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 AS INCIDÊNCIAS NA CLÍNICA DAS VERSÕES DO NOME-DO-PAI (III)

 

 

Sílvia Elena Tendlarz
Analista praticante
outora em psicologia Universidade de Salvador/Buenos Aires
Diploma de Mestrado em Psicologia clínica e patológica/Universidade de Rennes

Doutorado no Département de Psychanalyse/Paris VIII

Docente do Programa de Treinamento Clínico/Universidade Buenos Aires (UBA)
Membro da Escola de Orientação Lacaniana (Argentina)

Membro da École de la Cause Freudienne (França)

Membro da Associação Mundial de Psicanálise

stendlarz@fibertel.com.ar

 

Terceira aula do curso ministrado no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ, em 2005. 

Resumo

A autora retoma o tema de sua primeira e segunda conferências nas quais trabalhou as versões do Nome-do-Pai no primeiro e segundo ensinos de Lacan. Aqui, ela avança um pouco mais na direção do último Lacan.

Palavras-chave: função paterna, versões do pai, fórmulas da sexuação, sacrifício de Abraão,

 

   
 

 


 THE CLINICAL INCIDENCES OF FATHER FUNCTION VERSIONS (III)

Third class of the course taught at the Graduated Program Studies on Psychoanalytic Theory, in 2005.

 

Abstract

The author re-addresses the topic of hers first and second conferences in which she worked the versions of father in the first and the second teaching by Lacan. Here she advances in the direction of the last Lacan.

Keywords: father function, versions of the father, formulas of sexuation, Abraham’s sacrifice.

 

 

Partirei da virada operada por Lacan na direção do além do Édipo e da pluralização dos Nome-do-Pai. Vimos, na aula de ontem, que no final do Seminário 10: A angústia, Lacan faz uma passagem do pai ao objeto a. E, ainda mais, ele leva a cabo uma generalização da operação de castração sob a modalidade da separação. No fim deste seminário, na medida em que vai tematizando as formas do objeto a: oral, anal, olhar e voz, já começa a trabalhar o tema da separação, apontando a passagem da castração à separação. Mas, apenas no seminário seguinte, o Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ele formalizará as duas operações lógicas de constituição do sujeito: a alienação e a separação.

Além disso, no Seminário 10, ao invés de se referir à angústia de castração, ele fala da detumescência, para situar que a alternância turgência(ereção)-detumescência marca, no imaginário, a presença ou ausência da negativização do falo.

No final do Seminário 10, Lacan desemboca num questionamento do pai, anunciando a seguir o tema do seminário seguinte: os Nomes-do-Pai. Ou seja, ele questiona o pai e propõe imediatamente a pluralização do Nome-do-Pai. Sabemos que ele dá apenas uma única aula deste seminário. Uma conjuntura particular política da psicanálise – ou seja, a sua exclusão da lista dos didatas da IPA, que ele chamou de sua excomunhão – faz com que Lacan não dê continuidade a esse seminário. Ele chega a dizer mesmo que jamais voltaria a retomá-lo. Vocês sabem o que ocorreu a seguir: em 1964, após mudar o local em que dava seu seminário, Lacan inicia o Seminário 11.

Temos então a seguinte trilogia:

1) o final do Seminário 10;

2) a única aula do Seminário: Os Nomes-do-Pai

3) o Seminário 11, no qual irá se produzir uma mudança por parte de Lacan em relação ao Édipo freudiano.

 

O que Lacan diz nesta aula dos Nomes-do-Pai?

Penso que essa aula foi publicada em português (Lacan, 2005). Nela encontramos dois quadros de Caravaggio sobre o sacrifício de Isaac. Na primeira versão do sacrifício de Isaac, aparece o rosto aterrorizado de Isaac diante da decisão de seu pai, Abraão, de matá-lo. Na segunda, surge um anjo que vem anunciar a Abraão a decisão de Deus de que ele não deve matar seu filho.

Lacan diz nesta aula: “Se Freud coloca o mito do pai no centro de sua doutrina, é claro que é em razão da inevitabilidade desta questão” (Id., p. 71). Ou seja, é inevitável falar do pai. “Não menos claro é o fato de que, se toda a teoria e a práxis da psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem ousado ir mais longe, nessa questão, que Freud” (Id., p. 72). Lacan diz então que se trata de ir mais longe que Freud, para além de sua idealização do pai através do Édipo.

O que Lacan promove aqui é um exame do desejo do pai. Trata-se do pai que deseja, e não do Pai todo amor. É o que víamos antes: o desejo do Outro implica o . Ele examina a questão do desejo do Outro sob a modalidade do desejo de Deus, deste Deus que exige que Abraão sacrifique seu filho, Isaac, para lhe provar a sua fé.

Vocês sabem que Sara não podia dar filhos a Abraão. O milagre se produz quando Sara, já em idade avançada, consegue engravidar e dar um filho a Abraão. Neste momento, Abraão, que já tinha tido um filho com sua primeira esposa, que não era judia, abandona esta primeira família no deserto para viver com Sara e Isaac. Chega então o momento em que Deus decide pôr a fé de Abraão à prova, ordenando-lhe que este lhe ofereça a vida de seu filho predileto, Isaac, em holocausto. Abraão decide fazê-lo, mas, no último momento, quando Abraão está preste a matar Isaac, aparece um anjo enviado por Deus, anunciando que Deus lhe pede para não consumar o sacrifício.

