|
1.
Introdução
Em
uma experiência de clínica universitária1 aberta
para crianças, observa-se, no que concerne às demandas espontâneas
de tratamento, um número surpreendente de queixas escolares.
Como já se notou em trabalhos anteriores (Santiago,
2006), a maioria dos encaminhamentos de escolares para
tratamento clínico pode ser organizada em dois grandes grupos:
um que reúne os comportamentos desviantes ou perturbadores dos
alunos em relação ao que se concebe como ambiente favorável
ao processo de ensino-aprendizagem e, outro, que reúne
dificuldades específicas de aprendizagem na leitura e na
escrita. Entretanto, independentemente da pertinência a um
desses dois grandes grupos, o que tem sido possível constatar,
no particular desta clínica, é a idéia prevalente de que as
dificuldades escolares das crianças sobressaem de conflitos
familiares, em especial aqueles que implicam o pai e sua falência
como chefe de família. Tal idéia é defendida tanto pelos
educadores – que encaminham as crianças para tratamento –,
como também pelas mães – que geralmente são quem acompanham
os filhos à clínica.
Nos
argumentos utilizados para justificar o fracasso escolar da
criança, o pai de família é apontado como uma pessoa
desnorteada, em situação de desemprego, entregue ao
alcoolismo, envolvido com o tráfico de drogas da região onde
reside ou metido com o uso de drogas. Indica-se, também, como a
causa do sintoma da criança, o pai desajustado, ou seja, aquele
que não sabe cuidar de sua família e de sua prole. Nesse caso,
as referências são ao pai que abandona a família, espanca a
mulher e os filhos, envolve-se com outras mulheres, não dá
dinheiro em casa. Tudo isso denuncia a desvalorização e
depreciação do pai de família, e sua distância em relação
ao que seria uma posição ideal do ponto de vista social.
Este
discurso queixoso do Outro da criança – Outro primordial, que
é a mãe e Outro social, que é a escola –, a propósito do
pai de família, poderia ser tomado como a expressão do declínio
da função paterna na contemporaneidade. Por outro lado, chama
a atenção a análise dos estagiários que dirigem os
tratamentos das crianças em situação de fracasso escolar na
clínica-escola: eles constatam que tais pacientes apenas
melhoram, na escola, depois de abordarem questões relativas ao
pai e suas carências. É essa constatação que leva à proposição
de uma investigação sobre a relação do sintoma escolar com a
família, que se pretende realizar em dois eixos: o primeiro,
visando interrogar as concepções teóricas que articulam o
sintoma da criança e a família. E o segundo, visando
interrogar a própria estruturação do sintoma escolar a partir
da análise clínica do material apresentado pelos estagiários
da clínica-escola para supervisão, em que se constata a relação
mencionada antes. O presente trabalho apresenta apenas elementos
da primeira investigação.
2.
A família como causa do sintoma da criança
É
na contribuição de Maria Helena de Souza Patto (2005) sobre o
fracasso escolar, que encontramos a afirmação segundo a qual a
concepção dos
transtornos afetivos e da personalidade constitui a explicação
mais recorrente para as dificuldades escolares. Essa explicação,
que se afirma no âmbito da psicologia clínica, atribui o
fracasso escolar aos conflitos familiares geradores de perturbações
de ordem afetiva. As dificuldades de aprendizagem são
concebidas como conseqüências destes conflitos e se manifestam
preferencialmente em crianças oriundas de famílias problemáticas.
A patologia relativa ao relacionamento dos membros da família
é ainda mais acentuada quando a personalidade da criança é
caracterizada por condutas agressivas, nervosismo e imaturidade.
A
respeito dessa explicação dos sintomas da criança
sobressaindo dos transtornos afetivos, Fijalkow (1986) havia
indicado que se trata de uma idéia surgida a partir da
incorporação da teoria psicanalítica à psicologia. Segundo
este autor, a proeminência dos fatores afetivos na explicação
do fracasso escolar afirmou-se na França no momento da ascendência
das instituições extra-escolares responsáveis por oferecer um
suporte psicoterapêutico às crianças que apresentavam
dificuldades escolares. A determinação da origem das
dificuldades de aprendizagem exige a identificação dos
conflitos dos pais que interferem diretamente sobre a criança,
reenviando à análise de suas relações objetais. As
dificuldades de aprendizagem são tomadas como sintomas que têm
origem na dinâmica familiar.
