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 FAMÍLIA E FRACASSO ESCOLAR

 


Margaret Pires do Couto
Doutoranda do Programa de Conhecimento e Inclusão da Pós-Graduação em Educação - FAE/UFMG
Membro do NIPSE – Núcleo  Interdisciplinar de  Psicanálise e Educação da FAE/UFMG
Professora do Centro Universitário Newton Paiva e do Programa de Pós-Graduação do Instituto Superior Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff
mpcouto@uol.com.br
 

Ana Lydia Santiago
Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão social, FAE/UFMG
Coordenadora do NIPSE - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise

a.lydia@terra.com.br

 

Resumo

A partir do trabalho clínico desenvolvido com crianças em situação de fracasso escolar – por apresentarem dificuldades de aprendizagem ou distúrbios de comportamento –, em uma clínica-escola universitária, constata-se que os pacientes apenas melhoram, na escola, depois de abordarem questões relativas ao pai e suas carências. É essa constatação que leva à proposição de uma investigação, que este trabalho apresenta, sobre a relação do sintoma escolar com a família, para se interrogar as concepções teóricas que articulam o sintoma da criança e a família.

Palavras-chave: família, fracasso escolar, psicanálise

 

   
 

 

  FAMILY AND SCHOOL FAILURE

Abstract  

From the clinical assignment developed with children facing school failure status – for displaying learning disabilities or behavior issues -, at a college school clinic, it is verified that subjects will only improve at school after overcoming father-related issues and their needs. It is this verification that leads to the proposition of an investigation, which assignment presents, on the connection between family and the school system to question theorical concepts that articulate the child and the family’s symptom.

Keywords: family, failure, school, psychoanalysis

 

 

1. Introdução

Em uma experiência de clínica universitária1 aberta para crianças, observa-se, no que concerne às demandas espontâneas de tratamento, um número surpreendente de queixas escolares. Como já se notou em trabalhos anteriores (Santiago, 2006), a maioria dos encaminhamentos de escolares para tratamento clínico pode ser organizada em dois grandes grupos: um que reúne os comportamentos desviantes ou perturbadores dos alunos em relação ao que se concebe como ambiente favorável ao processo de ensino-aprendizagem e, outro, que reúne dificuldades específicas de aprendizagem na leitura e na escrita. Entretanto, independentemente da pertinência a um desses dois grandes grupos, o que tem sido possível constatar, no particular desta clínica, é a idéia prevalente de que as dificuldades escolares das crianças sobressaem de conflitos familiares, em especial aqueles que implicam o pai e sua falência como chefe de família. Tal idéia é defendida tanto pelos educadores – que encaminham as crianças para tratamento –, como também pelas mães – que geralmente são quem acompanham os filhos à clínica.

Nos argumentos utilizados para justificar o fracasso escolar da criança, o pai de família é apontado como uma pessoa desnorteada, em situação de desemprego, entregue ao alcoolismo, envolvido com o tráfico de drogas da região onde reside ou metido com o uso de drogas. Indica-se, também, como a causa do sintoma da criança, o pai desajustado, ou seja, aquele que não sabe cuidar de sua família e de sua prole. Nesse caso, as referências são ao pai que abandona a família, espanca a mulher e os filhos, envolve-se com outras mulheres, não dá dinheiro em casa. Tudo isso denuncia a desvalorização e depreciação do pai de família, e sua distância em relação ao que seria uma posição ideal do ponto de vista social.

Este discurso queixoso do Outro da criança – Outro primordial, que é a mãe e Outro social, que é a escola –, a propósito do pai de família, poderia ser tomado como a expressão do declínio da função paterna na contemporaneidade. Por outro lado, chama a atenção a análise dos estagiários que dirigem os tratamentos das crianças em situação de fracasso escolar na clínica-escola: eles constatam que tais pacientes apenas melhoram, na escola, depois de abordarem questões relativas ao pai e suas carências. É essa constatação que leva à proposição de uma investigação sobre a relação do sintoma escolar com a família, que se pretende realizar em dois eixos: o primeiro, visando interrogar as concepções teóricas que articulam o sintoma da criança e a família. E o segundo, visando interrogar a própria estruturação do sintoma escolar a partir da análise clínica do material apresentado pelos estagiários da clínica-escola para supervisão, em que se constata a relação mencionada antes. O presente trabalho apresenta apenas elementos da primeira investigação.

