outros querem manter uma forma definida
com um ideal determinado.
Laurent
afirma que pensar a figura do pai hoje é um assunto crucial. E
que, inclusive quando o pai falta, o que hoje não falta é um
discurso acerca do que para ela é um pai, ainda se está ausente.
Ademais, a mãe por sua vez teve um pai. Lacan tratou de separar o
pai do Nome-do-Pai, quer dizer, desta função paradoxal proibição-autorização,
que pode funcionar ou não mais além das pessoas presentes.
Atualmente,
os novos papéis das mulheres no mercado de trabalho e as inovações
produzidas pela ciência, faz alguns anos, levam a cenários
impensáveis relativos aos modos de reprodução. O que tem para
dizer a psicanálise diante disso?
Em
todas estas variações ou criações diversas, discursos
distintos vão entrar em conflito sobre o que são o pai, ou a mãe,
em cada caso. Mas o que vemos é que ninguém quer ter filhos sem
pais. É muito evidente, as brigas jurídicas das comunidades gay
e lésbicas para serem reconhecidas como pais e mães de filhos, são
para poder utilizar os nomes da família. A criança é
confrontada com o fato de que fora da família circulam outros
discursos. Como então orientar-se, quando, por exemplo, a criança
é concebida por fertilização assistida com doador anônimo? Os
pequenos na escola lhe dizem: Onde está teu pai? E a criança
responde: “Eu não tenho pai”. Como não vai ter um pai? Isso
é impossível... E então, como se vai responder e sustentar
isso? Como se vai inventar uma solução, um discurso possível? A
psicanálise pode, precisamente, nessas circunstâncias ajudar a
criança, a mãe, a poderem orientar-se num espaço no qual seja
possível usar os termos pai-mãe de uma maneira compatível com o
discurso comum.
Você
disse que nos momentos de grandes mudanças as crianças são as
primeiras vítimas, são os primeiros a sofrer o impacto dessas
mudanças. Quais são as questões em jogo para as crianças que
estão crescendo?
Múltiplas.
As formas de patologia do laço social com as crianças e entre as
crianças, vêm através das queixas dos que estão a cargo delas,
especialmente dos pedagogos, com o papel essencial que agora
desempenha a escola na civilização. Não faz muito tempo que a
escola tem este papel tão importante para criar as crianças.
Antes, a articulação com a religião, a moral, o Estado, o exército,
tinham um peso, havia uma variedade de instituições. Cada vez
mais se reduz o peso destas para centrar-se na grande instituição
escolar, que recolhe as crianças e trata de ordená-las a partir
do saber. Uma dificuldade para as crianças de hoje (e o vemos na
enorme quantidade de crianças diagnosticadas com déficit de atenção
ou hiperatividade), é a de poderem ficar sentadas cinco horas
numa escola, o que não acontecia em outras civilizações. O
curioso é que parece como uma epidemia o fato de que há mais e
mais crianças que não podem renunciar a este gozo do corpo a
corpo, das brigas, a agressão física, sem falar da violência
desproporcional característica das turmas de adolescentes. Todo
este sofrimento funda a idéia de uma patologia da infância e da
adolescência. Diz-se que as crianças não suportam as proibições,
não toleram as regras.
Poderia
esclarecer um pouco mais o que acontece agora nas escolas?
Ao
impor a educação universal e dizer que todas as crianças têm
direitos iguais, ao colocá-las todas no mesmo dispositivo, há
patologias que entram dentro deste dispositivo escolar que não
estavam lá antes. Por outro lado, com o aumento da precariedade
do mundo do trabalho, cada vez mais, pela pressão que existe, as
crianças são abandonadas. Antes tinham mães para se ocuparem
com elas. Agora a televisão se ocupa. A televisão é como uma
medicação, é como dar um hipnótico: fazer dormir... É uma
medicação que utilizam, tanto as crianças como os adultos, para
ficarem tranqüilos diante das bobagens da tela. Mas, a televisão
comum a toda a família não é a oração coletiva da tradição,
aquela que permitia vincular os membros da família através dos
rituais. Quando o único ritual é a televisão, comer diante
dela, falar sobre ela ou ficar em silêncio diante desse aparato,
isto permite articular pouco esta posição do pai entre proibição
e autorização. A escola é, então, precisamente a que articula
esta função: os professores aparecem como representantes dos
ideais e isto aguça a oposição entre crianças e o dispositivo
escolar, transformando as patologias, que não podem se reduzir
estritamente a algo biológico nem a algo cultural, na imbricação
destas dentro do dispositivo da escola.
Você
mencionou Lewis e Tolkien como duas pessoas que a partir da
literatura quiseram propor modelos identificatórios possíveis.
Numa época de queda dos ideais, como orientar as crianças nesse
sentido?
