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 NOVAS MODALIDADES DO LAÇO SOCIAL

 


Hebe Tizio
Psicanalista
Profa. Dra. Universidad de Barcelona/España

Membro da Escuela de Psicoanálisis de España
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
hebe@tizio.e.telefonica.net

Resumo

A partir da perspectiva social, entende-se que a civilização regula o gozo, donde a civilização remete a fazer civil, a transformar em cidadão, fazer sociável, dito em outros termos, a fazer entrar o gozo no laço social sintomatizado conforme os modelos aceitáveis. A partir da perspectiva da psicanálise, a civilização tem a ver com o discurso. Para Lacan, o discurso excede à palavra, vai mais além dos enunciados que realmente se pronunciam. O discurso subsiste sem palavras porque se trata de relações fundamentais que se sustentam da linguagem. O discurso sustenta a realidade, a modela sem supor o consentimento por parte do sujeito. Como o laço social é afetado por esta atualidade? Os laços são pontuais, as coisas não se programam em longo prazo. O modelo é de conexão e desconexão, quase como se vivessem na Internet os sujeitos fazem redes, links, conectam e desconectam.

Palavras- chave: laço social, civilização, discurso, sujeito, cidadão.

 

   
 

 

  NEW MODALITIES OF THE SOCIAL BOND

Abstract

From the social vantage point, one understands that civilization controls joy, from where it may civilize, transform in citizen, make sociable, and in other terms, bring joy inside the symptomatic social bond according to acceptable patterns. From the psychoanalysis perspective, civilization plays a role in the discourse. To Lacan the discourse exceeds the word. It goes beyond the enunciations that are really articulated. The discourse lives on without words because it is about fundamental relations that feed on language. The discourse supports reality, shapes it without considering the permission from the subject. How is social bond affected by the present state of affairs? The bonds are punctual. Things do not get arranged in long terms. The pattern is of connection and disconnection, almost as though they lived on the internet, subjects build nets, links, connect and disconnect.

Keywords: social bond, civilization, discourse, subject, citizen

 

 

O laço social

O que chamamos, a partir da psicanálise, de laço social? Trata-se da relação entre os seres humanos que se sustenta do discurso e, por meio dele, assume as modalidades de época e marcas de uma cultura determinada. Há laço social porque não há laço natural, na medida em vivemos em um mundo de linguagem. A esta aproximação geral é preciso acrescentar que o laço social se particulariza com as modalidades do gozo dos sujeitos que o realizam.

As relações são assim orientadas pelo discurso e se praticam com margens de liberdade variáveis, o que localiza o laço social enquanto o articulador do macrocosmos social e do individual. O interessante dessa articulação é que é não-toda, quer dizer, não estamos no mito das metades que se juntam para recriar a harmonia perdida. O laço social é uma forma de fazer laço com o outro que conecta, e ao mesmo tempo separa, pois se sustenta sobre um vazio que abrigará a causa do sujeito, sua singularidade. Isto sinaliza que não há determinismo social, pois a causa está no sujeito.

A partir da perspectiva social, entende-se que a civilização regula o gozo, daí que a civilização remete a fazer civil, a transformar em cidadão, fazer sociável, dito em outros termos, fazer entrar o gozo no laço social sintomatizado conforme os modelos aceitáveis.

A partir da perspectiva da psicanálise, a civilização tem a ver com o discurso. Para Lacan o discurso excede à palavra, vai mais além dos enunciados que realmente se pronunciam. O discurso subsiste sem palavras, porque se trata de relações fundamentais que se sustentam da linguagem. O discurso sustenta a realidade, a modela sem supor o consenso por parte do sujeito (Lacan, 1977, p. 21). A psicanálise sabe que há o gozo, que pode regular-se pela via do recalque e da sublimação; gozo que pode regular-se fantasmaticamente e transformar-se em prazer, mas sabe também que não é todo regulável.

 

Novas modalidades do laço social

Não é fácil falar das novas modalidades do laço social, porque é verdade que não se pode generalizar, mas, ao mesmo tempo, porque cada um é filho de sua época e muitas vezes há dificuldades para tomar uma distância necessária que permita formalizar a realidade em que se vive. Isto se evidencia na existência de margens variáveis de incompreensão, que freqüentemente se revestem de uma certa dramaticidade, ou de um relativismo próximo do cinismo. Por isso, o estatuto desta apresentação é o de apontar algumas contribuições para pensar o tema e abrir ao debate.

Muito se pode falar sobre estas questões, mas as novas formas do sintoma requerem um estudo profundo dos efeitos do discurso capitalista, como variante do discurso do mestre, para não dar demasiada consistência às identificações mono sintomáticas. Embora o sintoma abrigue um núcleo de gozo autista, seus envoltórios mudam, esses envoltórios formais do sintoma tomam apoio no discurso da época.