 

2. A família como causa do sintoma da criança

É na contribuição de Maria Helena de Souza Patto (2005) sobre o fracasso escolar, que encontramos a afirmação segundo a qual a concepção dos transtornos afetivos e da personalidade constitui a explicação mais recorrente para as dificuldades escolares. Essa explicação, que se afirma no âmbito da psicologia clínica, atribui o fracasso escolar aos conflitos familiares geradores de perturbações de ordem afetiva. As dificuldades de aprendizagem são concebidas como conseqüências destes conflitos e se manifestam preferencialmente em crianças oriundas de famílias problemáticas. A patologia relativa ao relacionamento dos membros da família é ainda mais acentuada quando a personalidade da criança é caracterizada por condutas agressivas, nervosismo e imaturidade.

A respeito dessa explicação dos sintomas da criança sobressaindo dos transtornos afetivos, Fijalkow (1986) havia indicado que se trata de uma idéia surgida a partir da incorporação da teoria psicanalítica à psicologia. Segundo este autor, a proeminência dos fatores afetivos na explicação do fracasso escolar afirmou-se na França no momento da ascendência das instituições extra-escolares responsáveis por oferecer um suporte psicoterapêutico às crianças que apresentavam dificuldades escolares. A determinação da origem das dificuldades de aprendizagem exige a identificação dos conflitos dos pais que interferem diretamente sobre a criança, reenviando à análise de suas relações objetais. As dificuldades de aprendizagem são tomadas como sintomas que têm origem na dinâmica familiar.

Fijalkow tece quatro críticas a esse modo de interpretar as dificuldades escolares:

1.     Há um uso heterogêneo e inacabado dos referenciais teóricos da psicanálise que, quando aplicado ao problema do fracasso escolar e dos sintomas escolares, dificulta uma análise rigorosa de sua validade.

2.     Há uma falta de especificidade dos fatores explicativos, o que acaba gerando categorias muito gerais de explicação, tais como, problemas emocionais, problemas familiares, entre outros. Prevalece uma explicação imprecisa, que situa a causa da dificuldade de aprendizagem no “emocional”, não permitindo operar e construir intervenções mais pontuais.

3.     Há uma extensão desse tipo de explicação, quando este é aplicado ao conjunto de crianças que experimentam dificuldades escolares.

4.     Por fim, indica como o grande problema dessa concepção, seu determinismo e as generalizações concernentes às explicações das dificuldades de aprendizagem.

Para Griffo (1996) essas críticas chamam a atenção para a assimilação do problema da criança a um déficit: as crianças não aprendem em função de deficiências nas relações afetivas ou de distúrbios de comportamento dos membros de famílias desestruturadas, em que os pais são ausentes e omissos. Os impasses singulares na tarefa de aprender são interpretados de modo universalizante como deficiência, distúrbios e déficits e não há nenhum espaço para a hipótese da subjetividade manifestando-se por meio dos sintomas do fracasso escolar.

Segundo Donzelot (1980) essa leitura acarreta dois tipos de conseqüência: a incorporação ao discurso dos professores do argumento da família desestruturada como causadora do fracasso escolar e a proliferação de propostas que buscam restaurar os ideais e as relações familiares supostamente harmônicas, sendo traduzidas em programas que visem compensar as supostas carências familiares.

Como notado por Santiago (2005), esta via adotada pela psicologia clínica de localizar a causa do fracasso nos conflitos emocionais e problemas de afetividade na família sustenta-se no suporte teórico da psicanálise. Os laudos psicológicos de casos de Dificuldades de Aprendizagem na Leitura e na Escrita (Dale), demonstram como esse conflito se explica, exclusivamente, a partir de elementos da dinâmica familiar, furtando-se ao sujeito a possibilidade de dizer algo sobre sua divisão. Os significantes que marcam o sujeito designam tipos de pais, de mães, ou de configurações familiares considerados inadequados para o desenvolvimento edípico da criança.