Kierkegaard examina este episódio da Bíblia num livro chamado Temor e tremor. O livro se inicia com um capítulo chamado “Prelúdio e variações” (Kierkegaard, 2004, p. 21), no qual Kierkegaard apresenta quatro variações do sacrifício de Isaac.

Lacan faz referência a este trecho de Kierkegaard: “E Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: ‘Toma Isaac, teu único filho, a quem amas, e leva-o à Terra de Moriah, e o ofereça a mim em holocausto em um dos montes que te indicarei’”. Esta é a frase e a partir dela se iniciam as variações. Lacan a enuncia assim: “E Deus ordena: ‘sacrifica teu filho, mate-o’, e em quatro variações, Abraão o executa”.

 

Primeira variação do Sacrifício de Isaac

“Era de madrugada, Abraão levantou-se e mandou preparar os burros. Deixou sua casa com Isaac e, por uma janela, Sara os viu descer o vale, até que os perdeu de vista”.

“Eles caminharam, silenciosamente, no lombo de seus burros, durante três dias. No amanhecer do quarto dia, Abraão, que não dissera sequer uma palavra, levantou os olhos e viu ao longe o Monte Moriah. Despediu seus criados e tomou, ele próprio, Isaac pela mão e empreendeu a subida. Abraão se dizia: ‘Não posso ocultar-me por mais tempo onde conduz este caminho’. Deteve-se. Apoiou sua mão na cabeça de Isaac para abençoá-lo, e o filho abaixou a cabeça para receber a benção. A face de Abraão era a de um pai, doce era seu olhar e sua voz persuasiva” (Kierkegaard, 2004, p. 22). Temos aqui a imagem de um pai ideal.

“Mas Isaac não podia entendê-lo, sua alma era incapaz de elevar-se tanto. Abraçou-se aos joelhos de Abraão, jogou-se a seus pés e clamou por clemência. Implorou por sua juventude, por suas doces esperanças”. As súplicas do filho evocavam intensamente as alegrias da casa paterna e os sofrimentos da solidão. Então, Abraão levantou-o, tomou-o pela mão e continuou a caminhar. Suas palavras estavam cheias de consolo e de exortação. Mas Isaac não podia compreendê-lo. Continuaram subindo morro acima, mas Isaac não o compreendia. Então, Abraão afastou-se por um momento do filho e, quando Isaac olhou novamente sua face de pai, encontrou-a modificada, porque o olhar do pai se tornara feroz e suas feições, aterradoras. Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou: ‘Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai. Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque me inunda de prazer!”. Vejam a outra cara do pai ideal, a voz do supereu: “Vou te matar porque gozo ao fazê-lo, por puro gozo!”

“Então Isaac estremeceu até a medula de seus ossos e exclamou angustiado: ‘Deus do Céu, tende misericórdia de mim! Deus de Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro neste mundo!’. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor onipotente, receba minha humilde ação de agradecimento, pois é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do que perca a fé em ti” (Kierkegaard, 2004, p. 22).

O que temos nesta primeira variação? Por amor a Deus, ao Pai, Abraão está disposto a matar seu filho, cumprindo a ordem dada por Deus. Desta maneira, salva o Pai, fazendo-o existir através do amor ao Pai, do amor a Deus. Mas este amor ao Pai tem o seu avesso de mandado superegóico, o mandato desse Deus que deseja que Abraão mate seu filho. Este é o ponto em que aparece o desejo do Outro, ponto em que aparece o pecado do pai. Ele diz a Isaac que o matará por ser um idólatra, justamente para salvar o Pai, pois prefere que seu filho acredite que ele é um monstro do que perca a fé em Deus. Não apenas está disposto a matar seu filho, mas também a apresentar-se como um monstro diante dele para salvar o amor ao Pai com esta vertente de mandato superegóico. Com efeito, o que ele salva nesta versão é o amor de seu filho ao Pai. Vejam o que Isaac diz: “Deus de Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro nesta terra!”.

 

Segunda variação

Vou ler apenas a parte final, que é a que varia:

“Abraão viu o carneiro que Deus havia providenciado, abençoou-o e o sacrificou, e regressou a sua casa. Desse dia em diante, Abraão foi somente um velho. Nunca mais pode esquecer o que Deus havia exigido dele. Isaac continuou crescendo como antes, mas os olhos do pai haviam se nublado para sempre e jamais viram a alegria”.

Nesta segunda variação, Kierkegaard nos apresenta o pecado do pai: o pecado de haver tentado matar seu filho retorna como sentimento de culpa. “Ele se tornou um velho e jamais voltou a ter alegria” como efeito do sentimento de culpa.

 

Terceira variação

Vocês perceberam que as variações sempre começam do mesmo modo, para terminar dizendo outra coisa.

“Em uma tarde agradável, Abraão subiu sozinho ao Monte Moriah. Ali, ele jogou-se de bruços contra o solo e esfregou seu rosto na terra, implorando a Deus que o abandonara em pecado por haver querido sacrificar Isaac e, conseqüentemente, ter esquecido sua verdade de pai para com o filho”.

“Muitas vezes voltou depois Abraão a fazer o mesmo caminho solitário, mas não achou o repouso que sua alma ia buscar. Não podia entender que fora pecado haver querido sacrificar a Deus seu melhor tesouro, o filho amado, pelo qual, com gosto, havia oferecido sua própria vida, uma e mil vezes. Se era pecado, e não amara Isaac, não podia entender como poderia ser perdoado. Existe, por acaso, pecado mais horrível?”

