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Introdução
Hoje,
nos deparamos com a criação de uma nova sintomatologia psiquiátrica:
a hiperatividade. Originalmente a psiquiatria a classificou como
um distúrbio do comportamento, designando-o como uma “agitação”.
Assim, temos uma aproximação de dois termos: agitação e
hiperatividade. Trata-se de um corpo vivente onde o movimento do
sujeito é considerado desordenado ao olhar do observador. No
entanto, é preciso fazer uma distinção entre esses dois
termos na clínica. O primeiro refere-se à clínica do olhar, e
necessita de um Outro consistente, Outro da lei que reconheça o
sujeito agitado. Existe aí um julgamento de valor, que incide
sobre a distinção entre os comportamentos socialmente
apropriados e aqueles que são impróprios. O segundo também se
refere à clínica do olhar, mas comporta uma nova segregação
em nome da ciência. O hiperativo não é somente um agitado,
mal-comportado. O hiperativo é um quadro clínico e como tal
destitui o Outro consistente da lei, substituindo-o pelo novo
“homem sem qualidades”,1 o indivíduo
estatisticamente padrão. A ciência moderna busca enquadrar os
sujeitos, a partir de uma norma do comportamento ditada pelos
estudos estatísticos, comparativos, que não se importam com a
singularidade. Assim, a criança hiperativa é identificada por
um comportamento fora da norma, pois a ciência quantifica seu
comportamento e estabelece que se trata de um sintoma que desvia
do normal.
A
partir dos anos vinte, a escola francesa de psiquiatria composta
por Henri Wallon, Julian de Ajuriaguerra, Serge Lebovici, René
Diatkine e Michel Soulé, propõe-nos a noção de
“instabilidade motora”. Para esses autores, a hiperatividade
é uma manifestação sintomática de um comportamento ansioso;
ou uma defesa maníaca frente à depressão baseando-se no
conceito kleiniano. A escola anglo-saxônica escolhe uma concepção
neurológica e generaliza o uso do termo hiperatividade, que
inicialmente designava os comportamentos oriundos das seqüelas
das encefalites. Sua hipótese orgânica eleva o distúrbio à
mesma dimensão das lesões cerebrais, um disfuncionamento
cerebral, o que os leva a fazer uso da substância anfetamina
para tratá-lo. Nos Estados Unidos já foram publicados diversos
artigos, apontando a eficácia do tratamento com esta substância
em crianças. O DSM III e IV propõe a terminologia
“Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade”, o que
abre a possibilidade de que ele seja tratado pelo cognitivismo
comportamental. Inicialmente esse transtorno era isolado, mas
hoje em dia ele é associado a outros, tais como o transtorno da
aprendizagem, da linguagem, do comportamento e da ansiedade.
A
pantomima do sujeito
Podemos
nos perguntar: qual é o parceiro do sujeito hiperativo? O olhar
que o vigia, o avalia e o classifica? Ou um discurso que ele
ignora? Partimos da hipótese de que a hiperatividade, chamada
pelo behaviorista de distúrbio do comportamento, seja a
pantomima de um texto à espera de ser lido. As terapias
cognitivas comportamentais visam o retorno da ordem dos distúrbios
do comportamento, onde o corpo aparece com a capacidade
instintual de adaptação a ser reeducado. O behaviorista,
aliando-se ao discurso do mestre, pretende ter uma solução
para a provocação do comportamento, foracluindo um além da
psique. Para nós, a hiperatividade é uma resposta do sujeito
frente à insegurança linguageira que enrijece desde seu
encontro com o buraco da significação da língua,
confrontando-o a um impossível de dizer, frente ao excesso de
gozo que invade seu corpo e o deixa fora do discurso.
Algumas
crianças hiperativas nos mostram a dificuldade que elas têm de
alojar o seu ser vivente no sistema significante. Seu ser, seu
corpo, seus pensamentos encontram-se tomados por uma submissão
extrema ao Outro da demanda, posto que este não as orienta para
o Outro do desejo, ou o desejo se declina como pura vontade de
gozo. Para outras crianças, o sintoma de agitação vem no
lugar onde o Outro do desejo não pôde responder ao gozo
pulsional, onde o Outro do significante não pôde escrever uma
resposta para dar conta do gozo.
O
falo hiperativo
Pensar
a hiperatividade como um transtorno da atenção é sublinhar
que a atenção da criança está transtornada pelo excesso
libidinal da mãe, que a mantém em posição de objeto fetiche.
Maryse Roy (2001, p. 67) nos propõe considerar as crianças
hiperativas como crianças-sintomas, uma versão da histeria
feminina moderna, onde a criança hiperativa é o falo
hiperativo da mãe, o que vem saturar a sua falta. Assim, o
sintoma da criança é uma modalidade de resposta frente à
falta da mãe.