“O modelo padronizado da família dita nuclear serve de base para se isolarem todos aqueles que não estão em condições de se apoiar sobre uma identificação garantidora do acesso ao mundo simbólico. De uma certa maneira, essa abordagem que restringe os distúrbios da aprendizagem à clínica do Outro duplica o déficit, na medida em que a falta da criança resulta de uma carência simbólica da família.” (Santiago, 2005, p. 25)

 

3 – A família na estrutura do sintoma da criança

Para Lacan, em Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938), a família humana desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. A família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua chamada materna. Ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico e transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência. Estabelece entre as gerações uma continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem mental. Em toda família há proibições, leis, autoridade, modo de parentesco, regras de herança e sucessão. Lembra que esses modos de parentesco são constituídos, menos conforme os laços naturais e de consangüinidade, que a partir de ritos que legitimam e criam os laços fictícios.

Para ele, a família moderna é resultado de uma contração da instituição familiar que sofreu um profundo remanejamento até sua forma atual, movido principalmente pelas mudanças ocorridas na instituição do casamento, ou melhor, no regime de alianças. Lacan, tentando romper com uma leitura biológica da família, lança mão do conceito de complexo. Para ele, o complexo pertence ao domínio da cultura e ao domínio do inconsciente.

De acordo com Miller (2005), Lacan nesse texto ainda pré-psicanalítico, demonstra como não há instinto no homem, valorizando o que chama sua dimensão de cultura2. Tudo isso é o que nos permite relativizar as diferentes formas familiares existentes, uma vez que ao contrário do instinto que torna invariável a existência de um ser, a cultura é o que torna infinita as variações nos modos de organização e existência humana. Isso significa que, se as relações familiares não estão definidas pelo instinto, há lugar para a invenção humana, para a invenção do simbólico, precisamente porque nesse lugar nada está escrito. Toma, portanto, o artifício, a invenção como aquilo que regulamenta, regula a existência humana.

Portanto, para Lacan, a família não é dominada por comportamentos biológicos, mas estruturada por complexos simbólicos. Ele isola três complexos: o complexo de desmame que organiza as relações entre a mãe e a criança, o complexo de intrusão que organiza a relação entre a mãe, a criança e o rival imaginário, e o complexo de Édipo que organiza a relação entre a mãe, a criança e a imago paterna, introduzindo aí algo da dimensão de um obstáculo. O complexo de Édipo é o herdeiro histórico da família paternalista. É uma invenção da psicanálise que coincide com o declínio da imago paterna. Entretanto, Lacan nesse texto já não parece muito entusiasmado com a função paterna e não é muito favorável à família paternalista (Nominé, 1997).

Um avanço no modo de pensar a família aparece em Lacan no texto “Nota sobre a criança” (1969). Afirma-se que:

“A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo” (Lacan, 2003, p. 369)

Alguns pontos merecem destaque, nessa afirmação. Indicando o fracasso das utopias comunitárias que supunham poder dispensar a família na constituição psíquica, Lacan afirma que há uma função de resíduo exercida pela família, a despeito de todas as transformações em sua forma de organização, que garante a ela uma transmissão irredutível. Essa transmissão não é da ordem das necessidades e da realidade e sim de uma dimensão simbólica, mais precisamente, de um desejo que não seja anônimo. E acrescenta a seguir:

“É por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo.” (Lacan, 2003, p. 369)

Desse modo, ele desloca a função da família de uma transmissão da cultura para um dispositivo de transmissão do desejo e de contenção do gozo, ou seja, de transmissão da castração.

