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O
laço social
O
que chamamos, a partir da psicanálise, de laço social?
Trata-se da relação entre os seres humanos que se sustenta do
discurso e, por meio dele, assume as modalidades de época e
marcas de uma cultura determinada. Há laço social porque não
há laço natural, na medida em vivemos em um mundo de
linguagem. A esta aproximação geral é preciso acrescentar que
o laço social se particulariza com as modalidades do gozo dos
sujeitos que o realizam.
As
relações são assim orientadas pelo discurso e se praticam com
margens de liberdade variáveis, o que localiza o laço social
enquanto o articulador do macrocosmos social e do individual. O
interessante dessa articulação é que é não-toda, quer
dizer, não estamos no mito das metades que se juntam para
recriar a harmonia perdida. O laço social é uma forma de fazer
laço com o outro que conecta, e ao mesmo tempo separa, pois se
sustenta sobre um vazio que abrigará a causa do sujeito, sua
singularidade. Isto sinaliza que não há determinismo social,
pois a causa está no sujeito.
A
partir da perspectiva social, entende-se que a civilização
regula o gozo, daí que a civilização remete a fazer civil, a
transformar em cidadão, fazer sociável, dito em outros termos,
fazer entrar o gozo no laço social sintomatizado conforme os
modelos aceitáveis.
A
partir da perspectiva da psicanálise, a civilização tem a ver
com o discurso. Para Lacan o discurso excede à palavra, vai
mais além dos enunciados que realmente se pronunciam. O
discurso subsiste sem palavras, porque se trata de relações
fundamentais que se sustentam da linguagem. O discurso sustenta
a realidade, a modela sem supor o consenso por parte do sujeito
(Lacan, 1977, p.
21). A psicanálise sabe que há o gozo, que pode regular-se
pela via do recalque e da sublimação; gozo que pode regular-se
fantasmaticamente e transformar-se em prazer, mas sabe também
que não é todo regulável.
Novas
modalidades do laço social
Não
é fácil falar das novas modalidades do laço social, porque é
verdade que não se pode generalizar, mas, ao mesmo tempo,
porque cada um é filho de sua época e muitas vezes há
dificuldades para tomar uma distância necessária que permita
formalizar a realidade em que se vive. Isto se evidencia na
existência de margens variáveis de incompreensão, que freqüentemente
se revestem de uma certa dramaticidade, ou de um relativismo próximo
do cinismo. Por isso, o estatuto desta apresentação é o de
apontar algumas contribuições para pensar o tema e abrir ao
debate.
Muito
se pode falar sobre estas questões, mas as novas formas do
sintoma requerem um estudo profundo dos efeitos do discurso
capitalista, como variante do discurso do mestre, para não dar
demasiada consistência às identificações mono sintomáticas.
Embora o sintoma abrigue um núcleo de gozo autista, seus envoltórios
mudam, esses envoltórios formais do sintoma tomam apoio no
discurso da época.
Cabe
diferenciar o discurso do mestre como momento da sociedade que
se refere ao mestre antigo, do discurso do mestre como o
discurso do inconsciente, que produz um efeito no sujeito e um
mais de gozar. Em sua primeira acepção, faz muitos anos que
vem sofrendo modificações até chegar ao discurso capitalista
atual, que Lacan toma como uma variante do discurso do mestre.
Qual
é a particularidade do discurso do mestre tomado pelo lado do
inconsciente? É que estabelece uma impossibilidade entre o
sujeito e o mais-de-gozar, que dá como resultado, que o objeto
sustenta a realidade pelo fantasma e dá satisfação regulada.
Esta é a função civilizadora ou, o que é o mesmo, a inclusão
do gozo no laço social de maneira sintomatizada. Por isso Lacan
deu uma fórmula do laço social: 2+a.
