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A
tese sobre “A Escola de Lacan e a formação psicanalítica”
leva
ao exame externo um
tema de atualidade no movimento psicanalítico, a
Escola criada por Jacques Lacan, com as questões que lhe são
essenciais: o fim da análise, o procedimento do passe e a
formação dos psicanalistas. Noções essas que pretendi tratar
como conceitos, e não como preceitos. Partindo do Movimento
Psicanalítico, minha tese examina a sociedade psicanalítica
criada por Sigmund Freud e, as outras sociedades geradas no
decorrer desse movimento, para demonstrar o que defendo: “não
psicanalista sem Escola”.
Estudar
hoje a Escola de Lacan e a formação do psicanalista fora do
recinto das próprias instituições que desde sempre formaram
os analistas não parece um desafio menor, uma vez que coube a
elas essa delicada e difícil missão.
No
início do século XXI, pouco mais de 100 anos depois do
surgimento da psicanálise de Sigmund Freud e 40 anos após a
“Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da
Escola”, de Jacques Lacan, apresentar uma tese sobre o assunto
é um desafio que empreendi por considerá-lo tão necessário
quanto instigador.
Ao
trazer para a academia, a instituição psicanalítica, a Escola
de Lacan, o procedimentos do passe e o fim da análise pretendi
examiná-los e avaliá-los com o rigor que lhes cabe. Dessa
forma, introduzir-se-iam e por-se-iam à prova da demonstração
acadêmica a própria existência do grupo psicanalítico e a
formação que ele dispensa. Tratei, pois, de estudar a Escola
de Lacan e a formação do psicanalista com ênfase nas
relações entre o fim da análise e o dispositivo do passe. E
tratei de examinar com cuidado o que se comprova como sendo o
produto de uma análise: o analista.
A
Escola de Lacan e a formação do psicanalista
Na
minha tese, procurei defender a idéia de que sem a Escola –
seu conceito e seu dispositivo – não há como existir o
psicanalista. As razões epistêmicas, contidas no “Ato de
Fundação da Escola Freudiana de Paris”, de 1964; as razões
clínicas, apresentadas na “Proposição de 9 de Outubro de
1967 sobre o Psicanalista da Escola”; e as razões políticas,
enunciadas na “Carta de Dissolução”, de 1980, justificam a
idéia deste estudo – de que é nessa conjunção de
conceitos, noções e acontecimentos que se dá a formação do
psicanalista. Abordo a sociedade psicanalítica criada por
Sigmund Freud, sociedade que está na origem do acontecimento
chamado “Movimento Psicanalítico”. Investiguei também as
sociedades psicanalíticas que dele se originaram na Europa e na
América.
A
história do movimento psicanalítico forneceu-me elementos
necessários para pensar a formação psicanalítica na sua
primeira época. Empreendo o exame da
fundação e da dissolução da Escola
Freudiana de Paris sua contra-experiência − a Escola da
Causa Freudiana −, assim como a criação da Associação
Mundial de Psicanálise. Trato
da Escola de Lacan e exploro os textos institucionais sobre a
Escola e sobre o passe, especialmente o “Ato de Fundação”
e a “Proposição de 9 de Outubro” para dar conta dos eixos
essenciais à formação do psicanalista: o fim da análise e o
procedimento do passe, seus
paradoxos e impasses, assim como as novas perspectivas do passe,
para demonstrar que não há analista sem Escola e que a
formação do analista supõe o fim da análise e o procedimento
do passe.
A
idéia central desta tese sobre a Escola de Lacan e a formação
do analista encontra seu corolário nas premissas mencionadas,
que organizam a concepção central da tese: só há fim de
análise quando existe a nomeação do objeto na entrada em
análise, quando se da a travessia da fantasia e a
identificação ao sinthome; só há analista quando a Escola por meio do dispositivo
do passe garante a sua ex-sistência – o que virá confirmar a
tese de que “não há analista sem Escola”.
Para demonstrar essa formação do psicanalista de forma
rigorosa e adequada no ambiente formal da universidade,
considerei necessária a racionalização desse campo de
noções mediante os matemas que o definem. É por esse
ordenamento dos conceitos freudianos que é possível ver o
surgimento de uma formação psicanalítica, além da
identificação ao analista. Uma formação que leva em conta os
postulados freudianos do além do princípio do prazer e da
pulsão de morte e suas conseqüências para o sujeito.
