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Este
artigo é uma síntese de minha pesquisa de doutoramento, O
destino da anatomia: o inconsciente e suas relações com o
corpo na contemporaneidade1.
As
questões que nos moveram nesta pesquisa foram essencialmente
questões clínicas. Percebemos em nossa clínica privada, nos
últimos anos, um aumento dos casos de obesidade, anorexia e
especialmente dos casos diagnosticados pela medicina como
depressões com sintomas corporais. Verificamos que a literatura
psicanalítica também indicava este aumento (Recalcati,
2001, p. 10-12; Coelho dos
Santos, 2002, p. 153-154). Observamos ainda, que o mito
edipiano enquanto modelo de interpretação da castração
parecia insuficiente para esclarecer ou abarcar o conjunto de
manifestações sintomáticas apresentadas pelos pacientes.
Outro
dado de minha experiência clínica se referia à dificuldade do
trabalho com a palavra. Desde a descrição do sintoma até sua
interpretação, passando pelo cumprimento da regra básica da
psicanálise - “a associação livre” -, em todos esses
níveis se podia observar uma certa desvalorização do poder da
palavra. Os mitos e narrativas em torno do sintoma estavam
ficando mais escassos com um claro predomínio dos fenômenos
corporais. As perguntas que daí se extraía eram: “há
sujeito nesses sintomas?” e “de que modo esses
acontecimentos no corpo se ligam ao inconsciente?”.
Aqui
uma questão metodológica: dada a grande diversidade de teorias
psicanalíticas que abordam os fenômenos corporais, porém, com
referenciais distintos, o que as torna incomparáveis, optei por
trabalhar com a Orientação Lacaniana produzida pelos teóricos
do Campo Freudiano.
Orientando-nos
então pela pesquisa de Jacques-Alain Miller e Eric Laurent em
seu seminário o Outro que
não existe e seus Comitês de Ética (Miller
& Laurent,
1996-97) e pelos
desenvolvimentos desta pesquisa produzidos pelo Núcleo Sephora2,
decidimos situar esta pesquisa em quatro níveis. Primeiro
contextualizamos os “novos sintomas”. Uma anorexia do
início do século, por exemplo, não poderia ser considerada do
mesmo modo que hoje quando o Outro não é mais consistente, mas
plural, fluido, construído, muitas vezes, nos laços sociais
mais próximos do sujeito. Se o sintoma psicanalítico foi
pensado por Freud como a mensagem inconsciente dirigida pelo
sujeito ao Outro da cultura representado na figura paterna,
faz-se mister encontrar os modos singulares de relação do
sujeito contemporâneo ao pai - enquanto lei que organiza a
relação do sujeito ao real – hoje, quando não existem mais
leis universais de identificação.
Em
segundo lugar, analisamos a própria concepção de sintoma e
suas variações na teoria psicanalítica. As articulações
entre o corpo e o sintoma não foram sempre as mesmas no campo
psicanalítico, nem mesmo na obra lacaniana. As passagens
teóricas entre a compreensão do corpo tomado como imagem,
passando pelo corpo recoberto por significantes, até o corpo
real que acolhe a letra e dela se vivifica, implicam em
diferentes perspectivas da clínica.
A
terceira via desta
pesquisa foi a de levantar as articulações entre as
variações do conceito de sintoma e sua relação ao
inconsciente. A análise do conceito de sinthoma, grafado como
no grego antigo, com th, proposto por Lacan, referindo-se ao
sintoma que humaniza (ou ‘hominiza’), nos exigiu pensar um
inconsciente para além do código de linguagem, um inconsciente
composto dos restos de uma língua primeira – alíngua - que
vivifica o corpo, constituindo-o como zonas de gozo. Nesta
perspectiva teórica, o sintoma como mensagem foi substituído
pelo sintoma signo de gozo. A constituição subjetiva parecia,
nesta perspectiva, dispensar o Outro e dar-se inteiramente no
âmbito do auto-erotismo. Qual seria então o estatuto do
inconsciente nesta concepção?