A
literatura é sempre uma excelente via para orientar-se. Depois da
queda da Primeira Guerra Mundial, da queda dos ideais, os
intelectuais estavam preocupados em como se orientar, e orientar a
geração que adviria. Alguns escritores explicitamente pensaram
em elaborar, com sua obra, uma maneira de proteger as crianças da
tentação do niilismo, e orientá-las na cultura e nas
dificuldades da civilização, apresentar figuras nas quais o
desejo pudesse articular-se num relato. Com O
Senhor dos Anéis, Tolkien fez uma tentativa de propor às
crianças, aos jovens, uma versão da religião, um discurso sobre
o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os corpos, as
transformações do corpo, todos esses mistérios do sexo, do mal,
que atravessa uma criança; versões da paternidade. Tolkien
conseguiu algo: há muitas crianças para as quais o único
discurso que conheceram e que lhes interessa sobre isto é O
Senhor dos Anéis nos três episódios. Da mesma maneira, um
escritor católico, como C.S. Lewis fez com as Crônicas
de Nárnia uma versão da mitologia cristã sobre a abordagem
dos temas do bem e do mal, da paternidade, da sexualidade. Graças
ao cinema, Tolkien saiu de seus anos trinta, mas para uma geração
foi Harry Potter que articula a diferença entre o mundo dos
humanos e o mundo ideal dos bruxos, povoado de ameaças, onde o
bem e o mal se apresentam como versões do discurso.
O
que podem encontrar as crianças na literatura?
Harry
Potter foi, para muitas crianças, inclusive as minhas, uma
companhia: ir crescendo da infância à adolescência ao longo dos
cinco ou seis tomos da história. Ademais, apresentou figuras de
identificação muito úteis. Uma criança podia prestar atenção
ao que lhe dizia Harry Potter, precisamente, sobre como se
articulam o bem e o mal, sobre como devem se comportar na vida e
como manejar as aparências e os sentimentos contraditórios que
alguém pode conhecer ao mesmo tempo. São ferramentas para salvar
as gerações da tentação do niilismo, do pensar que não há
nada que valha a pena como discurso. Quando nada vale como
discurso, há violência. O único interesse, então, é atacar o
outro. A crise dos ideais que se abriu com o fim da Primeira
Guerra não se desvaneceu. A que deveríamos prestar atenção?
Hoje vemos um chamado a uma nova ordem moral, apoiada no retorno
da religião como moral quotidiana. Quando na Europa há violência
nos subúrbios, faz-se um chamado aos imãs muçulmanos para que
dirijam um discurso de paz aos jovens da imigração. Também aos
pais, para tratar de ordenar um pouco o caos engendrado por esses
jovens desamparados, que manifestam condutas estritamente
autodestrutivas pela desesperança em que estão afundados. Na
esfera política, através da famosa oposição entre as questões
de temas e valores, vemos que agora o tema é moral. Há uma tendência
a pensar que para voltar a obter uma certa calma na civilização,
necessita-se multiplicar as proibições, que a tolerância zero
é muito importante para restaurar a firmeza da ordem, que as
pessoas tenham o temor da lei para lutar contra seus maus
costumes. Os analistas, diante desta restauração da lei moral,
sabem que toda moral comporta um revés, que é um empuxo superegóico
à transgressão. Precisamente, a idéia dos analistas em sua
experiência clínica é que sabem que quando a lei se apresenta
somente como proibição, inclusive proibição feroz, provoca um
empuxo feroz, seja à autodestruição, seja à destruição do
outro que vem somente proibir. Há que autorizar aos sujeitos a
respeitar-se a si mesmos, não somente a pensar como os que têm
que padecer a interdição, senão que podem reconhecer-se na
civilização. Isto implica não abandoná-los, falar-lhes mais além
da proibição, falar a esses jovens que têm estas dificuldades
para que possam suportar uma lei que proíbe, mas que autoriza
também outras coisas. Há que falar-lhes de uma maneira tal que não
sejam somente sujeitos que têm que entrar nestes discursos de
maneira autoritária, porque se fizer isso, vai provocar uma reação
forte com sintomas sociais que vão manifestar a presença da
morte.
Como
criar as crianças nesta época?
Temos
que criar as crianças de uma maneira tal que logrem apreciar-se a
si mesmas, que tenham um lugar, e que não seja um lugar de
desperdício. Na economia global atual, o único trabalho que pode
inscrever-se é um de alta qualificação, ao qual nem sempre vão
ter acesso. Não podemos pensar que vamos sair na frente somente
com a idéia de que se alguém trabalha bem e tem um diploma, vai
encontrar um trabalho. Há crianças que não vão entrar e,
apesar disso, têm que ter um lugar na nossa civilização. Não
podemos abandoná-las. E este é o desafio mais importante que
temos, o dever que nós temos diante delas. Conceber um discurso
que possa alojá-los dentro da economia global.
Por
Verônica Rubens.
Tradução
de Maria Luiza Caldas.
Nota
1.
In: La Nación, Edición Impresa
http://www.lanacion.com.ar/edicionImpresa/index.asp?
Revista
http://www.lanacion.com.ar/edicionimpresa/suplementos/Revista/index.asp?
Domingo, 3 de junho de 2007.
http://www.lanacion.com.ar/edicionimpresa/suplementos/revista/nota.aspnota_id=912774
Julho/2007
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