Vocês percebem que nesta terceira variação, Abraão não sente apenas culpa, mas se sente mesmo um criminoso. Ele havia praticado o crime de haver tentado matar seu filho, como Deus lhe ordenava. Mas, quanto mais criminoso se sentia, mais culpa sentia. Encontramos aqui o implacável retorno superegóico produzido pela renúncia pulsional. Quanto mais Abraão se martiriza, pior se sente e mais se sente culpado. Mais adiante retomaremos esta questão da renúncia pulsional e do supereu.

Então, nessa terceira variação, à culpa se acrescenta o imperdoável do crime.

 

Quarta variação

“Era de madrugada [...]. Abraão fez todos os preparativos para o sacrifício. Mas, quando se afastou um pouco para sacar a faca, Isaac viu como se crispava de desespero a mão esquerda de seu pai e como todo o seu corpo estremecia. Mas, Abraão sacou a faca. Depois regressaram à sua casa, e Sara foi ao encontro deles. Isaac, no entanto, havia perdido a fé. Jamais disse uma só palavra disso nesse mundo, Isaac nunca disse nada a ninguém sobre o que ele havia visto. E Abraão, por seu lado, jamais sequer suspeitou que alguém o tivesse visto” (Kierkegaard, 2004, p. 25).

Vejam que esta variação esclarece que Isaac sabia do pecado do pai. A falta do pai, seu pecado, retorna sobre o filho, que nada diz sobre isso. Se Isaac sabe que Abraão puxou a faca por amor ao Pai, esta última seqüência mostra que não somente o assassinato do pai primitivo foi em vão, mas também a tentativa de sacrifício foi em vão, pois Isaac perdeu a fé em Deus. Ele sabia do pecado de seu pai, sabia do significante da falta do Outro e não sustenta o saber do Pai.

Vocês me seguem até aqui?

Falamos da renúncia pulsional, que alimenta o supereu: quanto mais Abraão se sente culpado, mais ele pensa ter praticado um crime. Como ele poderia ser perdoado? É justamente isso que Lacan formula como os paradoxos do supereu freudiano.

Serei muito breve, pois não temos tempo para desenvolver o tema do supereu em Freud e em Lacan. Vocês se lembram que, em 1923, Freud diz que, como resultado do complexo de Édipo, constitui-se o ideal do eu e o supereu. Há ambigüidades porque Freud diz uma coisa em um momento e, em outro, diz outra. Por um lado, ele diferencia o ideal do eu e o supereu dizendo que o ideal do eu é a identificação primeira ao pai. Trata-se de uma identificação direta e imediata, mais precoce do que o investimento de objeto. É uma identificação primária. Quanto ao supereu, ele o define como um resto do Édipo. Freud diz precisamente que o supereu é um resíduo das primeiras escolhas de objeto. É uma enérgica formação reativa (Freud, 1923, p. 45-54). Vocês se dão conta que Freud diz, por um lado, que na saída do Édipo aparece o Ideal e o supereu, como se fossem equivalentes e, depois, diz o contrário: o ideal do eu é anterior à escolha de objeto e o supereu é um resíduo, um resto, do investimento nos objetos edípicos. Vocês vêem que não é um tema muito claro em Freud. É Lacan que se ocupa de distingui-los.

Lacan os distingue no Seminário 5, quando coloca o ideal do eu do lado normativo, da lei. Ele o define como a identificação que se produz no terceiro tempo do Édipo, através do que o ideal do eu poderia ser equivalente ao supereu materno. Na verdade, apresento um programa de trabalho para vocês, pois isso também vai variando em Lacan. Neste momento, ele coloca o supereu do lado do imperativo de gozo, aproximando-o da demanda do Outro, mais próximo ao que seria o supereu materno kleiniano, que é anterior ao Édipo.

Claro que há algumas linhas diretrizes para distinguir o ideal do eu e o supereu: o ideal do eu fica mais do lado do significante, enquanto o supereu está mais do lado do gozo. Mas isso também tem variações, porque no Seminário 11, Lacan vai associar claramente o ideal do eu à identificação primária, ao traço unário, ao S1, ou seja, ele está fora do tema do Édipo. Trata-se da identificação primordial ao pai, a um S1.

No desenrolar do seu ensino, Lacan dirá claramente, tanto em “Kant com Sade” como no Seminário 20, que o supereu é um empuxo ao gozo. Ao articulá-lo no Seminário 10 ao objeto a, voz – ele o faz a partir do shoffar, partindo de um texto de Theodor Reik –, diz que se trata do imperativo categórico: Goza! Isso leva a colocar o supereu mais do lado do objeto a, como empuxo ao gozo. Mais tarde, Lacan situa duas maneiras de apresentar o S1:

1)   Como S1-S2 (o S1 articulado à cadeia significante);

2)   Como S1 sozinho, fora-do-sentido, que tem a ver com .

Podemos perceber então que o supereu não só inclui o objeto a, mas também esse S1 insensato, essa pura metonímia de gozo que empurra a gozar.

Sem dúvida, trata-se na verdade de um programa de trabalho. Eu o disse desse modo, pois seria possível dedicar um ano de trabalho a este tema. O supereu é, aliás, um bom tema de trabalho. Infelizmente, não posso me deter hoje aqui por falta de tempo.