Sabemos
que o próprio Lacan se pergunta em seu Seminário Le
Sinthome (Lacan,
2005, p. 101-102) se o inconsciente seria imaginário ou real,
já distante, portanto, de sua acepção original do
inconsciente simbólico. Este tópico, como outros, permaneceu
aberto no campo lacaniano, e Miller, inclusive, vem se
debruçando sobre ele em seu seminário atual. Entretanto, em
sua conferência no Encontro Mundial da AMP2, de
2004, em Comandatuba, Miller, discutindo as relações entre a
sociedade hipermoderna e o discurso analítico, levanta a
pergunta sobre se o inconsciente seria corporal (Miller,
2005a, p. 17). Procuramos então analisar este aspecto a luz de
seu seminário Peças
Avulsas. Miller, acompanhando a mudança de referencial que
Lacan produziu em seu ensino nos anos 70, quando passa a dar
ênfase ao gozo como o limite das ficções do inconsciente,
mostra que nesta perspectiva passamos do inconsciente como
sistema (aquele que se revela na formulação “o
inconsciente é estruturado como linguagem”) para o
inconsciente elementarizado, constituído de alíngua, essa
massa sonora que marca o corpo do infans.
Tomando então a consistência imaginária do corpo como
referência, Miller se pergunta se o inconsciente produtor de
ficções de verdade não é ele próprio uma consistência
imaginária, uma elucubração sobre esse furo no real que se
refere à inexistência de relação entre os sexos para o
falante. (Miller,
2004/05, p. 23). Nesse sentido, compreendemos que o sinthoma –
o que rateia e se repete do amálgama alíngua/corpo – é o
limite do inconsciente. O inconsciente é, então, corpo e é
linguagem. É corpo no seu fundamento de gozo e é linguagem no
seu funcionamento.
No
que se refere então às relações entre a subjetividade e a
alteridade, nesta perspectiva teórica que toma como eixo o gozo
e o sinthoma, o vértice dessa conceituação é a
pluralização dos Nomes-do-pai. Esta concepção nos permitiu
pensar os novos sintomas como constituições subjetivas que
podem, eventualmente, passar ao largo da mítica edipiana,
amarrando os registros simbólico, imaginário e real através
de elementos outros que não a metáfora paterna; dispensando o
Nome-do-pai, porém servindo-se dele.
O
trabalho de Conversações realizado pela AMP entre 1996 e 1999
acerca do que se chamou de “inclassificáveis da clínica
psicanalítica”3, nos permitiu ver organizações
sintomáticas que, por não estarem ancoradas na metáfora
paterna, estabeleciam ligações fluidas e intermitentes com o
Outro. No último encontro em Antibes, destacou-se uma categoria
clínica, a das psicoses ordinárias, ou psicoses não
desencadeadas. A teoria das psicoses ordinárias nos conduziu a
observar não somente a existência da metáfora paterna na
constituição do sintoma, mas especialmente seu uso. Foi
necessário seguir com Lacan a passagem da concepção da
metáfora paterna à da função paterna, para que pudéssemos
encontrar as referências para o diagnóstico de muitos desses
quadros contemporâneos. Apoiando-nos na proposição lacaniana,
do Seminário 23, de que o Nome do pai é possível
dispensá-lo (ultrapassá-lo) com a condição de dele se servir
(Lacan, 1975-76, p. 136), levantamos a hipótese de que alguns
desses sintomas contemporâneos onde o sintoma parece
organizar-se à margem do complexo edipiano, onde não se
destaca claramente uma estrutura fantasmática, poderiam
tratar-se, na verdade, de soluções e não de sintomas.
Tomando-se como válida a distinção entre neurose e psicose
marcada pela presença ou ausência da metáfora paterna,
haveríamos então que considerar que além dos casos de
psicoses ordinárias - aqueles onde a nodulação entre os
registros se estabelece por um elemento não simbólico -
haveria também casos onde a metáfora paterna existe, porém se
encontra apagada por uma identificação de gozo oferecida pela
cultura. Essas seriam as neuroses contemporâneas.
Em
alguns casos, a despeito da não localização de fenômenos
elementares e do desencadeamento, a ausência de sustentação
subjetiva através da metáfora paterna revela que estas
soluções seriam formas de compensação imaginária que
protegeriam o sujeito do contato com o vazio relativo à sua
origem subjetiva. Porém, em outros casos onde o trabalho
analítico pode fazer aparecer alguns elementos do fantasma ao
cabo de um tempo preliminar da análise, produzindo alguma
divisão subjetiva e o destacamento do objeto, os acontecimentos
no corpo talvez sejam soluções que, em sua vigência, implicam
um “não servir-se” convenientemente do Nome-do-pai.