Portanto, a família, para a psicanálise de orientação lacaniana, não está formada pelos pais e filhos (relações de filiação), e sim pelo significante Nome-do-Pai, que discutiremos melhor a seguir, e o Desejo da Mãe. Para a psicanálise, a família se constitui como uma estrutura simbólica, que exige a função pai, como agente da castração, e de uma função mãe que, ao ter um interesse particularizado pela criança, aliena-a ao seu desejo. Ela constitui-se, assim, como o lugar do Outro simbólico, que, ao presidir a existência do sujeito, oferece a ele uma constelação de significantes que lhe permite incluir-se na ordem simbólica. Além disso, ela constitui-se também como o lugar do Outro da Lei, ao instituir a proibição do incesto, exigindo uma parcela de renúncia de satisfação que torna possível a emergência do sujeito desejante (Santiago, 1996).

Essa concepção rompe com uma leitura ambientalista da família. Não se trata da família constituída de pessoas, mas de uma estrutura simbólica, edípica, constituída de funções. Assim, de acordo com essa perspectiva, qualquer tentativa de explicação do fracasso escolar pela via das noções de carência afetiva, ausência dos pais, desestruturação da família, tomadas em seu caráter ambiental, torna-se insuficiente.

 

4. O que é um Pai?

“O que é um pai?” – é a pergunta que Freud e Lacan dizem estar aberta para todo sujeito e que move a produção de conhecimento em psicanálise.

Em Freud encontramos três grandes mitos para tratar a questão do pai: Édipo, “Totem e tabu” e “Moisés e o monoteísmo”, apontando como ele precisou abordar essa questão a partir da vertente ficcional. É a partir da trama edípica, que tem no centro a figura do pai, que Freud introduz a dimensão do sujeito no mundo do desejo. No Édipo, o pai é aquele que, ao mesmo tempo, desencadeia a entrada nesse complexo e detém a chave do seu declínio. É aquele que assinala a mãe como objeto desejável, ao marcá-lo como proibido. Para Freud, o pai é o agente da interdição do incesto e conseqüentemente da castração, sendo essa lei do incesto a condição do desejo. A lei paterna funda o desejo sobre uma interdição, ou seja, sobre a castração imposta pelo pai (Oliveira, 2006).

Há no ensino de Lacan, por sua vez, um longo percurso e desdobramentos da função paterna e do significante Nome-do-Pai. Lacan, ao fazer sua releitura de Freud, recupera esse centro paterno da teoria freudiana. Ele retoma o questionamento freudiano sobre o pai, mas não considera conclusiva sua formulação edípica, buscando introduzir em seu ensino um mais-além do Édipo.

Para Maleval (2002), o conceito de Nome-do-Pai experimentará ao longo do ensino de Lacan muitas e consideráveis modificações. Nos anos 30 e 40 Lacan parte do conceito de “imago paterna” e concentra nela a função de repressão e sublimação. Já em 1953, em O mito individual do neurótico e “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan forja o conceito de Nome-do-Pai e nesse momento supera a primazia das imagos com a supremacia da linguagem. A função paterna é reconsiderada e se revela a presença de um significante que assegura a ordem do simbólico. Já nesse momento, aponta como em nossa cultura, marcada pelo declínio do pai, aquele que encarna essa função demonstra não estar necessariamente à sua altura, ou seja, o pai é sempre carente, discordante, humilhado, não ideal. Quando Lacan descobre a primazia do significante, busca separar de forma mais clara a instância simbólica de seu suporte, ou seja, o pai enquanto um significante, a função paterna, e o pai da realidade. Lacan inscreve, portanto, desde o início uma distância necessária entre a função paterna e o Nome-do-Pai (Mazzuca, 2005).

Em 1958, em seu Seminário 5 – As formações do inconsciente, Lacan procede a uma formalização do complexo de Édipo a partir da fórmula da metáfora paterna. O pai é uma metáfora que transforma as versões imaginárias do pai e da mãe em funções simbólicas escritas, significantes operativos. Assim, o pai é reduzido ao Nome-do-Pai (NP); e a mãe, reduzida à função desejo, representada pelo significante do Desejo da Mãe (DM). A função do pai é substituir o desejo da mãe, sempre enigmático, introduzindo a significação fálica como efeito de interpretação desse desejo e produzindo o seu enlaçamento com a lei. O pai, como um intérprete, dá um sentido a isso que a princípio aparece para a criança como sem sentido, enigmático, apaziguando sua angústia.