Fijalkow
tece quatro críticas a esse modo de interpretar as dificuldades
escolares:
1.
Há um uso heterogêneo e inacabado dos referenciais teóricos
da psicanálise que, quando aplicado ao problema do fracasso
escolar e dos sintomas escolares, dificulta uma análise
rigorosa de sua validade.
2.
Há uma falta de especificidade dos fatores explicativos,
o que acaba gerando categorias muito gerais de explicação,
tais como, problemas emocionais, problemas familiares, entre
outros. Prevalece uma explicação imprecisa, que situa a causa
da dificuldade de aprendizagem no “emocional”, não
permitindo operar e construir intervenções mais pontuais.
3.
Há uma extensão desse tipo de explicação, quando este
é aplicado ao conjunto de crianças que experimentam
dificuldades escolares.
4.
Por fim, indica como o grande problema dessa concepção,
seu determinismo e as generalizações concernentes às explicações
das dificuldades de aprendizagem.
Para
Griffo (1996) essas críticas chamam a atenção para a assimilação
do problema da criança a um déficit: as crianças não
aprendem em função de deficiências nas relações afetivas ou
de distúrbios de comportamento dos membros de famílias
desestruturadas, em que os pais são ausentes e omissos. Os
impasses singulares na tarefa de aprender são interpretados de
modo universalizante como deficiência, distúrbios e déficits
e não há nenhum espaço para a hipótese da subjetividade
manifestando-se por meio dos sintomas do fracasso escolar.
Segundo
Donzelot (1980) essa leitura acarreta dois tipos de conseqüência:
a incorporação ao discurso dos professores do argumento da família
desestruturada como causadora do fracasso escolar e a
proliferação de propostas que buscam restaurar os ideais e as
relações familiares supostamente harmônicas, sendo traduzidas
em programas que visem compensar as supostas carências
familiares.
Como
notado por Santiago (2005), esta via adotada pela psicologia clínica
de localizar a causa do fracasso nos conflitos emocionais e
problemas de afetividade na família sustenta-se no suporte teórico
da psicanálise. Os laudos psicológicos de casos de
Dificuldades de Aprendizagem na Leitura e na Escrita (Dale),
demonstram como esse conflito se explica, exclusivamente, a
partir de elementos da dinâmica familiar, furtando-se ao
sujeito a possibilidade de dizer algo sobre sua divisão. Os
significantes que marcam o sujeito designam tipos de pais, de mães,
ou de configurações familiares considerados inadequados para o
desenvolvimento edípico da criança.
“O
modelo padronizado da família dita nuclear serve de base para
se isolarem todos aqueles que não estão em condições de se
apoiar sobre uma identificação garantidora do acesso ao mundo
simbólico. De uma certa maneira, essa abordagem que restringe
os distúrbios da aprendizagem à clínica do Outro duplica o déficit,
na medida em que a falta da criança resulta de uma carência
simbólica da família.” (Santiago, 2005, p. 25)
3
– A família na estrutura do sintoma da criança
Para
Lacan, em Os complexos
familiares na formação do indivíduo (1938), a família
humana desempenha um papel primordial na transmissão da
cultura. A família prevalece na primeira educação, na repressão
dos instintos, na aquisição da língua chamada materna. Ela
preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico e
transmite estruturas de comportamento e de representação cujo
jogo ultrapassa os limites da consciência. Estabelece entre as
gerações uma continuidade psíquica cuja causalidade é de
ordem mental. Em toda família há proibições, leis,
autoridade, modo de parentesco, regras de herança e sucessão.
Lembra que esses modos de parentesco são constituídos, menos
conforme os laços naturais e de consangüinidade, que a partir
de ritos que legitimam e criam os laços fictícios.
Para
ele, a família moderna é resultado de uma contração da
instituição familiar que sofreu um profundo remanejamento até
sua forma atual, movido principalmente pelas mudanças ocorridas
na instituição do casamento, ou melhor, no regime de alianças.
Lacan, tentando romper com uma leitura biológica da família,
lança mão do conceito de complexo. Para ele, o complexo
pertence ao domínio da cultura e ao domínio do inconsciente.