Cabe diferenciar o discurso do mestre como momento da sociedade que se refere ao mestre antigo, do discurso do mestre como o discurso do inconsciente, que produz um efeito no sujeito e um mais de gozar. Em sua primeira acepção, faz muitos anos que vem sofrendo modificações até chegar ao discurso capitalista atual, que Lacan toma como uma variante do discurso do mestre.

Qual é a particularidade do discurso do mestre tomado pelo lado do inconsciente? É que estabelece uma impossibilidade entre o sujeito e o mais-de-gozar, que dá como resultado, que o objeto sustenta a realidade pelo fantasma e dá satisfação regulada. Esta é a função civilizadora ou, o que é o mesmo, a inclusão do gozo no laço social de maneira sintomatizada. Por isso Lacan deu uma fórmula do laço social: 2+a.

O semblante do pai, encarnado nas formas culturais e nos ideais unificadores da época, deu uma determinada consistência e regulação ao gozo sob a forma de um laço social muito centrado no recalque, basta pensar no horizonte vitoriano e sua relação com o sintoma. Por que falar agora dos efeitos do discurso capitalista se esse discurso existe no social há muitos séculos e tem organizado a época moderna? Porque não é a mesma época moderna, esse mundo moderno atual, onde a relação do discurso científico com o discurso capitalista gerou uma nova revolução tecnológica que chamamos Internet. A mudança marca a passagem à realidade sustentada pelo fantasma, à realidade como realização do fantasma dado que se suprimiu a barreira que separava o sujeito do gozo. Daí que os sintomas atuais aparecem com um predomínio do gozo autista, e falamos de uma clínica da passagem ao ato. Que repercussões isto tem no laço social? O laço da modernidade se sustenta dessa barreira do recalque, daí o predomínio dos semblantes, a divisão entre o público e o privado, etc. O individualismo indica que caso se promovam os objetos sucedâneos, haverá uma mudança nas modalidades do laço. Na realidade mostra que ninguém está só, se não há o outro que vela o objeto, há a companhia direta do objeto.

 

A autoridade

O que Bauman chamou de “a modernidade sólida” se sustenta de ideais unificadores:

“O capitalismo pesado, de estilo fordista, era o mundo dos legisladores, os criadores de rotinas e os supervisores, o mundo dos homens e mulheres dirigidos por outros que perseguiam fins estabelecidos por outros. Por essa razão era também um mundo de autoridades: líderes que sabiam o que era melhor e mestres que ensinavam seguir adiante” (Bauman, 2003, p. 70).

Freud assiste já à queda deste modelo e se poderia dizer que a psicanálise aparece no momento em que se vislumbra a queda dos semblantes do pai:

“Vocês não temam exagerar a mania de autoridade e a inconsistência interna dos seres humanos. Poderia proporcionar-lhes um padrão para medi-las, a extraordinária multiplicação das neuroses desde que as religiões entraram em decadência” 1.

Efetivamente, Freud estabelece uma certa relação entre o complexo paterno e Deus, como se pode ver em “Uma recordação infantil de Leonardo Da Vinci”2, quando diz que “certos jovens perdem a fé religiosa tão rápido quanto se quebra neles a autoridade do pai”. A autoridade do pai era introjetada como núcleo do supereu perpetuando a proibição3. Para Freud, a civilização pretendia uma renúncia do gozo de tipo adaptativo, mas esta tentativa de solucionar o mal-estar gerava outro novo porque relança o circuito do supereu.

Todavia, a modernidade sólida acreditava na relação com uma certa cautela, os ideais da época do imperativo categórico assim o testemunham. A pós-modernidade é a consciência na medida perdida.

Lacan entende a civilização como produtora de deformações e se antecipa a nossa época onde o problema é a quantidade de dejetos que, como retorno do recalcado, invadem contaminando. Os laços sociais parecem seguir o mesmo ritmo, consumir e rechaçar.

 

Desregulações

Hoje se encontram em primeiro plano os efeitos que o discurso capitalista introduz com o apagamento da dimensão subjetiva e a desregulação do gozo, extravio e aceleração.

Fala-se da perda da vergonha. Há que se recordar que para Freud a vergonha era uma barreira necessária para o desenvolvimento da sexualidade e tinha uma importante função socializadora. O desenvolvimento precoce da vergonha remete a um Outro primordial que olha, anterior ao Outro que julga. A vergonha ajudaria assim a circunscrever o gozo, a fixá-lo, e esta seria sua função civilizadora, reguladora. A vergonha é, em certa medida, um véu para o gozo. Esse Outro que se sustenta como regulador, que se faz existir como tal, se revela inexistente na pós-modernidade.