Essa formalização do complexo de Édipo, por meio da metáfora, organiza a função paterna em três tempos, que Lacan nomeou como os três tempos do Édipo.

No primeiro, o sujeito está identificado ao falo, objeto do desejo da mãe. A instância paterna se introduz como um lugar simbólico, porém, ainda velado. No segundo tempo, o pai intervém como privador da mãe face à criança, pelo reenvio da mãe a uma lei que não é somente sua, ou seja, está em jogo um tribunal superior, a Lei do Pai. Esse tempo tem como efeito a desvinculação da criança de sua identificação ao falo, ao introduzir a lei. Abala a posição de assujeitamento da criança, desalojando-a da posição ideal, operando, portanto, aí uma separação. Nesse tempo, trata-se de uma relação não diretamente ao pai, mas o pai na palavra da mãe. No terceiro tempo, trata-se de o pai dar provas de ter o falo na condição de portador e suporte da lei. Trata-se nesse tempo de um pai potente do qual depende a saída do Édipo (Lacan, 1958).

Para Porge (1998), há uma diferença essencial, entre Freud e Lacan, quanto à intervenção do pai no segundo tempo do Édipo. Enquanto Freud fazia pesar a interdição essencialmente sobre a criança, Lacan a faz pesar sobre a mãe. O pai é aquele que proibirá à mãe de reintegrar o seu produto.

Cabe ao pai nesse momento servir como barra ao gozo do Outro, separando a criança do Outro materno. Para Maleval (2002), a criança não dispõe de nenhum meio para discernir o angustiante enigma do desejo da mãe, até que o significante Nome-do-Pai lhe proporcione a resposta fálica correspondente, assegurando a significação. Como portador do falo, o pai priva a mãe em um duplo sentido: ele interdita a criança em sua busca incestuosa de se fazer ela mesma objeto do desejo da mãe e priva a mãe do objeto fálico. Barra a satisfação incestuosa entre a mãe e a criança e introduz a dimensão do desejo, ao lançar um obstáculo à tentativa de se fazer uma completude imaginária.

Porge (1998) centra sua análise sobre a função paterna em dois eixos fundamentais: de um lado, o conceito de Nome-do-Pai e, de outro, suas dimensões reais, simbólicas e imaginárias. Lacan desenvolve as três dimensões do pai em seu Seminário 4 – A relação de objeto (1956-1957), diferenciando três dimensões da função paterna. Para Lacan, o pai simbólico é um significante em nenhuma parte representado. É o pai morto, dessexualizado e por isso mesmo conservado como um significante. O pai imaginário é o pai assustador, todo-poderoso, o bom garantidor da ordem do mundo, portador dos ideais e suporte das identificações. O pai real, por sua vez, é o de mais difícil apreensão. É aquele que intervém concretamente como agente da castração, separando a criança do logro fálico e imaginário com a mãe.

Essa discussão sobre as três dimensões do pai antecede a formalização da metáfora paterna que apresenta decisivamente o pai como Nome-do-Pai, ou seja, em sua dimensão significante.

O pai, em sua dimensão significante, não se confunde com uma leitura ambientalista, ancorada em um registro biográfico da dimensão da realidade que muitas vezes sustenta as pesquisas sobre a carência paterna. Para Lacan, é fundamental que se diferencie o pai da realidade e o pai enquanto função simbólica, ou seja, o Nome-do-Pai.

“Falar de sua carência na família não é falar de sua carência no complexo, é preciso introduzir uma outra dimensão que não a dimensão realista, definida pelo modo caracteriológico, biográfico ou outro de sua presença na família” (Lacan, [1957-1958], 1999, p. 174).