De
acordo com Miller (2005), Lacan nesse texto ainda pré-psicanalítico,
demonstra como não há instinto no homem, valorizando o que
chama sua dimensão de cultura2. Tudo isso é o que
nos permite relativizar as diferentes formas familiares
existentes, uma vez que ao contrário do instinto que torna
invariável a existência de um ser, a cultura é o que torna
infinita as variações nos modos de organização e existência
humana. Isso significa que, se as relações familiares não estão
definidas pelo instinto, há lugar para a invenção humana,
para a invenção do simbólico, precisamente porque nesse lugar
nada está escrito. Toma, portanto, o artifício, a invenção
como aquilo que regulamenta, regula a existência humana.
Portanto,
para Lacan, a família não é dominada por comportamentos biológicos,
mas estruturada por complexos simbólicos. Ele isola três
complexos: o complexo de desmame que organiza as relações
entre a mãe e a criança, o complexo de intrusão que organiza
a relação entre a mãe, a criança e o rival imaginário, e o
complexo de Édipo que organiza a relação entre a mãe, a
criança e a imago paterna, introduzindo aí algo da dimensão
de um obstáculo. O complexo de Édipo é o herdeiro histórico
da família paternalista. É uma invenção da psicanálise que
coincide com o declínio da imago paterna. Entretanto, Lacan
nesse texto já não parece muito entusiasmado com a função
paterna e não é muito favorável à família paternalista (Nominé,
1997).
Um
avanço no modo de pensar a família aparece em Lacan no texto
“Nota sobre a criança” (1969). Afirma-se que:
“A
função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela
família conjugal na evolução das sociedades destaca a
irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem
que não a da vida segundo as satisfações das necessidades,
mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação
com um desejo que não seja anônimo” (Lacan,
2003, p. 369)
Alguns
pontos merecem destaque, nessa afirmação. Indicando o fracasso
das utopias comunitárias que supunham poder dispensar a família
na constituição psíquica, Lacan afirma que há uma função
de resíduo exercida pela família, a despeito de todas as
transformações em sua forma de organização, que garante a
ela uma transmissão irredutível. Essa transmissão não é da
ordem das necessidades e da realidade e sim de uma dimensão
simbólica, mais precisamente, de um
desejo que não seja anônimo. E acrescenta a seguir:
“É
por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai.
Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um
interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas
próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor
de uma encarnação da Lei no desejo.” (Lacan,
2003, p. 369)
Desse
modo, ele desloca a função da família de uma transmissão da
cultura para um dispositivo de transmissão do desejo e de
contenção do gozo, ou seja, de transmissão da castração.
Portanto,
a família, para a psicanálise de orientação lacaniana, não
está formada pelos pais e filhos (relações de filiação), e
sim pelo significante Nome-do-Pai, que discutiremos melhor a
seguir, e o Desejo da Mãe. Para a psicanálise, a família se
constitui como uma estrutura simbólica, que exige a função
pai, como agente da castração, e de uma função mãe que, ao
ter um interesse particularizado pela criança, aliena-a ao seu
desejo. Ela constitui-se, assim, como o lugar do Outro simbólico,
que, ao presidir a existência do sujeito, oferece a ele uma
constelação de significantes que lhe permite incluir-se na
ordem simbólica. Além disso, ela constitui-se também como o
lugar do Outro da Lei, ao instituir a proibição
do incesto, exigindo uma parcela de renúncia de satisfação
que torna possível a emergência do sujeito desejante (Santiago,
1996).
Essa
concepção rompe com uma leitura ambientalista da família. Não
se trata da família constituída de pessoas, mas de uma
estrutura simbólica, edípica, constituída de funções.
Assim, de acordo com essa perspectiva, qualquer tentativa de
explicação do fracasso escolar pela via das noções de carência
afetiva, ausência dos pais, desestruturação da família,
tomadas em seu caráter ambiental, torna-se insuficiente.
4.
O que é um Pai?
“O
que é um pai?” – é a pergunta que Freud e Lacan dizem
estar aberta para todo sujeito e que move a produção de
conhecimento em psicanálise.
Em
Freud encontramos três grandes mitos para tratar a questão do
pai: Édipo, “Totem e tabu” e “Moisés e o monoteísmo”,
apontando como ele precisou abordar essa questão a partir da
vertente ficcional. É a partir da trama edípica, que tem no
centro a figura do pai, que Freud introduz a dimensão do
sujeito no mundo do desejo. No Édipo, o pai é aquele que, ao
mesmo tempo, desencadeia a entrada nesse complexo e detém a
chave do seu declínio. É aquele que assinala a mãe como
objeto desejável, ao marcá-lo como proibido. Para Freud, o pai
é o agente da interdição do incesto e conseqüentemente da
castração, sendo essa lei do incesto a condição do desejo. A
lei paterna funda o desejo sobre uma interdição, ou seja,
sobre a castração imposta pelo pai (Oliveira,
2006).