Apenas indico o tema, sem desenvolvê-lo, apenas para marcar o paradoxo apresentado por Freud. O paradoxo é: cada renúncia ao pulsional se torna agora uma fonte dinâmica da consciência moral. Cada nova renúncia aumenta a sua severidade e intolerância (1930 [1929], p. 158-171). Ou seja, quanto mais se renuncia ao gozo, mais severo se torna o supereu. A renúncia pulsional cria a consciência moral que, depois, exige cada vez mais renúncias. Este é o paradoxo: renuncia-se à pulsão para satisfazer à consciência moral, e a cada vez o supereu exige mais renúncias. O que pode ser considerado um paradoxo. Alguém poderia perguntar: ora, se o supereu proíbe gozar, como é possível que a cada vez que renuncio, tenho que renunciar mais?

O paradoxo se dissolve se consideramos, com Lacan, que o supereu não proíbe o gozo, como dizia Freud, mas sim que ele empurra ao gozo. Por isso, a única coisa que se faz é gozar, e cada vez mais. Que a renúncia pulsional não traga menos culpa, mais sim que, a cada vez, o sujeito precise renunciar mais, responde à lógica do imperativo superegóico Goza! Por isso Lacan chega a falar, em “Radiofonia” (Lacan, 2001, p. 403-448), da gula do supereu: um pouquinho mais... Isso mostra muito bem que, na concepção de Lacan, o supereu nada tem de função socializante, nem tampouco funciona como barreira aos desejos incestuosos, como pretendia o supereu paterno freudiano. Trata-se precisamente do contrário. O que funciona como limite ao gozo é o desejo, já que desejo e gozo são antinômicos. Em relação ao supereu, o que encontramos é um empuxo ao gozo. O conceito de gozo de Lacan inclui o conceito freudiano de libido, de satisfação e de pulsão de morte. Ou seja, a pulsão de morte faz parte do gozo, por isso o gozo nunca leva ao melhor. O gozo inclui a possibilidade da destruição do próprio sujeito, porque inclui a pulsão de morte. Mas há também uma satisfação no gozo; de alguma maneira, o princípio do prazer tenta limitar o gozo.

Isso leva Miller (2004-05), em seu Curso Pièces détachées, a propor esta outra maneira de escrever a metáfora paterna, desde uma perspectiva edípica:

Princípio do prazer
Gozo

Como dizíamos ontem1, a metáfora paterna implica o movimento de barrar o DM (desejo da mãe), ou seja, o gozo incluído em DM. Por isso, podemos dizer que o gozo, ao passar pelo Édipo, se inscreve como (- φ), como castração. Esta maneira de escrever: NP/DM tem a ver com a metáfora paterna, na qual o Nome-do-Pai impõe um limite ao Desejo da Mãe. Eu disse que esta era uma inscrição edípica.

Mas, para além do pai, no ponto em que não fazemos do pai o operador da lei que impõe um limite ao gozo, qual seria este operador? No Seminário 17, Lacan dá um salto, dizendo: a inclusão no Outro produz uma perda de gozo, ou seja, a inclusão do sujeito na linguagem produz por si mesma uma perda de gozo, que, por um efeito de uma entropia, se recupera sob as formas do objeto a. Então, no mais além do pai edípico, é a própria linguagem que produz o efeito de perda de gozo, gozo que é, em parte, recuperado através do objeto a.

Neste ponto, estamos no para além do Édipo, porque não estamos mais fazendo a castração girar em torno do pai. Ou seja, concluímos que o pai simbólico dá uma vestimenta edípica a um elemento de estrutura. É a própria introdução na linguagem que produz uma perda de gozo. O Édipo dá a esta estrutura uma vestimenta imaginária, dizendo que o pai é aquele que castra.

No Banquete dos analistas, Miller (1989/90, p. 295-312) vai examinar esses paradoxos do supereu através do Esquema do circuito superegóico:

 

Diz Miller: “O supereu atua sobre as pulsões, levando-as a renunciar às suas exigências de satisfação” (id.). O supereu atua sobre as pulsões para que renunciem ao objeto a, ao gozo suplementar.

O problema é que o supereu é um mandato de gozo que imediatamente se apropria desse gozo suplementar, não permitindo que se saia desse circuito. Vejam neste esquema: trata-se de um circuito fechado, sem saída. Ou seja, o supereu exige que as pulsões renunciem a este objeto suplementar de gozo, e, imediatamente, o supereu passa a se alimentar deste gozo, tornando-se assim mais poderoso. Cada renúncia produz, portanto, uma nova renúncia. A renúncia não satisfaz o supereu, não o pacifica. Pelo contrário, ele se torna cada vez mais guloso, pedindo cada vez mais renúncias. Não há nenhum obstáculo neste circuito fechado. O gozo, ao qual se renuncia, retorna sobre o supereu, exigindo mais renúncias.

Vocês conhecem o conceito de discurso proposto por Lacan. Todos se lembram dos quatro discursos propostos por Lacan no Seminário 17: O avesso da psicanálise - o discurso do mestre (que é também o discurso do inconsciente), o discurso histérico, o discurso da universidade e o discurso analítico.

Miller indica que o conceito de discurso tenta e consegue, de alguma forma, produzir um movimento oposto a esse movimento perpétuo do esquema do circuito do supereu. Podemos dizer, além disso, que o desejo do analista se opõe à vontade de gozo. Que o desejo do analista inclui o trabalho dos impasses da civilização, porque tais impasses têm a ver com essa gula do supereu, que impele ao consumo. O desejo do analista, como separador, tem um lugar privilegiado na contemporaneidade. A psicanálise tem um lugar privilegiado para atuar contra esse circuito fechado do supereu, tanto na direção do tratamento, como ao interpretar o mal-estar da civilização.