A construção do grafo do desejo (1958) marca um giro decisivo quanto à concepção de Nome-do-Pai, correlativo ao descobrimento da falta no campo do Outro. A incompletude do Outro demonstra ser um fato de estrutura e um não-saber irredutível se revela no coração do discurso desse Outro. Há, portanto, uma falta essencial no Outro, fazendo-o incompleto, que o faz perder o lugar de garantidor da verdade. Assim, o Nome-do-Pai deixa de ser esse significante capaz de interpretar todo o desejo da mãe e de barrar a satisfação incestuosa entre ela e a criança. Está em jogo, portanto, uma falha, uma impossibilidade estrutural dessa função (Maleval, 2002).

Portanto, um pai fracassa não porque ele é desvalorizado do ponto de vista dos ideais sociais, mas porque essa carência está inscrita na estrutura do ser falante. Qualquer tentativa de obturar essa falha impede o sujeito do acesso ao saber. A incompletude do Outro, sua inconsistência, rompe com toda possibilidade de considerar o pai como mestre. Trata-se, então, de um pai castrado. É portanto dessa falha estrutural do pai que cada sujeito, de modo singular, inventa algo que “faz as vezes” disso que pode organizar a cadeia significante e barrar a satisfação incestuosa, ao unir o desejo à lei. É assim que Lacan dá um passo decisivo em seu Seminário 17 O avesso da psicanálise (1969-1970), em sua tarefa de ir mais além do mito, mais além do Édipo freudiano. Lacan, nesse momento, afirma que a castração não procede do pai, e sim da linguagem que traduz a perda de satisfação (gozo) que afeta o sujeito. Cai, portanto, o império do pai e se introduz sua dimensão de semblante (Miller, 2005), como aquilo que cada sujeito inventa para barrar o gozo e fazer surgir a dimensão do desejo.

De acordo com Nominé (1997), outro momento decisivo da teorização sobre o pai em Lacan surge em R.S.I., seminário de 1975. Já não se trata mais do pai enquanto representante simbólico do Desejo da Mãe. Aquele pai simbólico nunca é encontrado e o pai é sempre insuficiente com respeito àquela função sublime. Trata-se do pai que só tem direito ao respeito e ao amor se se atreve a por em jogo seu desejo perverso no encontro com uma mulher fazendo dela causa de seu desejo. Portanto, o pai só é conseqüência da orientação do desejo de um homem por uma mulher. Cabe ao pai então, fazer de uma mãe uma mulher e, desse modo, impedir que a criança fique numa posição na qual poderia entregar a esse Outro tudo o que lhe falta. Ele impede que a criança tente satisfazer esse Outro materno saturando seu desejo. A mãe, por sua vez, ao aceitar esse lugar de mulher que orienta o desejo do pai, se enfrenta com sua própria castração e não se torna toda mãe. É essa versão do pai que assegura a divisão materna, suporta uma estrutura de transmissão do desejo e barra o gozo. Nesse momento do ensino de Lacan, ele opera uma disjunção radical entre, por um lado, a função paterna que une um desejo à Lei, e, por outro, a função de genitor, provedor e educador. Desse modo, mesmo um pai desvalorizado socialmente, pouco ideal, como nas situações clínicas que discutiremos a seguir, pode operar enquanto uma função.

Além disso, de acordo com Lacadée (1999), em seu último ensino, Lacan passa a tomar o pai não mais a partir da palavra, mas a partir de sua presença, de sua causa sexual. Esse pai, portanto, longe de transmitir um ideal, transmite seu modo de se arranjar com o desejo e o gozo. Ele deixa uma marca pela sua presença, que Lacan situou do lado dos pecados do pai, de suas paixões, de sua falta. Funda o respeito e o amor ao pai não mais sobre um pai ideal, e sim sobre um pai marcado por sua causa sexual.

Se partirmos do pressuposto de que em toda transmissão há um impossível, uma perda, podemos concluir que, na transmissão paterna, esse pai marcado pelo desejo e pelo gozo transmite seu ponto de rateio, de falha, onde ele esbarra. Ele pode apresentar várias dificuldades: em fazer de uma mulher causa de seu desejo, em barrar o gozo do Outro, em regular seu próprio gozo etc. O pai, então, como Outro barrado, transmite sua própria castração, sua insuficiência e sua miséria. Em sua função está inscrito estruturalmente um fracasso, a despeito de sua condição social ou modo de presença na vida da criança.