Lacan,
ao retomar a concepção freudiana do objeto no movimento
psicanalítico pós-freudiano, articula a relação do sujeito
com o objeto em três níveis sincrônicos: imaginário, real e
simbólico. Temos aqui três elementos presentes: o sujeito, o
objeto e o Outro como agente da operação. Essa noção do
Outro encontramos desde Freud sob a forma de sedução na relação
mãe-criança. Winnicott aponta uma relação de dependência da
criança com a sua mãe, mas a ausência de articulação da função
simbólica reduz a relação do sujeito ao Outro a uma relação
dual, imaginária.
No
seminário “A relação de objeto”, Lacan introduz uma
primeira subversão não falando mais da relação de objeto, e
sim da relação do sujeito à falta do objeto. A partir dessa
articulação da relação de objeto com a falta, Lacan formula
uma versão do complexo de Édipo em três tempos que não são
cronológicos, mas sim lógicos: frustração, privação e
castração.
No
primeiro momento, a criança procura satisfazer o desejo da mãe,
ou seja, ser ou não ser o objeto de desejo da mãe. Trata-se da
identificação do sujeito no espelho com aquilo que é objeto
de desejo da mãe. Ser o objeto de desejo do Outro materno é o
que caracteriza esta primeira etapa, a qual a criança quer
ocupar o lugar do falo imaginário, uma posição de sujeição.
A primazia do falo já está instaurada no mundo pela existência
do discurso e da lei.
No
segundo momento, o pai aparece como aquele que priva a mãe de
seu desejo e é portador da lei. É necessário sublinhar que o
que está em jogo é a privação da mãe. Assim, o pai é
aquele que priva a mãe de colocar a criança como o objeto de
seu desejo, seu falo. É importante que a mãe estabeleça o pai
como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu
capricho. Deste modo, o pai pode ser aceito ou não pela criança
como aquele que priva ou não a mãe de seu objeto de desejo.
Este é um ponto nodal e negativo, em que:
“aquilo
que desvincula o sujeito de sua identificação liga-o, ao mesmo
tempo, ao primeiro aparecimento da lei, sob a forma desse fato
de que a mãe é dependente de um objeto, que já não é
simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto que o Outro
tem ou não tem”. (Lacan,
1957-58, p. 199)
No
terceiro momento, o pai intervém como aquele que tem o falo,
ele é um pai potente. Esse tempo se sucede à privação ou à
castração que porta a mãe. É justamente o fato de que o pai
tem o falo que ele aparece como ideal do eu no sujeito. Do lado
do menino, é preciso se identificar com o pai como possuidor do
pênis; e do lado da menina, reconhecer o homem como aquele que
o possui. A identificação que pode ser efetuada com a instância
paterna foi realizada nesses três tempos. Primeiramente, o pai
se introduz de uma forma velada. Em segundo lugar, o pai se
apresenta como privador e aquele que porta a lei. E em terceiro
lugar, o pai é visto como o portador do falo.
Vejamos
as três formas da falta do objeto distintas por Lacan no
esquema abaixo:
A
frustração é definida como uma operação imaginária, onde o
objeto é real e o seu agente é o pai simbólico. Inicialmente
Lacan havia pensado a mãe simbólica como agente desta operação.
Mas, ele nos diz que por trás dela está o pai simbólico
intervindo na relação mãe/criança. Já a privação é
considerada uma operação real, em que o objeto é simbólico e
o seu agente é o pai imaginário, enquanto que a castração é
uma operação simbólica referida a um objeto imaginário e o
seu agente é o pai real.
É
essencial que a criança não seja tudo para a sua mãe e que,
enquanto mulher, ela possa localizar o objeto do desejo para um
homem. É claro, que essa afirmação mostra uma perspectiva
nova, onde o pai é aquele que está père(pai)-versamente
orientado para uma mulher fazendo desta, o objeto a que
causa seu desejo.
A
criança e a família
No
artigo: “Os complexos familiares”, Lacan (1938) nos fala que
não há instinto familiar natural. A família é uma invenção
simbólica como marca Lévi-Strauss. Ela é uma resposta simbólica
ao real do sexo já que não se pode escrever simbolicamente a
relação sexual entre um homem e uma mulher. Portanto, a família
escreve a relação pai-mãe.
Vejamos
essa passagem na “Nota sobre a criança”: “A criança realiza a presença do
que Jacques Lacan designa como o objeto a na fantasia.” (2003,
p. 3770) Temos, então, a criança não como um ideal dos pais
como Freud abordou, mas sim, tomada no gozo, seja o seu ou o de
seus pais. Na metáfora edipiana clássica, o pai é aquele que
responde ao desejo da mãe para produzir a significação fálica,
sendo sua verdadeira função a de unir um desejo à lei.
No
ensino de Lacan temos o deslocamento do estatuto da criança
como o falo da mãe para o objeto a. A criança como
objeto a inclui um modo de gozo pelo fato de ter um
corpo. Na primeira posição, a criança responde pelo seu
sintoma do ponto de vista fálico, identificada ao desejo do
Outro, enquanto que, na segunda, investiga-se a versão que a
criança tem ou é do objeto a, e como ela pode
separar-se do Outro, já que se encontra identificada ao gozo do
Outro. A definição do sintoma como substituto de uma satisfação
pulsional que permaneceu em estado jacente nos remete a criança
como o objeto a, que vem tamponar o buraco real que
excede a satisfação fálica.