O que faz o discurso do mestre (que é também o discurso do inconsciente) para frear este movimento perpétuo da vontade de gozo, que atua no centro da nossa civilização?  

 

O discurso do inconsciente produz uma barreira que impede o acesso do sujeito ao objeto a, freando assim este circuito infernal.

Vejamos o que ocorre no discurso do capitalista, ao qual Lacan (1971/72) se refere apenas em duas ocasiões: na aula de maio de 1972 e em um artigo chamado “Sobre a experiência do passe” (03/11/1973).

Discurso do capitalista  

 

Vejamos as inversões deste discurso em relação ao discurso do mestre: no lugar do agente, que no discurso do mestre é ocupado pelo S1, temos, no discurso capitalista, o $, o sujeito do consumo. Portanto, no discurso capitalista há uma inversão dos elementos da primeira fração do discurso do mestre, enquanto a outra fração permanece a mesma. Mas há também uma mudança nas setas. No discurso do capitalista temos este circuito proposto por Miller, circuito que, no discurso do mestre, é freado, porque há esta barreira que separa o $ (sujeito) e o objeto a, objeto suplementar de gozo. No discurso capitalista, tal barreira dupla desaparece. Primeiro porque a verdade do sujeito do consumo ($) é o senhor que ordena que se trabalhe para produzir mais-valia, e esta mais-valia, que é o objeto a, impele a consumir. Neste discurso este circuito não tem nenhuma barreira. O discurso capitalista é um empuxo ao consumo, ao gozo. Os sujeitos se transformam em sujeitos de consumo; os objetos consumidos impelem a consumir cada vez mais.

Tentem não comprar nada, ao passar por um shopping olhando as vitrines! Desejem apenas olhar e não comprar nada, nem tomar um café, etc. Aliás, vocês não tomam água, mas coca-cola, vinho ou cerveja de tal marca – é o que se anuncia na TV. Todos nos oferecemos como consumidores, ou melhor, os objetos nos transformam em consumidores. Vejam uma criança pequena vendo TV. No intervalo do desenho, há propaganda de todas as novas Barbies, de todos os novos brinquedos, para que a criança diga: “Eu quero isso, e aquilo, e aquilo mais”. Eles querem tudo! Assim, os sujeitos se tornam consumidores, o discurso capitalista determinando quais são os objetos a consumir.

Ontem à noite, falando da reprodução assistida na Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, mostrei em certo momento que um filho pode se tornar também um objeto de consumo. Eu trazia o exemplo de uma mãe, que fazia a função de barriga de aluguel, que anunciava pela Internet a venda da criança. Não só a criança pode ser objeto de consumo, mas também nosso próprio corpo, por meio da venda de órgãos. Vocês já leram sobre crianças raptadas das quais se roubam órgãos. Isso é trágico! No tráfico de órgãos, os corpos são cortados, segmentados, divididos em seus órgãos, que entram no mercado de consumo. A psicanálise, ao interpretar os impasses crescentes em nossa civilização, tenta pôr um limite a este empuxo ao gozo, característico do discurso capitalista.

Em seu percurso na direção do para além do pai, Lacan começa a dizer, no Seminário 11, que o Édipo foi um sonho de Freud. Prestem atenção: quando Lacan fala do pai simbólico como pai morto, os exemplos que predominam são de pais mortos: por exemplo, o assassinato de Laio, pai de Édipo, o pai morto de Hamlet, etc. Mas, ao introduzir o além do pai, temos, sobretudo, a morte do filho. Lacan toma, não apenas o sacrifício de Isaac, por parte de Abraão, em Temor e tremor, mas no Seminário 11 examina um dos sonhos da Interpretação dos sonhos, que se tornou conhecido entre nós, desde então, como: Pai, não vês? (Freud, 1900). O sonho é o seguinte: um pai vela seu filho morto. Vai descansar um pouco e sonha que seu filho levanta e lhe sussurra esta reprovação: Pai, não vês que estou queimando?”. Temos uma análise deste sonho feita por Freud, e também a análise de Lacan, no Seminário 11.

Freud diz que se trata neste sonho, sobretudo, de um resto diurno. O pai está velando seu filho morto. Freud diz que o pai teria escutado esta frase do filho durante uma febre alta: “Não vês que estou queimando?” Por outro lado, qual é a origem do sonho? O pai estava velando o filho e, em certo momento, se retira para descansar um pouco. Ele havia pedido a um velho para velar seu filho e este, por descuido, não percebe que uma vela caiu sobre a mortalha, que começa a queimar. É o brilho produzido pelo fogo que faz com que o pai desperte. Freud diz: “Nesse sonho” – vocês sabem que Freud analisa os sonhos como realização de um desejo – cumpre-se o desejo do pai de ver seu filho de novo com vida”. Pensa que há aqui um paradoxo, porque, ao despertar, o pai volta a vê-lo partir novamente. “É como Eurídice morta duas vezes”, diz ele. Ou seja, o despertar abrevia a vida de seu filho pela segunda vez. É sensível que o filho não apenas aparece com vida novamente, mas diz algo particular ao pai: Pai, não vês? Freud é tocado por estas palavras, dizendo: “Estas palavras procedem de outra ocasião que não conhecemos, mas que foi rica em afetos” (Id.). Porque Freud diz isso ? - pergunta Lacan (1964). E responde: porque ele quer salvar o pai. O filho aponta a falta do pai, mas Freud parece não ver isso, dizendo: “Estas palavras procedem de uma ocasião que foi rica em afetos”, e nada mais.