 

5. A clínica com crianças com dificuldade escolares: a invenção de um pai passível de uso

O que as crianças com dificuldades escolares nos ensinam sobre as relações entre o fracasso escolar, a família e o pai?

Primeiro, é preciso dizer quais os balizamentos éticos que orientam esses tratamentos a fim de permitir o entendimento de sua condução. O responsável pela criança, e não necessariamente os pais biológicos, são convidados para uma primeira entrevista. Nessa entrevista investigamos um pouco melhor a queixa e o que chamamos em psicanálise de pré-história do sujeito: qual o lugar que ele ocupa no desejo e no discurso do Outro. Isso é importante porque partimos da hipótese de que a criança pode estar mais ou menos alienada a esse lugar a ela destinado e respondendo com seu sintoma a esse lugar. Cabe aqui um breve comentário sobre como entendemos o sintoma da criança. Para a psicanálise de orientação lacaniana, o sintoma da criança sempre se relaciona com a família, trata-se, por um lado, do modo como ela se inscreve nesse discurso familiar e, por outro, do modo de fazer existir uma família. Os sintomas neuróticos são conseqüências do encontro com a falha do complexo de Édipo que ordena a estrutura da família. O sintoma, então, se apresenta como uma resposta à falha nessa estrutura. É isso que Lacan afirma em “Nota sobre a criança”, que o sintoma da criança responde à verdade do par parental, do par familiar. Responde ao que falha, ao que há de sintomático nessa estrutura. A transmissão simbólica operada pela família, implica a transmissão da falta e da falha, daquilo que não vai bem nessa estrutura. É por isso que tanto as novas como as antigas formas de família sempre produzem sintomas – é um irredutível - tomados no sentido de uma resposta, uma invenção, uma construção do sujeito para recobrir a falha e reconstruir essa estrutura.

Retomando o atendimento, esse responsável é convidado a novas entrevistas quantas vezes forem necessárias para a condução do tratamento e quantas vezes ele demandar ser escutado. O mais importante é que ele seja escutado como um sujeito que pode enfrentar impasses em sua condição de mãe, pai ou responsável por uma criança. Esse impasse diz respeito certamente à sua história subjetiva e que precisa ser escutada a fim de lhe permitir uma elaboração. Portanto, há uma oferta da palavra para que esse sujeito possa elaborar e retificar sua posição diante dessa criança.

Os atendimentos com as crianças ocorrem simultaneamente a essas entrevistas com seus responsáveis. Nesses atendimentos as crianças são convidadas a falar de tudo aquilo que as incomoda e não somente suas dificuldades escolares. É inevitável nesse momento que ela fale de seus impasses com o Outro, seja ele familiar ou escolar. Ela é convidada a falar para que possa não se colocar como vítima ou objeto desse Outro, mas para se responsabilizar pela parte que lhe cabe nesses impasses. Portanto, com a criança que fracassa na escola não se conduz o tratamento de modo a desresponsabilizá-la por seu fracasso e culpabilizar o Outro escolar ou familiar, mas para que ela torne-se responsável pelo seu dizer e seu ato. O efeito dessa oferta da palavra é quase imediato: uma mudança significativa na aprendizagem escolar ocorre quando elas começam a se interessar e falar sobre os impasses com esse Outro, principalmente o pai. Ao abrir uma questão sobre isso ou sobre os atos do Outro, construindo uma versão do pai particularizada, abre-se para esses sujeitos a via do saber inconsciente com importantes conseqüências para o conhecimento escolar

Essa oferta da palavra permite a essas crianças desconstruírem a família ideal almejada por elas, incluindo aí o pai, e reconstruírem uma família e um pai possíveis, que permita a ela se organizar e se localizar como sujeito no mundo. O tratamento clínico permite a esse sujeito abrir uma questão sobre o Outro, sobre o desejo do Outro, que retifica sua posição subjetiva diante do saber inconsciente dando-lhe acesso ao saber escolar.