O
semblante do pai, encarnado nas formas culturais e nos ideais
unificadores da época, deu uma determinada consistência e
regulação ao gozo sob a forma de um laço social muito
centrado no recalque, basta pensar no horizonte vitoriano e sua
relação com o sintoma. Por que falar agora dos efeitos do
discurso capitalista se esse discurso existe no social há
muitos séculos e tem organizado a época moderna? Porque não
é a mesma época moderna, esse mundo moderno atual, onde a relação
do discurso científico com o discurso capitalista gerou uma
nova revolução tecnológica que chamamos Internet. A mudança
marca a passagem à realidade sustentada pelo fantasma, à
realidade como realização do fantasma dado que se suprimiu a
barreira que separava o sujeito do gozo. Daí que os sintomas
atuais aparecem com um predomínio do gozo autista, e falamos de
uma clínica da passagem ao ato. Que repercussões isto tem no
laço social? O laço da modernidade se sustenta dessa barreira
do recalque, daí o predomínio dos semblantes, a divisão entre
o público e o privado, etc. O individualismo indica que caso se
promovam os objetos sucedâneos, haverá uma mudança nas
modalidades do laço. Na realidade mostra que ninguém está só,
se não há o outro que vela o objeto, há a companhia direta do
objeto.
A
autoridade
O
que Bauman chamou de “a modernidade sólida” se sustenta de
ideais unificadores:
“O
capitalismo pesado, de estilo fordista, era o mundo dos
legisladores, os criadores de rotinas e os supervisores, o mundo
dos homens e mulheres dirigidos por outros que perseguiam fins
estabelecidos por outros. Por essa razão era também um mundo
de autoridades: líderes que sabiam o que era melhor e mestres
que ensinavam seguir adiante” (Bauman,
2003, p. 70).
Freud
assiste já à queda deste modelo e se poderia dizer que a
psicanálise aparece no momento em que se vislumbra a queda dos
semblantes do pai:
“Vocês não temam exagerar a
mania de autoridade e a inconsistência interna dos seres
humanos. Poderia proporcionar-lhes um padrão para medi-las, a
extraordinária multiplicação das neuroses desde que as religiões
entraram em decadência”
1.
Efetivamente,
Freud estabelece uma certa relação entre o complexo paterno e
Deus, como se pode ver em “Uma recordação infantil de
Leonardo Da Vinci”2, quando diz que “certos
jovens perdem a fé religiosa tão rápido quanto se quebra
neles a autoridade do pai”. A autoridade do pai era
introjetada como núcleo do supereu perpetuando a proibição3.
Para Freud, a civilização pretendia uma renúncia do gozo de
tipo adaptativo, mas esta tentativa de solucionar o mal-estar
gerava outro novo porque relança o circuito do supereu.
Todavia,
a modernidade sólida acreditava na relação com uma certa
cautela, os ideais da época do imperativo categórico assim o
testemunham. A pós-modernidade é a consciência na medida
perdida.
Lacan
entende a civilização como produtora de deformações e se
antecipa a nossa época onde o problema é a quantidade de
dejetos que, como retorno do recalcado, invadem contaminando. Os
laços sociais parecem seguir o mesmo ritmo, consumir e rechaçar.
Desregulações
Hoje
se encontram em primeiro plano os efeitos que o discurso
capitalista introduz com o apagamento da dimensão subjetiva e a
desregulação do gozo, extravio e aceleração.
Fala-se
da perda da vergonha. Há que se recordar que para Freud a
vergonha era uma barreira necessária para o desenvolvimento da
sexualidade e tinha uma importante função socializadora. O
desenvolvimento precoce da vergonha remete a um Outro primordial
que olha, anterior ao Outro que julga. A vergonha ajudaria assim
a circunscrever o gozo, a fixá-lo, e esta seria sua função
civilizadora, reguladora. A vergonha é, em certa medida, um véu
para o gozo. Esse Outro que se sustenta como regulador, que se
faz existir como tal, se revela inexistente na pós-modernidade.
Como
se trata a desregulação? As políticas sociais tentam regular
com intervenções diretas. A partir da psicanálise não se
pode abordar o gozo se não se lhe emprestam envolturas,
semblantes para interpelá-lo. Sabe-se que ao atacar diretamente
o gozo, gera-se transferência negativa. Aparece o que podíamos
chamar a perda de consentimento ao laço, por exemplo, o laço
educativo. Assim aparecem diferentes fenômenos de recusa e que
se caracterizam pela falta de demanda. É por isso que os
diferentes trabalhadores sociais estão centrados na problemática
de casos onde a demanda é de um terceiro, mas não do sujeito.