É justamente este ponto – o Pai, não vês? – que é retomado por Lacan no Seminário 11, quando quer ir para além do pai. No capítulo chamado o “Inconsciente e a repetição”, Lacan diz: “Por que esse nome senão para evocar o mistério que é, nada menos, o do para além do mundo, e quem sabe que segredo é compartilhado entre o pai e essa criança que vem dizer-lhe: Pai, não vês que estou queimando?” (Lacan, 1964). Trata-se do segredo compartilhado sobre a falta do pai, tal como o segredo compartilhado por Isaac e a Abraão: Isaac viu que Abraão levantou a faca, mas jamais disse isso a ninguém. Um segredo compartilhado, porque justamente as crianças não falam disso. E os adultos, a menos que reivindiquem, esquecem isso. Ou seja, por amor ao pai, eles velam a sua falta. Continua Lacan: “O que o queima, senão aquilo que vemos se delinear em outros pontos designados pela topologia freudiana? O peso dos pecados do pai, que chega no espectro do mito de Hamlet, com o qual Freud duplicou o mito de Édipo. O Nome-do-Pai sustenta a estrutura do desejo junto com a da lei, mas a herança do pai nos é designada por Kierkegaard: o pai é seu pecado:” Trata-se aqui de uma referência a Temor e tremor. Lacan está indo então para além do amor ao pai.

“De onde surge o espectro do pai de Hamlet, senão de onde nos denuncia que ele foi surpreendido na flor dos seus pecados? E de modo algum dá a Hamlet a proibição da lei que possa fazer com que seu desejo subsista” (Freud, 1913 [1912]). Não se trata, portanto, da lei. Toda a questão gira em torno de um profundo questionamento desse pai demasiadamente ideal. Lacan introduz assim o questionamento do pai edípico, do pai por demais idealizado. Isso leva Lacan a dizer, em a “Direção do tratamento...”, que o tratamento deve visar pôr à distância o ideal e o objeto a. A direção da análise lacaniana, tal como apresentada no Seminário 11, tenta vir a produzir um efeito de separação entre o ideal e o objeto a.

Por isso, no Seminário 17, Lacan pode dizer que, para falar do pai, a histeria é na verdade um melhor guia do que o Édipo. Por que diz isso? Dora, por exemplo, se dirige a um pai idealizado, mas para denunciar que ele está castrado. Então, se a histérica se dirige por amor ao pai, a um pai idealizado, isso é seguido da denúncia da falta deste pai. Por isso, a histeria seria um melhor guia para falar do pai, no ponto preciso em que o pai idealizado está essencialmente castrado. Lacan pode então insistir que o complexo de Édipo é um sonho de Freud.

Isso lhe permite dar o passo seguinte: dizer que o pai, na realidade, é um pai real ou um operador lógico que sustenta a castração. Trata-se de um operador lógico, e não do pai do mito, do pai edípico que executa a castração. Trata-se do para além do pai, porque passamos do mito à estrutura.

Por isso, no Seminário 17 – no qual Lacan trabalha também Moisés, e isso seria por si só um outro tema de trabalho – Lacan põe em tensão o mito edípico e “Totem e tabu”. Esta tensão entre o mito edípico e “Totem e Tabu” é preliminar à teoria de Lacan sobre os gozos. Lacan realiza uma decomposição estrutural do pai, opera uma desconstrução do pai através dessa oposição.

 

Como marcar rapidamente esta tensão?

O Édipo, diz Lacan, está relatado a partir da perspectiva do filho. É o filho o que conta, o que conta são suas peripécias, suas tragédias. É ele que assassina o pai, que goza da mãe e também quem não sabia. Este “não sabia” mostra a verdade do saber inconsciente. O neurótico não sabe. O saber do inconsciente é um saber não sabido. Justamente a análise produz um progresso, no sentido de produzir uma elaboração de saber.

Ao contrário, em “Totem e tabu”, a apresentação é diferente.

Recordo: no Édipo tínhamos NP/DM, enquanto em seu comentário sobre “Totem e tabu” Lacan faz passar o gozo da mãe ao pai. O que se modifica é que, se no mito de Édipo, o filho goza da mãe, em “Totem e tabu” o gozo de desloca para o lado do pai. A diferença é que já não se trata de um pai ideal, mas ao contrário de um pai que goza. Já não é o pai simbólico ou um pai morto, mas sim um pai vivo que goza.