O que percebemos, portanto, é que em alguns casos, o fracasso escolar servia ao sujeito, como modo de recobrir, nada querer saber da falha estrutural do Outro, ou seja, sua impossibilidade de assegurar/garantir a introdução da lei. Serve como uma estratégia de dar consistência ao Outro, ao não querer saber sobre o seu furo estrutural.

Essas crianças nos ensinam que não é possível dispensar a família como estrutura de organização subjetiva, mas também não se trata de sustentar uma família ideal, sem furos e sem problemas.

E como tudo isso se relaciona com o saber e o fracasso escolar?

Para a psicanálise, o que move a tarefa de aprender é o desejo de saber, desejo que surge a partir do momento que o sujeito se depara com essa falta de saber no Outro, revelada diante da constatação de sua castração. Para a criança está em jogo o encontro com esse desejo enigmático da mãe, revelado pela sua presença/ausência, e com a impossibilidade de encontrar alguma reposta absoluta para tal enigma. Além disso, a criança se percebe não sendo esse objeto capaz de obturar esse desejo. Inscreve-se, portanto, uma falta irredutível no campo do Outro, que levará o sujeito a adotar posições subjetivas, construir respostas distintas (Lacadée, 1999). O não-querer saber dessa falta irredutível no campo do Outro é o que, em alguns casos, como hipótese, impede o acesso ao saber.

 

6. Conclusão

Essa orientação psicanalítica diferencia-se das concepções de caráter universalizante, tal como a que supõe o fracasso escolar como um transtorno afetivo e familiar, ao levar em consideração a singularidade de cada sujeito, a particularidade de cada caso. Propõe também uma outra leitura para o fracasso escolar ou para as dificuldades de aprendizagem que se distancia de uma perspectiva deficitária que pressupõe sempre uma deficiência ou um déficit na origem das dificuldades de aprendizagem. Assim, ao buscar diferenciar-se dessa leitura deficitária, supõe que esse fracasso na escola, impasse na relação com o saber, desempenha uma função na vida do sujeito e na sua relação com o Outro. Dessa forma, longe de querer desconsiderar as condições históricas, sociais, políticas e institucionais de produção desse fracasso (Patto, 1990), busca-se recuperar a participação do sujeito nessa produção, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-se por isso e retificar sua posição subjetiva.

Além disso, essa leitura propõe uma inversão lógica no debate que supõe o fracasso escolar como fruto dos conflitos familiares e carências paternas. Assim, como hipótese, a partir da psicanálise de orientação lacaniana, o fracasso na escola, tomado como impasse na relação com o saber, não seria causado pelo fracasso da família tradicional, fundada na autoridade paterna (Roudinesco, 2003). Ao contrário, o problema estaria localizado em tentar sustentar uma família tradicional e idealizada a despeito de todas as transformações sociais e culturais sofridas por essa família, onde o reinado do pai perdeu seu lugar. Portanto, o fracasso estaria relacionado não às carências do pai, e sim à posição subjetiva do sujeito em não querer saber da divisão estrutural (a castração) do pai. Esse saber torna impossível sustentar o império paterno (Tort, 2005).

A psicanálise de orientação lacaniana nos convida então a perceber que todo sujeito surge de um mal-entendido estrutural que revela a impossibilidade da relação entre os sexos e que é esse mal-entendido que é transmitido pelas famílias.

  

Notas

1. Trata-se da Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, situada no bairro Nova Granada, em Belo Horizonte, próxima de duas Escolas – uma Municipal e outra Estadual –, onde estudam crianças moradoras do Aglomerado Morro das Pedras.

2. Para Miller, Lacan utiliza o termo cultura por ainda lhe faltar o conceito de simbólico.  

 

Texto recebido em: 10/01/2007.

Aprovado em: 28/02/2007.

 

Referências Bibliográficas

DONZELOT, J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

FIJALKOW, J. Mauvais lecteurs. Por quoi? Paris: PUF, 1986.

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