Na
minha investigação, tentei dar soluções aos impasses dessa
particular formação do analista, diferentemente da formação
desenvolvida nas sociedades criadas por Freud. A formação do
psicanalista, que esta tese propõe, é tributária dessa
clínica do “último ensino de Lacan”, que pretende ir além
do impasse freudiano do fim da análise com a dualidade finita
ou infinita.
A
investigação que realizo segue, portanto, esse desafio
teórico e científico que o ensino de Jacques Lacan elevou ao
grau máximo de exigência intelectual.
Com
o estudo do tema do fim da análise e do passe, proponho uma
tese que se sustenta numa dupla fórmula: por um lado, saber se
o sujeito acede a uma
posição que ex-siste ao sentido, ou seja, e tendo passado pelo
sentido, acede ao “real fora do sentido”, ao “real sem
lei”; e, de outro, considerar a formação do psicanalista
como um saber-fazer com a linguagem.
Os
antecedentes da Escola de Lacan: as Sociedades Psicanalíticas
Para
falar da Sociedade Psicanalítica criada por Freud, a
Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), me remonta a Viena
do começo do século XX, capital do Império Austro-Húngaro,
onde irromperam acontecimentos que marcaram e moldaram em
definitivo a fisionomia intelectual do Novecento,
na Europa e no mundo, e que tiveram influência decisiva na
filosofia e na cultura contemporâneas. Mas entre os
acontecimentos que irrompem nessa época em Viena, nenhum irá
superar, em termos de irradiação universal, o aparecimento da
figura de Sigmund Freud. Médico radicado em Viena, cuja
formação se fizera no Hospital Salpetrière, em Paris, com
Charcot, Sigmund Freud foi não só o criador da psicanálise
– que lhe permitiria desvendar o drama humano do desejo e
abrir ao conhecimento o campo da subjetividade (uma teoria e uma
prática que transformariam profundamente a cultura do homem
ocidental) –, como também o inspirador e organizador de um
movimento psicanalítico internacional destinado a formar os
analistas e a difundir a regra da operação psicanalítica no
mundo.
Não
parece fora de propósito, para situar ainda hoje o estatuto da
psicanálise, rever suas origens e os desafios históricos que
teve de superar para sobreviver num mundo acadêmico hostil.
Para fazer frente a esse “inexorável destino”, Freud dedica
a maior parte de sua existência a desenvolver a teoria de uma
prática de tratamento da neurose baseada no método
psicanalítico por ele inventado. No início do século XX e
após a publicação da grande obra que foi a Traumdeutung, jovens médicos se agruparam ao redor de Freud com o propósito
claro de aprender, exercitar e difundir a psicanálise, em busca
de uma formação psicanalítica.
As
três vertentes do que virá a ser a formação de um
psicanalista – análise pessoal, supervisão da prática e
estudo da teoria – estão ali definidas pelo seu inventor,
quando afirma que o que os jovens médicos buscavam ao se
aproximar dele era aprender, exercitar e difundir a psicanálise
a partir da experiência de alguns que já haviam comprovado a
eficácia da terapêutica analítica. Logo, uma diáspora porá
fim ao dispositivo que Freud erguera no coração da capital do
antigo Império Austro-Húngaro, e o próprio criador da nova
ciência do inconsciente desloca-se de Viena para Londres,
movimento conhecido como o Revisionismo Pós-Freudiano.
Alguns
dos seus discípulos e seguidores fugiriam da Mitteleuropa
em direção ao exílio nos Estados Unidos. Decidiram tomar
a obra “O Ego e o Id” como o texto a partir do qual reinterpretariam toda a obra de
Freud, ou melhor, ficariam somente com o que na totalidade da
obra se harmonizaria com o ego e o id.
Será na América do Norte onde a autonomia do ego
alcançará todo seu vigor e toda sua força, ao ser defendida
por uma série de nomes que, naquela época de entre - guerras,
migraram para o Novo Mundo, especificamente para os Estados
Unidos. A região da América do Sul ficará sob a influência
da IPA em Londres.