O
quarto nível em que desenvolvemos esta pesquisa diz respeito
justamente ao papel do sexo na constituição dos novos
sintomas. Complementando nossa hipótese, nesses casos de
neuroses não claramente constituídas, haveria um recuo diante
da escolha sexual e a fixação numa posição de indiferença
sustentada por um modo de gozo comunitário. Diante da
impossibilidade de relação entre os sexos alguns sujeitos
recuariam dos constrangimentos impostos pela ordem fálica e
conseqüentemente isto os alijaria do acesso ao outro sexo - .
Procuramos sublinhar, assim, que os chamados “novos
sintomas” não podem desvincular-se da cultura de onde
provêm. São frutos da era do Outro
que não existe, o que obriga cada sujeito a apoiar-se no
recurso a um significante-mestre isolado, oferecido pelo mercado
do qual o sujeito se serve para nomear o real.
Neste
ponto gostaria de fazer um esclarecimento que me foi suscitado
pela leitura do artigo da professora Ana Maria Rudge, “As
teorias do sujeito contemporâneo e os destinos da
psicanálise” (Rudge,
2006, p. 16). Partilho com ela do cuidado em destacar que uma
teorização acerca da contemporaneidade não deve resultar numa
teoria generalizante da subjetividade contemporânea. Diria que
esta foi uma preocupação constante durante todo o processo de
elaboração dessa pesquisa. Parece-me absolutamente fundamental
que a tentativa de organizar o saber teórico da psicanálise
num conjunto coerente, capaz de abarcar os sintomas atuais, não
leve ao engodo de supor uma subjetividade pós-moderna típica.
O sujeito ao qual a psicanálise se dedica é o sujeito da
ciência e, portanto, o da civilização ocidental. Entretanto,
um sujeito e suas experiências singulares ultrapassa sempre as
construções teóricas sobre ele. E me parece que é justamente
na problematização destas diferenças que a teoria se
enriquece. Nesta pesquisa, tentamos levantar alguns aspectos
teóricos gerais, especialmente alguns índices da relação do
sujeito ao corpo na clínica dos novos sintomas. Buscamos
recursos teóricos para compreensão destes sintomas que, ainda
que sempre tenham existido, respondem hoje a uma cultura com
características bastante específicas.
Tomando
então o corpo como referência, vimos que os dois quadros mais
freqüentes na clínica atual são: a astenia, quase sempre
chamada de depressão,
e o excesso, que freqüentemente aparece sob a forma de compulsão. Estes dois modos de apresentação corporal parecem
efeitos típicos do deslocamento do papel do objeto na
constituição subjetiva contemporânea. O objeto na perspectiva
original da psicanálise estaria no lugar da causa subjetiva. Na
divisão significante, o sujeito se repartiria entre demanda e
desejo ou entre falta-a-ser e gozo, e se precipitaria movido
pelo objeto como causa. A passagem da modernidade à
contemporaneidade parece ter elevado o objeto em sua face de
meio de satisfação, ao centro da vida social, transformando
assim, o sujeito em consumidor. A conseqüência direta para
muitas subjetividades foi a prevalência do mais-de-gozar. Nesta
nova clínica verifica-se, freqüentemente, que a relação do
sujeito aos objetos parece passar ao largo da estrutura
fantasmática, não apontando um desejo singular, mas uma
fixação ao mais de gozar que resulta numa alta freqüência de
respostas do tipo inércia, pânico ou compulsão.
Para
aprofundar esse estudo e tentar encontrar elementos que
respondessem por esses quadros, fez-se necessário que
percorrêssemos as diferentes perspectivas em que corpo e
linguagem se articularam no campo psicanalítico. Fizemos um
percurso em Freud, destacando, especialmente, o fato de os
sintomas corporais terem sido a matéria prima sobre a qual a
psicanálise veio a operar. Sublinhamos o caráter limítrofe
entre biologia e psicologia que a energética freudiana com o
conceito de pulsão fez surgir. A própria hipótese da pulsão
de morte como “tendência ao inorgânico” refletia essa
linha de pensamento. Desse percurso destacamos o rumo dos
trabalhos freudianos após 1920, quando a questão da
positividade da sexuação feminina entrou fortemente em jogo na
teoria. As conseqüências psíquicas da diferença anatômica
entre os sexos revelaram a sexualidade feminina como limite da
sexualidade fálica. Freud terminou por julgar que o impasse
diante da feminilidade era o limite do analisável para homens e
mulheres (Freud,
1975, p. 285). Entretanto, a releitura de Lacan da energética
freudiana em termos de articulações de linguagem abriu novas
perspectivas para a concepção das relações entre o corpo e a
linguagem, especialmente após o seminário 20 quando formalizou
em termos lógicos o gozo feminino (Lacan, 1985b, p. 105-120).