Há
no ensino de Lacan, por sua vez, um longo percurso e
desdobramentos da função paterna e do significante Nome-do-Pai.
Lacan, ao fazer sua releitura de Freud, recupera esse centro
paterno da teoria freudiana. Ele retoma o questionamento
freudiano sobre o pai, mas não considera conclusiva sua formulação
edípica, buscando introduzir em seu ensino um mais-além do Édipo.
Para
Maleval (2002), o conceito de Nome-do-Pai experimentará ao
longo do ensino de Lacan muitas e consideráveis modificações.
Nos anos 30 e 40 Lacan parte do conceito de “imago paterna”
e concentra nela a função de repressão e sublimação. Já em
1953, em O mito individual
do neurótico e “Função
e campo da palavra e da linguagem”, Lacan forja o conceito de
Nome-do-Pai e nesse momento supera a primazia das imagos com a
supremacia da linguagem. A função paterna é reconsiderada e
se revela a presença de um significante que assegura a ordem do
simbólico. Já nesse momento, aponta como em nossa cultura,
marcada pelo declínio do pai, aquele que encarna essa função
demonstra não estar necessariamente à sua altura, ou seja, o
pai é sempre carente, discordante, humilhado, não ideal.
Quando Lacan descobre a primazia do significante, busca separar
de forma mais clara a instância simbólica de seu suporte, ou
seja, o pai enquanto um significante, a função paterna, e o
pai da realidade. Lacan inscreve, portanto, desde o início uma
distância necessária entre a função paterna e o Nome-do-Pai
(Mazzuca, 2005).
Em
1958, em seu Seminário 5
– As formações do inconsciente, Lacan procede a uma
formalização do complexo de Édipo a partir da fórmula da metáfora
paterna. O pai é uma metáfora que transforma as versões
imaginárias do pai e da mãe em funções simbólicas escritas,
significantes operativos. Assim, o pai é reduzido ao
Nome-do-Pai (NP); e a mãe, reduzida à função desejo,
representada pelo significante do Desejo da Mãe (DM). A função
do pai é substituir o desejo da mãe, sempre enigmático,
introduzindo a significação fálica como efeito de interpretação
desse desejo e produzindo o seu enlaçamento com a lei. O pai,
como um intérprete, dá um sentido a isso que a princípio
aparece para a criança como sem sentido, enigmático,
apaziguando sua angústia.
Essa
formalização do complexo de Édipo, por meio da metáfora,
organiza a função paterna em três tempos, que Lacan nomeou
como os três tempos do Édipo.
No
primeiro, o sujeito está identificado ao falo, objeto do desejo
da mãe. A instância paterna se introduz como um lugar simbólico,
porém, ainda velado. No segundo tempo, o pai intervém como
privador da mãe face à criança, pelo reenvio da mãe a uma
lei que não é somente sua, ou seja, está em jogo um tribunal
superior, a Lei do Pai. Esse tempo tem como efeito a desvinculação
da criança de sua identificação ao falo, ao introduzir a lei.
Abala a posição de assujeitamento da criança, desalojando-a
da posição ideal, operando, portanto, aí uma separação.
Nesse tempo, trata-se de uma relação não diretamente ao pai,
mas o pai na palavra da mãe. No terceiro tempo, trata-se de o
pai dar provas de ter o falo na condição de portador e suporte
da lei. Trata-se nesse tempo de um pai potente do qual depende a
saída do Édipo (Lacan,
1958).
Para
Porge (1998), há uma diferença essencial, entre Freud e Lacan,
quanto à intervenção do pai no segundo tempo do Édipo.
Enquanto Freud fazia pesar a interdição essencialmente sobre a
criança, Lacan a faz pesar sobre a mãe. O pai é aquele que
proibirá à mãe de reintegrar o seu produto.
Cabe
ao pai nesse momento servir como barra ao gozo do Outro,
separando a criança do Outro materno. Para Maleval (2002), a
criança não dispõe de nenhum meio para discernir o
angustiante enigma do desejo da mãe, até que o significante
Nome-do-Pai lhe proporcione a resposta fálica correspondente,
assegurando a significação. Como portador do falo, o pai priva
a mãe em um duplo sentido: ele interdita a criança em sua
busca incestuosa de se fazer ela mesma objeto do desejo da mãe
e priva a mãe do objeto fálico. Barra a satisfação
incestuosa entre a mãe e a criança e introduz a dimensão do
desejo, ao lançar um obstáculo à tentativa de se fazer uma
completude imaginária.