Ao
avaliarmos hoje a história do movimento psicanalítico na
França, vemos que ela não contraria a tendência geral
apontada por Freud, embora apresente características próprias,
ao introduzir elementos conceituais que vão determinar o
aparecimento de uma nova época para a teoria e a prática da
obra freudiana na França e no mundo. Nos anos do pós-guerra, a
SPP - Sociedade Psicanalítica de Paris (fundada em 1921)
estará fortemente apoiada nas lideranças de Sacha Nacht,
Daniel Lagache e Jacques Lacan.
Quando Jacques Lacan é nomeado diretor do instituto da
SPP por Sacha Nacht, terá início a crise que desembocará na
“cisão” dentro da primeira sociedade francesa de
psicanálise. Lacan possuía as
condições de realizar um “retorno a Freud”, que produziu
uma verdadeira reviravolta na história do movimento
psicanalítico e, como conseqüência, na formação dos
analistas, ao superar o revisionismo proposto pelos
pós-freudianos.
A
Escola de Lacan fundada em 1964.
A
minha investigação trabalhou com três momentos produzidos
pelo movimento psicanalítico francês: a “cisão”, em 1953,
da Sociedade Psicanalítica de Paris -SPP quando um grupo de
seus membros se desliga para fundar a Sociedade Francesa de
Psicanálise - SFP; o segundo momento seria a “exclusão”,
em 1963, de Jacques Lacan da lista dos membros dessa sociedade,
exclusão essa denominada por ele “excomunhão”; e
o terceiro momento na França, o da “dissolução”, em 1980,
da Escola Freudiana de Paris. (Lacan,
1980).
As
idéias de Lacan sobre a Instituição psicanalítica e a
formação do psicanalista são examinadas na minha tese não
através da idéia de um lacanismo como um movimento observado
de fora, mas a partir de uma leitura da obra de Freud realizada
por Lacan, por meio de uma apropriação dos conceitos que gera
condições para uma ”nova formalização da formação do
psicanalista”. O essencial foi verificar como se dá a
produção do conceito de “escola” e quais as bases, a
partir de 1964, que darão sustentação à formação do
psicanalista.
Através
de seu conceito, a Escola de Lacan intentaria dar uma nova forma
à velha questão que percorreu todas as sociedades
psicanalíticas: deverá, na sua prática institucional,
responder a pergunta sobre quem é o “psicanalista”. O
conceito de Escola reúne sujeitos que se dizem analistas, mas
ela pretende complicar essa nomeação que ele se dá. Na
Escola, o psicanalista, se “autoriza por si mesmo”.
A
Escola, através de seu conceito, pretende resolver o espectro
dessas condições e recentrar o problema da garantia de que é
um analista.
Assim, a instituição fundada por Jacques Lacan responde à
estrutura do não - todo, onde os psicanalistas, sujeitos
divididos quanto a seu desejo, não podem apelar ao Um da
exceção na Escola, ao menos um, que funda o todo. Na
Escola de Lacan, “procede-se pela imersão do sujeito em um
meio que agita a falta de saber, e é o que mais importa”. (Miller,
2001) A
Escola de Lacan é o lugar para onde convergem os paradoxos que
engendra o postulado da formação do psicanalista: alguém que
é produto de uma análise − e que, portanto, se forma num
tratamento − e do saber que ele deve deter para a
realização da prática futura da psicanálise.
A
formação psicanalítica e o
fim da análise
O
psicanalista se forma, é um fato e uma necessidade; não há
psicanalista nato; se houvesse psicanalistas natos, não seria
preciso formá-los, seria suficiente descobri-los. Em 1910, no
momento da criação da Sociedade Psicanalítica Internacional -
IPA, recomendou-se a análise pessoal, que logo se torna
obrigatória, para a formação do psicanalista. Em
1936, Sigmund Freud escreve um de seus últimos textos. (Freud,
1934) É possível e necessário fixar um tempo para o
tratamento? Existe algo que possa chamar-se de término natural
de uma psicanálise? Freud
chegou ao ponto em que se marca um limite para uma análise,
mas, ao mesmo tempo, esse limite aponta para um além, sendo
então possível relançar o processo para, de alguma maneira,
torná-lo terminável. O retorno a Freud que Jacques Lacan
preconiza tem, na temática do fim da análise, uma importante
fundamentação na concepção freudiana sobre a análise como
um tratamento que pode ser interminável.
A elaboração freudiana do fim da análise será levada
as suas últimas conseqüências no ensino de Jacques
Lacan.