Em “Totem e tabu”, temos este orangotango, este pai que goza de todas as mulheres (não das mães). Sublinho este todas as mulheres, porque é a base da elaboração de Lacan sobre a sexuação feminina. No seminário seguinte – Seminário 18: D´un discours qui ne serait pas du semblant –, Lacan se pergunta: “É possível falar de todas as mulheres?”. Então esta oposição entre o Édipo e “Totem e tabu” é levada a cabo tanto no Seminário 17 como, em parte, no Seminário 23. E Lacan responde: “Não há este universal: todas as mulheres. A Mulher não existe” (1970/71). Vejam a sutileza. A partir do exame de “Totem e tabu”, Lacan pode concluir que não há um universal de todas as mulheres. Daí Miller (1989/90) dizer, em seu comentário do Seminário 23: O sinthoma, que é porque os filhos estavam igualmente privados das mulheres que eles amam o pai. Trata-se de uma substituição. É o amor ao pai que sustenta este pai que goza de todas as mulheres. Como se lembram, neste mito, os filhos, por estarem privados das mulheres, se revoltam e assassinam o pai, e isso redunda numa fraternidade dos irmãos, assassinos, que por uma obediência retroativa, se privam, por seu lado, do gozo. Como dizia, a renúncia só produz uma nova renúncia pulsional.

Do lado do Édipo, vimos que o filho, assim como a mãe, goza. Lacan chega a se perguntar: “Jocasta, a mãe, não sabia ou esqueceu?”. Ou seja, apesar disso não estar mencionado no mito de Édipo – ou seja, nele não é mencionado o gozo do pai – Lacan chega a evocar o gozo dos reis: eles gozam de governar, gozam entre si, etc. Ou seja, Lacan estabelece a correlação entre incesto e gozo.

Mas, em “Totem e tabu”, o pai morto já não é um pai simbólico; ele equivale ao gozo. O pai morto é o lugar no qual se inscreve o gozo de todas das mulheres. Ele leva consigo, para sempre, o gozo que falta, gozo que é impossível: é impossível gozar de todas as mulheres. O impossível é situado do lado do pai gozador, e é um elemento da estrutura.

Isto pode ser explicado muito simplesmente: é impossível que o pai gozador goze de todas as mulheres. Mais adiante, Lacan vai dizer que este universal não existe – e este impossível como estrutura se inscreve do lado deste pai, no lugar da exceção. Há, então, definitivamente, uma passagem ao para além do Édipo, porque no Édipo surge primeiro a lei que produz a proibição ao incesto e, a seguir, ocorre o assassinato. Ou seja, a lei precede o gozo. A lei dizia que era proibido gozar da mãe, mas Édipo infringe a lei e goza da mãe. A lei é o pai morto, porque Édipo, antes de encontrar-se com Jocasta, mata Laio. Então a lei e a eficácia do pai simbólico precedem o gozo. Este é o mito do duplo delito.

Édipo: Proibição ao incesto – assassinato.

Mas, ao contrário, em “Totem e tabu”, nesta passagem do mito à estrutura, o que vem antes é o gozo, e depois a lei. Primeiro surge este pai que goza de todas as mulheres e é seu assassinato que funda a lei que proíbe aos filhos de gozarem de todas as mulheres. Vejam que há entre os dois uma inversão: no mito de Édipo, é a lei que precede o gozo, enquanto na estrutura, o gozo precede a lei. Na estrutura, primeiro está este gozo autístico – o sujeito goza de seu corpo – gozo este que é, de certa forma, limitado pela inclusão do sujeito na linguagem.

Resumindo:  

Mito (Édipo):                       Lei – Gozo

Estrutura (“Totem e tabu”):  Gozo –Lei

Dizíamos que esse pai que goza de todas a mulheres está no lugar da exceção. Estou indo muito rápido porque não temos tempo; resumi quase uma década em Lacan.

Mas a partir do Seminário 17, e do exame do pai orangotando, desse pai da horda primitiva que goza de todas as mulheres, Lacan vai construindo as fórmulas da sexuação.

Disse que o pai que goza de todas as mulheres está no lugar da exceção:

Existe um x que não está submetido à castração: o pai da horda que goza de todas as mulheres.

Esta exceção funda o universal: todos os sujeitos estão submetidos à castração: todos os irmãos estão sujeitos à castração:

Vejam que já há uma mudança em relação ao pai: tínhamos o universal e o particular. A existência se fundava pelo particular, pela maneira particular com que um pai transmite o Nome-do-Pai. Ou seja, o Nome-do-Pai é uma função universal, mas é através do particular que um pai pode ou não transmitir o Nome-do-Pai.

Aqui encontramos a exceção: é na exceção singular que se funda o Nome-do-Pai  um a um. O pai nunca será um universal. A função fálica é que é universal, mas tal função precisa estar encarnada em um pai vivo, num pai que goza. Um que, para tornar-se pai, precisa, como Lacan diz, colocar uma mulher no lugar de objeto a, causa de seu desejo. Vimos isso na aula de ontem, quando falei da vertente do objeto a, como causa de desejo. Também podemos dizer isso assim: um pai que pode se confrontar com o gozo feminino, com o gozo do Outro. Já não se trata de um pai morto, mas sim de um pai vivo que inclui o gozo. É este pai real que funda o universal: todos os irmãos estão submetidos à castração.

Como pensar isso do lado das mulheres? Vocês sabem que o lado esquerdo das fórmulas se refere ao masculino, e o direito, ao feminino.

Podemos perguntar: existe um universal? Existem todas as mulheres? Não. Vocês sabem que, nas fórmulas da sexuação, o lado esquerdo corresponde ao masculino, e o direito, ao feminino. Deste lado feminino, parte-se de uma inexistência: não existe um sujeito que não esteja submetido à castração:

O fundante para as mulheres não é o universal nem a exceção, mas a inexistência de um sujeito que não haja passado pela castração. Isto inscreve que a mulher não está inteiramente inscrita na função fálica: ela é não-toda inscrita nesta função. Este não-toda não existe em Aristóteles; é uma invenção de Lacan. Ele propõe o par: todo/não-toda, colocando a negação neste matema, e diz que a mulher é não-toda inscrita na ordem fálica.