A
criança é o objeto a e, a partir disso, a família se
estrutura. A família não se constitui mais a partir da metáfora
paterna, fase clássica do complexo de Édipo; e sim pela
maneira como a criança é o objeto de gozo da família, não
somente da mãe, mas da família e da civilização. A criança
é o objeto a liberado, produto. Este objeto a,
que a criança realiza, nós o encontramos no Seminário XVI:
de um Outro ao outro, articulado ao problema da família já
que há uma falta no Outro (Laurent,
2006).
Na
concepção elaborada por Jacques-Lacan, “o sintoma da criança
acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático
na estrutura familiar” (Lacan,
2003, p. 369). É por isso que o sintoma pode representar a
verdade dos pais. A partir do declínio da imago paterna, onde há
a carência do pai nas famílias modernas, Lacan constrói o
conceito do Nome-do-Pai. Lacan recorre à lingüística e ao
estruturalismo a fim de elucidar o mito edipiano. Assim, o
Nome-do-Pai é uma metáfora, um significante que substitui um
outro significante, o significante materno. O Nome-do-Pai entra
em substituição ao falo, o objeto de desejo da mãe. É na
medida em que o desejo da mãe é mediado pela lei da proibição
do incesto, onde o pai cumpre essa função, que a criança não
está exposta às capturas fantasísticas. De acordo com
Jacques-Alain Miller (1988, p. 11), a família pode ser definida
por dois significantes: Desejo e Nome. Daí a condição que
este Desejo não seja anônimo e que este Nome encarne a lei e o
desejo. Nesta situação a criança se inscreve como resto de
operação e não como causa. Lacan vai situar o pai de família
a partir do amor e do gozo no final do seu ensino.
Em
certas famílias, o pai não dá uma versão do que é o objeto a
para ele. É por isso que Lacan nos dirá que um pai não tem
direito ao respeito, nem ao amor, se ele não for um pai (père)versamente
orientado para uma mulher como o objeto a causa de seu
desejo. É preciso pensar que no ensino de Lacan, nós passamos
do pai de família - sonho do neurótico - ao pai resíduo - o
Nome-do-Pai, onde, na teoria, dos três registros ele é o
instrumento que sustenta junto o simbólico, o real e o imaginário.
No
seminário R.S.I, Lacan não se refere mais ao casal
pai/mãe, à lei simbólica edipiana, à articulação da lei e
do desejo, mas à relação homem/mulher, ou seja, no gozo em
jogo no encontro sexual. Considerar a família como uma construção
que responde ao impossível da relação sexual, ao real da
diferença sexual, é levar em conta que há uma renúncia ao
gozo.
No
entanto, na modernidade, estamos sob o
reinado da exigência de satisfação, de se gozar cada vez
mais, resultando na dificuldade crescente de um engajamento simbólico
na relação do sujeito ao Outro. Nossa época tornou-se assim
pouco favorável à dimensão da transmissão e da filiação,
por isso, um dos impasses ao qual estamos confrontados neste
contexto é que o significante passa a servir mais ao gozo do
que à comunicação (2004-05, p. 170), um gozo fora da castração.
Destino
da hiperatividade?
A
hiperatividade não é uma entidade clínica, entretanto, o
destino que a medicina e as neurociências contemporâneas vêm
lhe impondo e a coloca no centro de uma discussão, onde um
simples recondicionamento cognitivo seria suficiente para o
retorno da normalidade. O discurso da ciência contribui para a
ignorância do sintoma como marca particular de um sujeito.
A
psicanálise difere de outros tratamentos que retiram do sintoma
os traços de subjetividade e classificam os sujeitos sem
considerar a singularidade de cada um. Nós, psicanalistas,
privilegiamos o que há de único em cada sujeito. Não está
aqui em questão dar mais valor a uma solução da
hiperatividade, do impasse do sujeito frente ao real. O que
Freud nos ensina que é preciso deixar o sintoma falar lá onde,
diante do traumático do real do gozo, o sintoma foi o único
recurso do sujeito.
Texto recebido em:
11/09/2006.
Aprovado em: 20/11/2006.
Nota
Referências
Bibliográficas
Coelho
dos Santos, T. Sinthoma: corpo e laço social. Rio de Janeiro: Séphora/UFRJ, 2006.
(Também disponível na versão e-book, em: www.nucleosephora.com
> Laboratório de ensino).
ECF.
Lettre mensuelle. Paris: ECF, Julho/agosto, n◦ 250, 2006.
Freud,
S. Inibição, sintoma e
angústia. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX 1996.
Lacadée,
P. Le malentendu de
l’enfant. Lausanne. Paris: Payot, 2003.
______.
Nota sobre a criança. Em: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
______.
Le Séminaire. Livre XVI: D’un Autre à l’autre. Paris:
Seuil, 2006.
______
. Le Séminaire. Livre
XXII: R.S.I, Inédito.
Roy,
M. Enfant fetiche et phallus hyperactif. In:
Revista La petite girafe
Paris: Agalma, n◦13, 2001.
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