O
percurso na obra de Lacan nos permitiu ver diferentes
modalidades da articulação corpo/linguagem. A primeira
perspectiva sob a qual Lacan trabalhou o corpo foi a da
“imagem”. Esta mesma concepção, porém, sofreu algumas
retificações ao longo de seu trabalho. Primeiro o corpo foi
tomado como antecipação jubilosa de uma imagem totalizada,
frente à experiência de desorganização que a prematuridade
biológica do humano impunha (Lacan,
1998a). Depois como “forma ideal” já orientada pelos
significantes destacados do campo do Outro. Nesta perspectiva, o
corpo, enquanto consistência imaginária, estaria determinado
pela incidência de um suporte simbólico, sem o qual tal
consistência não se constituiria (Id.,
1998b). Mais tarde, no Seminário 11, Lacan destacou o
valor da imagem não só na formação do eu, mas também do
objeto. Aponta o olhar como o protótipo do lócus do objeto. O
vazio do olhar que se inscreve no campo da reflexão da imagem
situaria a falta subjetiva (Id.,
1985a, p. 69-78).
Como
se pode ver, a biologia foi ficando cada vez mais distante nas
construções de Lacan. Até o Seminário 20, ainda que
em diferentes matizes, a imagem do corpo esteve sempre
articulada à identificação significante. Entretanto, naquilo
que Miller designou como o último ensino, isso se retificou.
Ali, Lacan postula o real psicanalítico como um real sem
lei. Distinto do real da ciência, o real sem lei estaria fora
da organização pela lei fálica. O paradigma dessa perspectiva
é o gozo feminino no qual se verifica a separação entre o
gozo do significante e o gozo do corpo. Assim, por trás da
identificação significante haveria também a identidade de
gozo do falante. No último ensino, a suposição de um real sem
lei recuperou o valor do vivo na teoria, dando preponderância
ao papel do gozo no processo de subjetivação. Daí Miller
falar em uma biologia lacaniana (Miller,
2004, p. 299-317).
A
partir do Seminário 20, Mais,
ainda, Lacan muda então seu ponto de referência. Se nos
primeiros anos de seu ensino o ponto de partida de Lacan era a
linguagem como prévia, autônoma, linguagem que mortificava o
corpo, ao final de seu ensino o ponto de partida é o gozo do
corpo vivo. A marca da letra - o significante fora da cadeia de
sentido - no corpo.
Partir
do gozo é partir do corpo vivo. Nesta perspectiva da origem do
sinthoma, há um autismo de gozo, e as conexões com o Outro
são compreendidas como suplências. Com isso, a nomeação do
real fornecida pela metáfora paterna seria apenas um dos modos
possíveis de nomeação. O ponto central dessa proposição,
colhido por Miller, no seminário de Lacan sobre Joyce, é a
idéia de que o sintoma enquanto fator de “hominização” do
falante é essencialmente um “acontecimento de corpo”.
Esta
mudança de perspectiva da subjetivação implicou também a
mudança de concepção do sintoma. Se antes o sintoma era
concebido como mensagem inconsciente, simbólico por
excelência, na perspectiva do último ensino o sintoma tem sua
face real. Já não é só uma formação do inconsciente. Os
fenômenos que Freud destacou em “Além
do Princípio do Prazer”,
e que o levaram a postular a pulsão de morte, revelaram a
Lacan a face de gozo do sintoma.
No
último ensino, então, a estrutura do sintoma não é a da
palavra, mas a da escrita, em que o significante é independente
da significação. Aqui, o significante tem valor de letra que
se inscreve no corpo e localiza ali um gozo. Nessa perspectiva,
o sinthoma é um composto de sintoma e fantasma, de mensagem
inconsciente e de gozo. O sinthoma opera a conexão entre
simbólico e real. Quando o sintoma é tomado nessa vertente, o
significante-mestre, mais do que um símbolo que representa o
sujeito, é um sintoma produtor de gozo, ele designa o sujeito
como uma resposta do real. Trata-se, aqui, de um real encarnado.