O
fim da análise como a travessia da fantasia. No primeiro
momento de seu ensino, Lacan situa o fim da análise em
relação à fantasia, sendo o sintoma aquilo que se precipita
na formalização da entrada em análise. A travessia
da fantasia é uma construção das condições de gozo do
sujeito e das suas modalidades.
A idéia lacaniana de uma falta
fundamental no simbólico, esse vazio criado pela falta de um
significante para nomear o Todo, transforma a linguagem num todo
não-consistente. É o que a fantasia comprova, conquanto a
fantasia fundamental seja uma frase gramatical que surge para
nomear essa falta. A travessia da fantasia é a construção de
um fragmento de real que entra no simbólico na forma de uma
frase gramatical e que não pode ser explicada. Seu sentido não
pode ser explicitado, seu valor não é semântico, ela vale por
si mesma, embora seja capaz de reconstituir um pedaço do real.
O
fim da análise como identificação ao sinthome.
A partir dos anos setenta, tendo como
suporte o nó borromeano, Jacques Lacan (1975-76) se afasta da clínica
do sentido para ir em direção a uma psicanálise fora do
sentido, uma psicanálise sem
ponto de basta. Nesses anos haverá um deslocamento do fim da
análise como atravessamento da fantasia para o fim da análise
como identificação ao sinthome.
A oposição entre sinthome
e
inconsciente significa que Lacan pode desenvolver a natureza do sinthome,
sem fazer referência ao inconsciente. Isto porque James Joyce
dá a Lacan “a prática da sua escrita”. Lacan diz no Seminário
XXIII, Le sinthome,
que ele «tenta introduzir alguma coisa que possa ir mais longe
que o inconsciente para chegar ao “sinthome”.
O
sinthome é o que há
de mais singular em cada individuo” segundo afirma J.-A.
Miller nas aula de seu curso de 14 de março de 2007.
Defendo, na minha tese, que para demonstrar a validade do
fim da análise como identificação ao sinthoma
é necessário colocar
-sintoma e fantasia- dentro do mesmo parêntese e obter com isso
a definição Sinthome (Sintoma
+ Fantasia). Foi James Joyce que
inspirou a Lacan o seu último ensino e sob esse novo
ângulo, sob essa nova perspectiva, a diferença entre as duas
dimensões clínicas do sintoma e da fantasia se desvanece;
trata -se sempre de um olhar sobre o “saber - no - real”.
Há uma desvalorização da palavra que significa que
Lacan põe pelo avesso seu ensino, constituindo uma reviravolta
completa, em que não se trata mais do inconsciente estruturado
como uma linguagem, mas da “estrutura elevada ao nível do
real”. E produz um deslocamento do “conceito de
linguagem”, sendo substituído pela “elucubração”,
colocada esta como uma noção central da “Psicanálise fora -
do - sentido”.
Defendo
que na psicanálise, como “elucubração”, o que faz laço
não é mais o “ponto de basta”, (ponto de estofo) e sim o
nó borromeano. O sinthome
(Seminário XXIII) como “fora – do –discurso”, como o
incurável, interroga o próprio discurso psicanalítico. Isso
constitui o sinthome
para cada sujeito, seu núcleo inanalisável, que Freud chamou
de “o rochedo da castração”.
A interpretação que Jacques Lacan faz do conjunto da
obra de James Joyce, além de dar ao sintoma um estatuto de sinthome,
também lhe servirá para novas propostas sobre temas da teoria
psicanalítica, como o do Pai-sintoma, que universaliza o
sintoma, pluraliza o Nome-do-Pai e o transforma em sinthome.
O
sinthome é um ponto
de chegada, o limite, o fim da análise, e na minha tese,
esforcei-me para demonstrar seu valor de uso com a finalidade de
fazer existir um fim possível da análise, um fim que diz
respeito à formação do psicanalista.
Assim o psicanalista não
poderá ser somente um médico da alma, conhecedor da biologia e
as técnicas científicas para diagnosticar e curar, porque o
fim da análise como identificação ao sinthome,
significa ter alcançado um “saber - fazer” com seu sintoma,
um saber - fazer com seu gozo, saber virar-se com o real do seu
gozo. Pensar
a psicanálise fora do sentido é pensar “o não-sabido, que
se sabe, a partir de um equívoco”.