Porge
(1998) centra sua análise sobre a função paterna em dois
eixos fundamentais: de um lado, o conceito de Nome-do-Pai e, de
outro, suas dimensões reais, simbólicas e imaginárias. Lacan
desenvolve as três dimensões do pai em seu Seminário
4 – A relação de objeto (1956-1957), diferenciando três
dimensões da função paterna. Para Lacan, o pai simbólico é
um significante em nenhuma parte representado. É o pai morto,
dessexualizado e por isso mesmo conservado como um significante.
O pai imaginário é o pai assustador, todo-poderoso, o bom
garantidor da ordem do mundo, portador dos ideais e suporte das
identificações. O pai real, por sua vez, é o de mais difícil
apreensão. É aquele que intervém concretamente como agente da
castração, separando a criança do logro fálico e imaginário
com a mãe.
Essa
discussão sobre as três dimensões do pai antecede a formalização
da metáfora paterna que apresenta decisivamente o pai como
Nome-do-Pai, ou seja, em sua dimensão significante.
O
pai, em sua dimensão significante, não se confunde com uma
leitura ambientalista, ancorada em um registro biográfico da
dimensão da realidade que muitas vezes sustenta as pesquisas
sobre a carência paterna. Para Lacan, é fundamental que se
diferencie o pai da realidade e o pai enquanto função simbólica,
ou seja, o Nome-do-Pai.
“Falar
de sua carência na família não é falar de sua carência no
complexo, é preciso introduzir uma outra dimensão que não a
dimensão realista, definida pelo modo caracteriológico, biográfico
ou outro de sua presença na família” (Lacan,
[1957-1958], 1999, p. 174).
A
construção do grafo do desejo (1958) marca um giro decisivo
quanto à concepção de Nome-do-Pai, correlativo ao
descobrimento da falta no campo do Outro. A incompletude do
Outro demonstra ser um fato de estrutura e um não-saber irredutível
se revela no coração do discurso desse Outro. Há, portanto,
uma falta essencial no Outro, fazendo-o incompleto, que o faz
perder o lugar de garantidor da verdade. Assim, o Nome-do-Pai
deixa de ser esse significante capaz de interpretar todo o
desejo da mãe e de barrar a satisfação incestuosa entre ela e
a criança. Está em jogo, portanto, uma falha, uma
impossibilidade estrutural dessa função (Maleval,
2002).
Portanto,
um pai fracassa não porque ele é desvalorizado do ponto de
vista dos ideais sociais, mas porque essa carência
está inscrita na estrutura do ser falante. Qualquer
tentativa de obturar essa falha impede o sujeito do acesso ao
saber. A incompletude do Outro, sua inconsistência, rompe com
toda possibilidade de considerar o pai como mestre. Trata-se,
então, de um pai castrado. É portanto dessa falha estrutural
do pai que cada sujeito, de modo singular, inventa algo que
“faz as vezes” disso que pode organizar a cadeia
significante e barrar a satisfação incestuosa, ao unir o
desejo à lei. É assim que Lacan dá um passo decisivo em seu Seminário
17 – O avesso da psicanálise (1969-1970), em sua tarefa de ir mais além
do mito, mais além do Édipo freudiano. Lacan, nesse momento,
afirma que a castração não procede do pai, e sim da linguagem
que traduz a perda de satisfação (gozo) que afeta o sujeito.
Cai, portanto, o império do pai e se introduz sua dimensão de
semblante (Miller,
2005), como aquilo que cada sujeito inventa para barrar o gozo e
fazer surgir a dimensão do desejo.