(Miller, 1986-87,
p. 290).
No
Seminário 23,
diferente do que propusera até então, Lacan afirma que os
três registros (real, imaginário e simbólico) são peças
avulsas. Indica também que é esta articulação entre a letra
e o corpo o que virá conferir consistência ao falante (Lacan,
1975-76, p. 65). Essa consistência se refere também a um modo
de gozo. Acreditamos que o tratamento significante dado ao sexo
corporal participa de alíngua. O processo de subjetivação
deve assim fazer-se a partir de uma posição sexuada, um
“modo de gozo”. Quando Lacan trata o sujeito como ser
falante, amalgamando sua realidade significante e sua realidade
de gozo no sinthoma, passa a considerar o ser falante como um
corpo vivo atravessado pela linguagem. Cremos que, nessa
perspectiva, o real como impossível é encarnado na diferença
entre os sexos, uma vez que não existe no plano do gozo a
relação sexual. Não há equivalência entre os sexos.
Se,
no último ensino de Lacan o Nome-do-Pai é tomado como
“invenção”, criação suplementar à desarticulação
original entre os registros, e se essa invenção se faz segundo
uma orientação, como bem indica Dominique Laurent, não se
trata de uma invenção qualquer e sim, bem mais, de uma
“Invenção Orientada” (Laurent,
2003). Parece-nos possível que um fator de orientação seja a
diferença entre os sexos, donde o sexo corporal do falante e os
significantes que o recobrem assumem papel definitivo na
subjetivação do modo próprio de gozo bem como na abordagem do
Outro sexo.
Tomar
como eixo de teorização a inexistência da relação entre os
sexos levou Lacan a formular o sintoma como necessário. O
sintoma seria o que o falante dispõe para fazer face à
inexistência de relação entre os sexos. A não
complementaridade entre os sexos exigiu de Lacan retificações
na teoria do amor. É na parceria amorosa que se atualizam
simultaneamente os impasses e as soluções à inexistência de
relação entre os sexos. A tábua da sexuação formulada por
Lacan no Seminário 20 nos indica os dois modos
possíveis e não complementares de tratamento do gozo.
Subjetivar o sexo é um processo distinto para homens e
mulheres. Nesse sentido, a possibilidade de relação com o
Outro sexo dependerá, para o homem, do reconhecimento de sua
identificação aos significantes paternos, mas também da
possibilidade do sujeito alcançar a boa distância desse laço
amoroso, abandonando alguns traços dessa identificação a fim
de que a suposição de universalidade do modo de gozo paterno (père-version)
abra lugar ao Outro gozo. No caso das mulheres, a sexuação
implica o duplo movimento de permitir-se ser tomada como objeto
fetiche do homem para, desde esse lugar, servir-se do falo que
ela encontra no corpo dele, como instrumento de localização de
seu gozo infinito. Para isso, é necessário que a mulher possa
abdicar também de sua posição de objeto suplementar da falta
de outra mulher (sua mãe). (Coelho
dos Santos, 2006, p. 65-66).
Voltando
então aos sintomas contemporâneos. Com relação a eles, vimos
que a literatura psicanalítica do Campo Freudiano os vem
considerando a partir do paradigma das psicoses ordinárias.
Estruturas cuja fragilidade simbólica e a forte adesão ao
mais-de-gozar fazem pensar em psicoses não desencadeadas, além
de neuroses submersas no imperativo superegóico de gozo, tão
comum na contemporaneidade, obscurecendo a face de desejo
inconsciente do sintoma. Como lembrou Carlo Viganó, a
dificuldade diagnóstica nestes casos se deve à dificuldade em
localizar o trabalho do sujeito nesses sintomas, uma vez que por
se tratar de uma apresentação desmedida do mais de gozar, não
se detecta claramente o rastro do sujeito no sintoma. Numa
neurose clássica estes rastros aparecem claramente nas
formações do inconsciente. Mesmo na tentativa de localização
subjetiva subjacente à metáfora delirante, no caso das
psicoses, o trabalho do sujeito é detectável. Ao invés disso,
nos novos sintomas, o sujeito
“[...]
encontra numa letra, num significante isolado e portador de
gozo, a marca de identidade enquanto alternativa à
articulação do desejo com a pulsão como demanda do Outro,
[...] esta letra se inscreve no corpo mas não divide o sujeito
[...] Esta letra marca o objeto que não pode aceder á montagem
pulsional completa e, em conseqüência , não o separa do Outro
e nem se torna causa de desejo” (VIGANÓ, 2001, p. 64).