Assim, por exemplo, devem criar em muitos casos condições prévias
para a demanda educativa ou assistencial, quer dizer, devem
estabelecer uma relação com o Outro e logo gerar as condições
para que o sujeito queira algo.
O
amor e o desejo
Lacan,
no Seminário X, precisa que o amor é um fato cultural,
não poderia haver amor se não houvesse cultura. Também
assinala que é o amor o que permite ao gozo condescender ao
desejo porque vela o que causa o desejo e evita assim a angústia:
“Para
destacá-lo um pouco mais diria que o desejo é coisa mercantil
que há uma cotização do desejo que se faz subir e baixar
culturalmente, e que do preço que se dá ao desejo no mercado
dependem a cada momento a forma e o nível do amor. O amor, na
medida em que ele mesmo é um valor, como muito bem dizem os filósofos,
está feito da idealização do desejo” (Lacan,
2005, p. 195).
A
depreciação da dimensão do amor traz, por um lado, a perda do
desejo, e pelo outro o recrudescimento do gozo auto-erótico. Um
artigo divulgado há pouco no El País, falava do “multiloving”
que em realidade é a exposição na Internet do modo de gozo de
cada sujeito e a busca exclusiva dessa satisfação. O laço erótico
deve se sintomatizar num “parceiro” daí que falamos do
“parceiro-sintoma”. Chamamos “parceiro-sintoma” ao laço
que permite passar pelo Outro para obter a satisfação sexual.
O
saber
As
modificações do sujeito suposto saber afetam vários campos
onde a transferência é crucial. Não falamos somente do laço
educativo senão também do laço médico, por exemplo.
Perdeu-se a suposição de saber que implicava que se tivesse
confiança no profissional que ajudaria a ganhar um saber, uma
cura, etc. A perda dessa dimensão epistêmica faz proliferar a
doxa e inverte o esquema: aquele que sabe é o sujeito.
No
campo escolar o cognitivismo repousa nessa suposição, aquele
que sabe é o aluno e o profissional ao invés de fazer a oferta
educativa se localiza na posição de demanda: “diga-me o que
queres”. Hoje é o sujeito, ele próprio, que confecciona o
menu, fazendo zaping
ou buscando no Google. Ninguém busca o todo ali, senão algo
pontual. Como essa informação está sempre à disposição não
é necessária a memória, é um saber que não se fixa.
Indicativo
de conclusões
Como
o laço social é afetado por esta atualidade? Os laços são
pontuais, as coisas não se programam em longo prazo. O modelo
é de conexão e desconexão, quase como se vivessem na
Internet, os sujeitos fazem redes, links,
conectam e desconectam. Por isso é importante que haja pontos
de referência que permitam que essa mobilidade não seja errática.
Isso influi também na psicanálise, muitos sujeitos se
conformam com algum circuito, os jovens que se deslocam, vão e
vêm. Há pouco, trabalhando com profissionais do campo social,
eles se queixavam de que os sujeitos iam e vinham, que os laços
não eram duradouros senão pragmáticos. Há que se contar com
essa realidade, e é o aparelho que encarna um ponto de referência
fixo a que os sujeitos, segundo necessitem, se conectam.
Não
se trata, como já assinalei, de perspectivas negativistas senão
de poder entender a lógica da mudança social e como as novas
modalidades do Outro marcam os laços sociais. Isso sim, lembrar
sempre que mais além das perspectivas gerais há que contar com
o particular de cada sujeito.
Texto
recebido em: 04/09/2006.
Aprovado
em: 28/12/2006.
Notas
1.
Freud, S. Las
perspectivas futuras de la terapia analítica. Em: Obras
completas. Vol. XI, p. 138.
2.
Id. Un recuerdo
infantil de Leonardo Da Vinci. Op. Cit., p. 115.
3.
Id., Sepultamiento
del complejo de Edipo. Op.
cit.,
vol. XIX, p. 184.
Referências
bibliográficas
BAUMAN,
Z. La modernidad líquida.
Argentina: FCE,
2003.
FREUD,
S. Obras completas.
Buenos
Aires: Amorrortu Ed., 1988.
LACAN,
J. Radiofonia &
Televisión. Barcelona: Anagrama., 1977.
______.El
Seminário. Livro X:
La angustia. Buenos
Aires: Paidós, 2005
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