De
acordo com Nominé (1997), outro momento decisivo da teorização
sobre o pai em Lacan surge em R.S.I.,
seminário de 1975. Já não se trata mais do pai enquanto
representante simbólico do Desejo da Mãe. Aquele pai simbólico
nunca é encontrado e o pai é sempre insuficiente com respeito
àquela função sublime. Trata-se do pai que só tem direito ao
respeito e ao amor se se atreve a por em jogo seu desejo
perverso no encontro com uma mulher fazendo dela causa de seu
desejo. Portanto, o pai só é conseqüência da orientação do
desejo de um homem por uma mulher. Cabe ao pai então, fazer de
uma mãe uma mulher e, desse modo, impedir que a criança fique
numa posição na qual poderia entregar a esse Outro tudo o que
lhe falta. Ele impede que a criança tente satisfazer esse Outro
materno saturando seu desejo. A mãe, por sua vez, ao aceitar
esse lugar de mulher que orienta o desejo do pai, se enfrenta
com sua própria castração e não se torna toda mãe. É essa
versão do pai que assegura a divisão materna, suporta uma
estrutura de transmissão do desejo e barra o gozo. Nesse
momento do ensino de Lacan, ele opera uma disjunção radical
entre, por um lado, a função paterna que une um desejo à Lei,
e, por outro, a função de genitor, provedor e educador. Desse
modo, mesmo um pai desvalorizado socialmente, pouco ideal, como
nas situações clínicas que discutiremos a seguir, pode operar
enquanto uma função.
Além
disso, de acordo com Lacadée (1999), em seu último ensino,
Lacan passa a tomar o pai não mais a partir da palavra, mas a
partir de sua presença,
de sua causa sexual. Esse pai, portanto, longe de transmitir um ideal,
transmite seu modo de se arranjar com o desejo e o gozo. Ele
deixa uma marca pela sua presença, que Lacan situou do lado dos
pecados do pai, de suas paixões, de sua falta. Funda o respeito
e o amor ao pai não mais sobre um pai ideal, e sim sobre um pai
marcado por sua causa sexual.
Se
partirmos do pressuposto de que em toda transmissão há um
impossível, uma perda, podemos concluir que, na transmissão
paterna, esse pai marcado pelo desejo e pelo gozo transmite seu
ponto de rateio, de falha, onde ele esbarra. Ele pode apresentar
várias dificuldades: em fazer de uma mulher causa de seu
desejo, em barrar o gozo do Outro, em regular seu próprio gozo
etc. O pai, então, como Outro barrado, transmite sua própria
castração, sua insuficiência e sua miséria. Em sua função
está inscrito estruturalmente um fracasso, a despeito de sua
condição social ou modo de presença na vida da criança.
5.
A clínica com crianças com dificuldade escolares: a invenção
de um pai passível de uso
O
que as crianças com dificuldades escolares nos ensinam sobre as
relações entre o fracasso escolar, a família e o pai?
Primeiro,
é preciso dizer quais os balizamentos éticos que orientam
esses tratamentos a fim de permitir o entendimento de sua condução.
O responsável pela criança, e não necessariamente os pais
biológicos, são convidados para uma primeira entrevista. Nessa
entrevista investigamos um pouco melhor a queixa e o que
chamamos em psicanálise de pré-história do sujeito: qual o
lugar que ele ocupa no desejo e no discurso do Outro. Isso é
importante porque partimos da hipótese de que a criança pode
estar mais ou menos alienada a esse lugar a ela destinado e
respondendo com seu sintoma a esse lugar. Cabe aqui um breve
comentário sobre como entendemos o sintoma da criança. Para a
psicanálise de orientação lacaniana, o sintoma da criança
sempre se relaciona com a família, trata-se, por um lado, do
modo como ela se inscreve nesse discurso familiar e, por outro,
do modo de fazer existir uma família. Os sintomas neuróticos são
conseqüências do encontro com a falha do complexo de Édipo
que ordena a estrutura da família. O sintoma, então, se
apresenta como uma resposta à falha nessa estrutura. É isso
que Lacan afirma em “Nota sobre a criança”, que o sintoma
da criança responde à verdade do par parental, do par
familiar. Responde ao que falha, ao que há de sintomático
nessa estrutura. A transmissão simbólica operada pela família,
implica a transmissão da falta e da falha, daquilo que não vai
bem nessa estrutura. É por isso que tanto as novas como as
antigas formas de família sempre produzem sintomas – é um
irredutível - tomados no sentido de uma resposta, uma invenção,
uma construção do sujeito para recobrir a falha e reconstruir
essa estrutura.
Retomando
o atendimento, esse responsável é convidado a novas
entrevistas quantas vezes forem necessárias para a condução
do tratamento e quantas vezes ele demandar ser escutado. O mais
importante é que ele seja escutado como um sujeito que pode
enfrentar impasses em sua condição de mãe, pai ou responsável
por uma criança. Esse impasse diz respeito certamente à sua
história subjetiva e que precisa ser escutada a fim de lhe
permitir uma elaboração. Portanto, há uma oferta da palavra
para que esse sujeito possa elaborar e retificar sua posição
diante dessa criança.