(Lacan,1976-77)
Defendo
que, no sistema de Lacan, o sintoma é sempre uma ficção do
inconsciente, uma parte do discurso do Outro, e após a
dissolução desse sistema de Lacan, o que vem como sinthome «não é uma função do inconsciente».
Vou citar como exemplo dessa construção Joyceana da
qual Lacan se apropria para a sua criação do “amar ao
sinthoma”, um significativo trecho da transcrição de Haroldo
de Campus, fragmento 5 do “Panorama do Finnegans Wake” onde
lemos:
“Aos
quais, se alguém tiver estômago para aditar as fraturas,
soergueduras, distorções, inversões de toda essa artifeita
câmeramúsica, esse alguém então, dado um dedo de
boa-vontade, há de ter uma bela chance de ver de vista o
dervixe remoinhante, Tumultus, filho do Trovão, autoexilado por
alto recreio de seu ego, tremetremendo noitadentro noitafio
entremixto aos aurrores branco-rubros, meiodiaterrado desde a
pele ao osso por um fantasma inelutável (que o Fazedor tenha
mercíades dele!) escrevendo o mimstério de sivendo no
moviliário furnituro” (Joyce
apud Campos, 1971,
p. 49).
A
Escola de Lacan e o procedimento do passe
Defendo
que o conceito de Escola, os princípios do passe e as normas
que regulam a formação do psicanalista contidos nos textos
institucionais redigidos por Jacques Lacan “Ato de Fundação
da Escola Freudiana de Paris” (1964), “Proposição de 9 de
Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola” e “Carta de
Dissolução” (1980), ao articular a Escola e o passe - podem
demonstrar como a Escola de Lacan, -diferentemente das
Sociedades Psicanalíticas-,
se engaja na formação do psicanalista.
Uma
das minhas premissas foi afirmar que o desejo de Lacan
conduzirá a Escola a assumir uma forma de existir além do
complexo do Édipo: será a forma de uma estrutura baseada numa
série, tal qual um conjunto inconsistente, um não - todo de
sua práxis como formação e a supervisão dos psicanalistas em
formação. Desse
modo, o Não - todo da Escola de Lacan será compreendido como
uma experiência inaugural pelo fato de que, a cada um que a ela
adira se imporá a subjetivação de sua experiência na Escola,
a subjetivação da Escola.
A
Escola será uma comunidade capaz de se interpretar, isto é, de
dar conta de uma realidade nova na formação dos psicanalistas.
E o procedimento do passe é um instrumento que deve
permitir à Escola pensar a sua prática, diferenciando o
“momento do passe” – que se realiza dentro do dispositivo
analítico, na análise – do “procedimento do passe”, o
que J. A. Miller chama de “passe duplo”.
Defendo que é nessa conexão paradoxal, entre o se
autoriza por si mesmo e a garantia que a Escola outorga, que
deverá ser pensada a formação analítica. Porque há um saber na formação do psicanalista que é
adquirido na análise e que o procedimento do passe pretende
verificar.
Com
o dispositivo do passe, Lacan introduz sua Escola no coração
da experiência analítica, enquanto o procedimento do passe
designa o momento extremo da experiência analítica do sujeito.
Encontro na orientação do simbólico que se dirige ao
real –presente no último ensino de Lacan a partir dos anos
setenta- o ponto fundamental para pensar os paradoxos do passe.
Nesse novo contexto do real sem lei, observo que não se trata
mais de se deter no significante e no sentido do significante. O
passe é uma história que um sujeito conta, “a respeito do
real”, e nele se deverá distinguir
real e semblante. O procedimento do passe é oferecido
pela Escola de Lacan, é ofertado como um risco possível, e
supõe que se confie na teoria do passe, nos passadores, no
júri, -cartel do passe-, na Escola, para aceitar um tal
oferecimento.
As
duas experiências – a do “momento do passe” na análise e
a do “procedimento do passe” – não devem ser confundidas,
porque o procedimento do passe não é obrigatório na Escola de
Lacan, não se estabelece que o fim da análise deva ser
autenticado no dispositivo do passe.
Defendo
na minha tese que as novas
perspectivas sobre a teoria do passe devem ser pensadas a partir
do dispositivo do passe, visto como um elemento essencial ao
conceito de Escola de Lacan. Isso implica reconhecer na
história do movimento psicanalítico a partir de 1964, a
colocação desse dispositivo em funcionamento.