É o que dizíamos ontem: as mulheres fazem existir o amor ao pai desde uma posição de gozo (não-toda inscrita na função fálica). Nelas o amor está unido ao gozo. Em sua demanda de amor há um retorno desse excesso sob as formas de estrago existentes nas relações entre mulheres e homens.

Dizíamos que, no discurso capitalista, há um empuxo ao consumo. O objeto a, a mais valia, impele o sujeito a consumir. Este matema das fórmulas da sexuação - “não existe x que não esteja submetido à castração” - também ilustra, de certo modo, o que ocorre na contemporaneidade: não existe ninguém que não consuma, todos têm que gozar. Isso é um empuxo ao supereu. Fabien Schejtman (2006) escreve desse modo o empuxo superegóico ao gozo do discurso capitalista, em uma publicação da Associação Mundial de Psicanálise sobre o Nome-do-Pai. Também no Seminário de Jacques-Alain Miller e Éric Laurent, “O Outro que não existe e seus comitês de ética” (1996/97), existe um matema que ilustra bem o espírito da época. Ele diz que, com o declínio da função paterna, esse lugar de exceção do pai tende a desaparecer. Tende a desaparecer a exceção paterna, já que a figura do pai está desaparecendo. E qual a conseqüência? A tendência à feminização na civilização contemporânea. Porque tudo isso se sustenta a partir da exceção. Vejam o caso das mulheres: em parte, pelo lado fálico, as mulheres partem da exceção. O pai real como exceção também é fundante para as mulheres, e não apenas para os homens. Mas a mulher, na posição feminina, parte da inexistência.

No que concerne à civilização em geral, no ponto preciso do declínio da função paterna, Miller e Laurent indicam que o resultado do impasse contemporâneo é um empuxo à feminização.

Para concluir, quero resumir o nosso percurso:

1.   Começamos desenvolvendo o amor ao pai sob a figura de salvar o pai. Salvar o pai é fazê-lo existir – fazer existir esse pai ideal.

2.   Vimos que a teorização de Freud é solidária dessa idéia. O ponto central é: Freud salva o pai, salva o pai ideal. A teoria de Freud tem essa perspectiva, e é dessa perspectiva que ele dirige o tratamento.

3.   Tomamos exemplos clínicos para mostrar que esta perspectiva freudiana responde à clínica e também à paixão do neurótico. O neurótico salva o pai.

4.   Vimos, a seguir, que o segredo do pai é sua castração. A metáfora paterna formaliza o Édipo, mas, ao mesmo tempo em que aparece o Outro não barrado, há um tratamento na teoria lacaniana, desde o Nome-do-Pai que se inscreve no Outro há uma falta no Pai. Isso faz com que não haja apenas um Nome-do-Pai, mas é preciso ver em cada caso, o que em cada um funcionou como Nome-do-Pai, quais são as versões de pai que se constroem na clínica, para cada sujeito.

5.   Mas também vimos hoje que o preço pago pelo amor ao pai, para salvar ao pai, é a renúncia à pulsão. Vimos isso através do supereu. Ou seja, quanto mais se sustenta esse amor ao pai, mais aumenta a severidade do supereu. Eis o paradoxo: a outra face de salvar o pai é o supereu. Miller pode chegar a dizer que o pai freudiano é a vestimenta da entropia do gozo, mas que não é preciso um pai que proíba para que o gozo funcione. Porque, na verdade, há uma passagem ao mais além do Édipo, uma passagem da proibição ao impossível.

6.   Finalmente, concluímos que no mais além do Édipo, não partimos mais da oposição particular/universal, mas sim da necessidade de uma exceção singular que exemplifica a exceção, como assinala Éric Laurent, no artigo “Em modelo de exceção”.

 

Transcrição: Maria Elisa Delecave Monteiro.

 

Texto recebido em: 10/06/2006

Aprovado em: 25/09/2006

Nota

1. Silvia Tendlarz se refere à sua segunda conferência, publicada no terceiro número da Revista aSEPHallus. In: www.nucleosephora.com/asephallus/numero_03/artigo_02port_edicao03.htm 


Texto recebido em: 10/06/2006

Aprovado em: 25/09/2006

 

Referências bibliográficas

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KIERKGAARD, S. Temor y temblor. Buenos Aires: Ed. Agebe, 2004.

LACAN, J. (2005) Introduction aux Noms-du-père. In: Des Noms-du-père. Paris: Ed. Seuil, 2005. p. 65-105. (Obs.: Todas as citações serão remetidas à edição brasileira: Lacan, J. (2005) Introdução aos Nomes-do-Pai. In: Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 55-87).

___________. (1957/58) O seminário. Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.

___________. (1964) O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

___________.(1969/70) O seminário. Livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1991.

___________. (1970) Radiophonie. In: Autres Écrits. Paris: Ed. Seuil, 2001. p. 403-448.

__________. (1970/71) O seminário. Livro 18: d’un discours qui ne serait pas du semblant. Inédito.

___________.(1971/72) Le Seminaire. Livre XIX: ou pire. Aulas de maio de 1972 (inédito).

___________.(1971/72). O Seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

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SCHEJTMAN, F. (2006) Sexuação. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Associação Mundial de Psicanálise, jun / 2006, p. 160-161.