Os
atendimentos com as crianças ocorrem simultaneamente a essas
entrevistas com seus responsáveis. Nesses atendimentos as crianças
são convidadas a falar de tudo aquilo que as incomoda e não
somente suas dificuldades escolares. É inevitável nesse
momento que ela fale de seus impasses com o Outro, seja ele
familiar ou escolar. Ela é convidada a falar para que possa não
se colocar como vítima ou objeto desse Outro, mas para se
responsabilizar pela parte que lhe cabe nesses impasses.
Portanto, com a criança que fracassa na escola não se conduz o
tratamento de modo a desresponsabilizá-la por seu fracasso e
culpabilizar o Outro escolar ou familiar, mas para que ela
torne-se responsável pelo seu dizer e seu ato. O efeito dessa
oferta da palavra é quase imediato: uma mudança significativa
na aprendizagem escolar ocorre quando elas começam a se
interessar e falar sobre os impasses com esse Outro,
principalmente o pai. Ao abrir uma questão sobre isso ou sobre
os atos do Outro, construindo uma versão do pai
particularizada, abre-se para esses sujeitos a via do saber
inconsciente com importantes conseqüências para o conhecimento
escolar
Essa
oferta da palavra permite a essas crianças desconstruírem a
família ideal almejada por elas, incluindo aí o pai, e
reconstruírem uma família e um pai possíveis, que permita a
ela se organizar e se localizar como sujeito no mundo. O
tratamento clínico permite a esse sujeito abrir uma questão
sobre o Outro, sobre o desejo do Outro, que retifica sua posição
subjetiva diante do saber inconsciente dando-lhe acesso ao saber
escolar.
O
que percebemos, portanto, é que em alguns casos, o fracasso
escolar servia ao sujeito, como modo de recobrir, nada querer
saber da falha estrutural do Outro, ou seja, sua impossibilidade
de assegurar/garantir a introdução da lei. Serve como uma
estratégia de dar consistência ao Outro, ao não querer saber
sobre o seu furo estrutural.
Essas
crianças nos ensinam que não é possível dispensar a família
como estrutura de organização subjetiva, mas também não se
trata de sustentar uma família ideal, sem furos e sem
problemas.
E
como tudo isso se relaciona com o saber e o fracasso escolar?
Para
a psicanálise, o que move a tarefa de aprender é o desejo de
saber, desejo que surge a partir do momento que o sujeito se
depara com essa falta de saber no Outro, revelada diante da
constatação de sua castração. Para a criança está em jogo
o encontro com esse desejo enigmático da mãe, revelado pela
sua presença/ausência, e com a impossibilidade de encontrar
alguma reposta absoluta para tal enigma. Além disso, a criança
se percebe não sendo esse objeto capaz de obturar esse desejo.
Inscreve-se, portanto, uma falta irredutível no campo do Outro,
que levará o sujeito a adotar posições subjetivas, construir
respostas distintas (Lacadée,
1999). O não-querer saber dessa falta irredutível no campo do
Outro é o que, em alguns casos, como hipótese, impede o acesso
ao saber.
6.
Conclusão
Essa
orientação psicanalítica diferencia-se das concepções de
caráter universalizante, tal como a que supõe o fracasso
escolar como um transtorno afetivo e familiar, ao levar em
consideração a singularidade de cada sujeito, a
particularidade de cada caso. Propõe também uma outra leitura
para o fracasso escolar ou para as dificuldades de aprendizagem
que se distancia de uma perspectiva deficitária que pressupõe
sempre uma deficiência ou um déficit na origem das
dificuldades de aprendizagem. Assim, ao buscar diferenciar-se
dessa leitura deficitária, supõe que esse fracasso na escola,
impasse na relação com o saber, desempenha uma função na
vida do sujeito e na sua relação com o Outro. Dessa forma,
longe de querer desconsiderar as condições históricas,
sociais, políticas e institucionais de produção desse
fracasso (Patto, 1990), busca-se recuperar a participação do sujeito
nessa produção, a fim de tornar possível para ele
responsabilizar-se por isso e retificar sua posição subjetiva.