Como se trata a desregulação? As políticas sociais tentam regular com intervenções diretas. A partir da psicanálise não se pode abordar o gozo se não se lhe emprestam envolturas, semblantes para interpelá-lo. Sabe-se que ao atacar diretamente o gozo, gera-se transferência negativa. Aparece o que podíamos chamar a perda de consentimento ao laço, por exemplo, o laço educativo. Assim aparecem diferentes fenômenos de recusa e que se caracterizam pela falta de demanda. É por isso que os diferentes trabalhadores sociais estão centrados na problemática de casos onde a demanda é de um terceiro, mas não do sujeito. Assim, por exemplo, devem criar em muitos casos condições prévias para a demanda educativa ou assistencial, quer dizer, devem estabelecer uma relação com o Outro e logo gerar as condições para que o sujeito queira algo.

 

O amor e o desejo

Lacan, no Seminário X, precisa que o amor é um fato cultural, não poderia haver amor se não houvesse cultura. Também assinala que é o amor o que permite ao gozo condescender ao desejo porque vela o que causa o desejo e evita assim a angústia:

“Para destacá-lo um pouco mais diria que o desejo é coisa mercantil que há uma cotização do desejo que se faz subir e baixar culturalmente, e que do preço que se dá ao desejo no mercado dependem a cada momento a forma e o nível do amor. O amor, na medida em que ele mesmo é um valor, como muito bem dizem os filósofos, está feito da idealização do desejo” (Lacan, 2005, p. 195).

A depreciação da dimensão do amor traz, por um lado, a perda do desejo, e pelo outro o recrudescimento do gozo auto-erótico. Um artigo divulgado há pouco no El País, falava do “multiloving” que em realidade é a exposição na Internet do modo de gozo de cada sujeito e a busca exclusiva dessa satisfação. O laço erótico deve se sintomatizar num “parceiro” daí que falamos do “parceiro-sintoma”. Chamamos “parceiro-sintoma” ao laço que permite passar pelo Outro para obter a satisfação sexual.

 

O saber

As modificações do sujeito suposto saber afetam vários campos onde a transferência é crucial. Não falamos somente do laço educativo senão também do laço médico, por exemplo. Perdeu-se a suposição de saber que implicava que se tivesse confiança no profissional que ajudaria a ganhar um saber, uma cura, etc. A perda dessa dimensão epistêmica faz proliferar a doxa e inverte o esquema: aquele que sabe é o sujeito.

No campo escolar o cognitivismo repousa nessa suposição, aquele que sabe é o aluno e o profissional ao invés de fazer a oferta educativa se localiza na posição de demanda: “diga-me o que queres”. Hoje é o sujeito, ele próprio, que confecciona o menu, fazendo zaping ou buscando no Google. Ninguém busca o todo ali, senão algo pontual. Como essa informação está sempre à disposição não é necessária a memória, é um saber que não se fixa.

 

Indicativo de conclusões

Como o laço social é afetado por esta atualidade? Os laços são pontuais, as coisas não se programam em longo prazo. O modelo é de conexão e desconexão, quase como se vivessem na Internet, os sujeitos fazem redes, links, conectam e desconectam. Por isso é importante que haja pontos de referência que permitam que essa mobilidade não seja errática. Isso influi também na psicanálise, muitos sujeitos se conformam com algum circuito, os jovens que se deslocam, vão e vêm. Há pouco, trabalhando com profissionais do campo social, eles se queixavam de que os sujeitos iam e vinham, que os laços não eram duradouros senão pragmáticos. Há que se contar com essa realidade, e é o aparelho que encarna um ponto de referência fixo a que os sujeitos, segundo necessitem, se conectam.

Não se trata, como já assinalei, de perspectivas negativistas senão de poder entender a lógica da mudança social e como as novas modalidades do Outro marcam os laços sociais. Isso sim, lembrar sempre que mais além das perspectivas gerais há que contar com o particular de cada sujeito.  

Texto recebido em: 04/09/2006.

Aprovado em: 28/12/2006.

 

Notas

1. Freud, S. Las perspectivas futuras de la terapia analítica. Em: Obras completas. Vol. XI, p. 138.

2. Id. Un recuerdo infantil de Leonardo Da Vinci. Op. Cit., p. 115.

3. Id., Sepultamiento del complejo de Edipo. Op. cit., vol. XIX, p. 184.

 

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. La modernidad líquida. Argentina: FCE, 2003.

FREUD, S. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1988.

LACAN, J. Radiofonia & Televisión. Barcelona: Anagrama., 1977.

______.El Seminário. Livro X: La angustia. Buenos Aires: Paidós, 2005