A minha segunda idéia sobre as novas perspectivas do
passe consiste em pensar que o “conceito” de Escola se
completa com a categoria do fim da análise e com o procedimento
do passe. A Escola de Lacan é, assim, o conceito-chave que
garante a formação do psicanalista.
A construção da história que o sujeito faz no passe, que é
um artifício, corresponde à psicanálise do primeiro ensino de
Jacques Lacan.
Porém,
defendo que há uma mudança na conceituação do passe na
medida em que nesse último Lacan utiliza-se do nó borromeano
como aquilo que é capaz de isolar um “real sem lei”.
O passe modifica assim a própria noção de processo
analítico, como diz Jacques Lacan: “o passe modifica um
pouco, porém muda a demanda de análise com fins de
formação”. O passe vem possibilitar o fenômeno
específico da existência de um conjunto de analistas e tentar
dar conta do analista, da possibilidade de se transmitir o que
é um analista.
A
transmutação que o último ensino de Jacques Lacan operou
sobre o sentido, sobre o rechaço do sentido, trouxe a
instância do sinthome
como essencial para sua clínica, na qual não mais se pensa nas
duas dimensões do sintoma e da fantasia, senão no sinthome.
Defendo que a clínica
psicanalítica que se depreende do conceito da Escola de Lacan
funda uma prática cuja entrada em análise se dá pela via do
sintoma, constituído como sintoma analítico, que se estabelece
quando uma interpretação nomeia a fantasia e termina na
identificação ao sinthome.
Penso
ser fundamental
a reflexão teórica sobre o lugar do passe na instituição
psicanalítica e na formação do psicanalista. Essa reflexão
deve abrir para novas propostas não somente sobre a
reconfiguração do procedimento do passe, tendo em conta o
papel da Escola de Lacan, na sociedade contemporânea e na
formação do analista. Esse processo exige uma permanente
crítica e a renovação da instituição analítica,
reafirmando assim o papel da Escola de Lacan em seu valor de
verificação da existência da análise e como meio de
formação do psicanalista.
O
analista
A
formação de um psicanalista implica, assim, levar a análise a
esse ponto-limite onde o objeto vira dejeto, onde sintoma,
significante e letra se equivalem. Ela consiste em chegar à
produção dessa equivalência – letra, resto, lixo, uma
mensagem, e também um objeto.
Para o analista lacaniano, é essa equivalência o que a
insígnia faz.
Um
analista-lettre (carta) é um analista-signo, que define seu significado não
somente como significante, mas pela sua natureza de objeto.
Um
analista-litter (lixo) é um analista-resto, um analista-lixo, um objeto que
deve ser interrogado no campo da linguagem a partir da escrita.
Por fim, se a finalidade da formação de um psicanalista não
consiste somente na aquisição de um saber, mas também em ter
adquirido certas condições subjetivas, uma transformação do
seu ser, que nunca é somente íntima, que se tornou pública,
então, lá, onde no início da análise tínhamos gozo autista,
a análise faz aparecer um analista, operando sobre os sintomas
para produzir um efeito especial de significação.
O
psicanalista será uma letra, um lixo, uma carta sempre a
caminho...
Como
diz o poeta:
“Baste
a quem baste o que lhe basta.
O
bastante de lhe bastar!
A
vida é breve, a alma é vasta:
Ter
é tardar”.
(Fernando
Pessoa, in
Mensagem)
Texto recebido em: 11/03/2007.
Aprovado em: 10/04/2007.
Nota
1.
Texto da defesa de doutoramento em Teoria Psicanalítica no
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, no
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, sob a Orientação da Prof. Dra. Tania Coelho dos
Santos.
Referências
Bibliográficas
campos,
H.; campos, a. Panorama do Finnegans Wake. James
Joyce. São Paulo: Perspectiva, 1971.
FREUD,
Sigmund. (1934) Análisis Terminable e Interminable. In: Obras Completas, Madrid, Editorial BN, 1967, vol. III, p. 540-572.
_____________.
(1976-77) Le Séminaire.
Livre XIV: L’insu que sait de l’une-bévue sáile à mourre, inédito,
aula de 16 de novembro de 1976.
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