Além
disso, essa leitura propõe uma inversão lógica no debate que
supõe o fracasso escolar como fruto dos conflitos familiares e
carências paternas. Assim, como hipótese, a partir da psicanálise
de orientação lacaniana, o fracasso na escola, tomado como
impasse na relação com o saber, não seria causado pelo
fracasso da família tradicional, fundada na autoridade paterna
(Roudinesco, 2003).
Ao contrário, o problema estaria localizado em tentar sustentar
uma família tradicional e idealizada a despeito de todas as
transformações sociais e culturais sofridas por essa família,
onde o reinado do pai perdeu seu lugar. Portanto, o fracasso
estaria relacionado não às carências do pai, e sim à posição
subjetiva do sujeito em não querer saber da divisão estrutural
(a castração) do pai. Esse saber torna impossível sustentar o
império paterno (Tort,
2005).
A
psicanálise de orientação lacaniana nos convida então a
perceber que todo sujeito surge de um mal-entendido estrutural
que revela a impossibilidade da relação entre os sexos e que
é esse mal-entendido que é transmitido pelas famílias.
Notas
1.
Trata-se da Clínica de Psicologia do Centro Universitário
Newton Paiva, situada no bairro Nova Granada, em Belo Horizonte,
próxima de duas Escolas – uma Municipal e outra Estadual –,
onde estudam crianças moradoras do Aglomerado Morro das Pedras.
2.
Para Miller, Lacan utiliza o termo cultura por ainda lhe faltar
o conceito de simbólico.
Texto recebido em:
10/01/2007.
Aprovado em: 28/02/2007.
Referências
Bibliográficas
DONZELOT,
J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
FIJALKOW,
J. Mauvais
lecteurs. Por quoi?
Paris:
PUF, 1986.
FREUD,
S. Totem e tabu [1912-1913]. In: Obras
completas, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
________.
Moisés e o monoteísmo [1939]. In:
Obras completas, op.
cit., vol. XXIII.
GRIFFO,
C. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do
aprendiz. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação,
Belo Horizonte, 1996.
LACADÉE,
P. Le malentendu de l’enfant. Des
enseignements psychanalytiques de la clinique avec les enfant.
Paris: Ed. Payot Lausanne,
1999.
LACAN,
J. Os complexos
familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1993.
________.
Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
________.
[1969] Nota sobre a criança. In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed.,2003.
________.
[1956-1957] O seminário.
Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.
________.
[1957-1958] O seminário.
Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1999.
________.
[1969-1970] O seminário,
Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1992.
________.
O seminário, Livro 16: De um outro ao Outro (versão eletrônica).
________.
O seminário, Livro 22:
RSI (versão eletrônica). Inédito.
________.
Televisão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MALEVAL,
J.-C. La forclusión del
nombre del padre: el concepto y su clínica.
Buenos Aires: Paidós, 2002.
MAZUCCA,
Roberto. “El padre sintoma”. In:
MILLER, J.-A. Del
Édipo a la sexuación.
Buenos Aires. Paidós, 2005, p. 83-102.
MILLER,
J.-A. “Breve
introducción al más allá del Édipo”. In: Del Édipo a la sexuación, op. cit., p. 17-22.
________.
Leitura crítica dos “Complexos familiares”, de Jacques
Lacan. In: La Cause
Freudienne, n. 60. Junho, 2005.
NOMINÉ,
B. Estrutura da família edípica. In: O sintoma e a família. Conferências belorizontinas. Belo
Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 1997.
OLIVEIRA,
S.M.E. “Versões do pai no ensino de Lacan”. Agenda
da Escola Brasileira de Psicanálise, Belo Horizonte, 2006.
PATTO,
M.H.S. e outros. O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso
escolar (1991-2002):
um estudo introdutório. Disponível em: www.capes.gov.br,
acesso em 2005.
________.
A produção do fracasso
escolar. São Paulo: T.A.Queiróz, 1990.
PORGE,
E. Os nomes do pai em
Jacques Lacan: pontuações e problemáticas. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
ROUDINESCO,
E. A família em desordem.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
SANTIAGO,
A.L. A inibição
intelectual na psicanálise.
Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.
SANTIAGO,
A.L. e SANTIAGO, J. “A psicanálise em face da familiarização
do mundo: pontos para uma investigação sobre a família”. Curinga,
Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Belo Horizonte,
n.8, 1996, p. 60-65.
TORT,
Michel. Fin du dogme paternel. Local: Éditions Flammarion, Département
Aubier, 2005.
|