Um
efeito disso é a deslocalização de gozo. O corpo não veicula
desejo como na histeria clássica, mas se torna suporte de ditos
de valor superegóico para os quais o sujeito não encontra
nenhum sentido além da pura compulsão à repetição, como bem
destacou a profa. Hebe Tizio no seu artigo sobre A
posição dos profissionais nos aparatos de gestão do sintoma
(Tizio, 2003, p.
167).
Essas
identificações, ao sabor da cultura, exigem que o analista
faça então passar o fenômeno à estrutura. Como então o
analista pode servir-se dos fenômenos no corpo como índices
diagnósticos?
A
significação fálica é o índice do sintoma neurótico.
Índice de que o sujeito tem
um corpo, portanto, participa da partilha dos sexos identificado
com uma posição específica. Nesse sentido, mantêm-se, para a
psicose, as indicações de Lacan em “De uma
questão preliminar...”, de que a foraclusão do
Nome-do-Pai traz como implicação as perturbações do
imaginário ligadas à ausência de referência fálica, o que o
faz buscar ser no corpo. Outro efeito da foraclusão é a
impossibilidade do sujeito identificar-se sexualmente em
conformidade com o desejo do Outro. Decidir sobre sua posição
sexual na ausência da identificação fálica implica a ameaça
de feminização, enquanto sexo sem falo (Lacan,
1998c).
É
preciso então discernir quando esse acontecimento no corpo
localiza um gozo, destacando um objeto, mediado por uma
metáfora fálica, de quando tal fenômeno é uma tentativa de
circunscrever um eu no corpo, puramente imaginária, sem o
recurso ao falo como mediador entre a imagem e o ideal. É
preciso distinguir ainda, quando tais sintomas indicam a
mortificação real do corpo entregue à pulsão de morte por
impossibilidade de qualquer mediação: seja simbólica, seja
imaginária. Neste último caso, tratar-se-ia de uma espécie de
entrega desmedida ao gozo do Outro.
Vimos,
todavia, que alguns sintomas contemporâneos se não estão em
completa ruptura com os constrangimentos da função fálica,
são muitas vezes, um modo de evitar as restrições de gozo que
a lógica fálica impõe. Nesse sentido se encontram expostos ao
empuxo feminizante do Outro sexo, sem o recurso apaziguador da
identificação fálica. As soluções contemporâneas dos novos
sintomas são soluções e não sintomas, como já dissemos,
pois parecem não poderem servir-se adequadamente da metáfora
fálica que o Nome-do-pai produz, localizando uma posição de
gozo, a partir da qual seja possível abordar o Outro sexo.
Será
na parceria com o analista que o sujeito poderá rastrear as
contingências de seu encontro, tanto com a père-version
paterna quanto com o gozo feminino da mãe, reconhecendo e dando
conseqüência à sua particularidade de gozo. A parceria com o
analista se fará menos pela posição agalmática deste e mais
pelo que ele pode acolher e sancionar desse gozo, como parceiro
(Outro). Em outras palavras, uma vez que o analista está
incluído no sintoma, ele pode, desde esse lugar, sancionar o
uso de alguns significantes como significantes-mestres que
orientem a posição do sujeito, isto é, tornar operante o
Nome-do-Pai.
Texto recebido em: 11/03/2007.
Aprovado
em: 10/04/2007.
Notas
1.
Defendida, em 2007, no âmbito do Programa de Pós-graduação
em Teoria Psicanalítica (PPGTP), Instituto de Psicologia (IP),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2.
Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo /
PPGTP / IP / UFRJ (<www.nucleosephora.com>).
3.
Associação Mundial de Psicanálise.
4.
Angers, Arcachon e Antibes foram Conversações entre as
Seções de língua francesa do Campo Freudiano, realizadas
respectivamente nos anos de 1996, 1997 e 1999, e que tinham como
tema central as mudanças na clínica psicanalítica
contemporânea, especialmente o que se designou, na época, como
as dificuldades de classificação.
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