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Partirei
da virada operada por Lacan na direção do além do Édipo e da
pluralização dos Nome-do-Pai. Vimos, na aula de ontem, que no
final do Seminário 10: A angústia, Lacan faz uma
passagem do pai ao objeto a. E, ainda mais, ele leva a
cabo uma generalização da operação de castração sob a
modalidade da separação. No fim deste seminário, na medida em
que vai tematizando as formas do objeto a: oral, anal,
olhar e voz, já começa a trabalhar o tema da separação,
apontando a passagem da castração à separação. Mas, apenas
no seminário seguinte, o Seminário 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, ele formalizará as duas
operações lógicas de constituição do sujeito: a alienação
e a separação.
Além
disso, no Seminário 10, ao invés de se referir à
angústia de castração, ele fala da detumescência, para
situar que a alternância turgência(ereção)-detumescência
marca, no imaginário, a presença ou ausência da
negativização do falo.
No
final do Seminário 10, Lacan desemboca num
questionamento do pai, anunciando a seguir o tema do seminário
seguinte: os Nomes-do-Pai. Ou seja, ele questiona o pai e
propõe imediatamente a pluralização do Nome-do-Pai. Sabemos
que ele dá apenas uma única aula deste seminário. Uma
conjuntura particular política da psicanálise – ou seja, a
sua exclusão da lista dos didatas da IPA, que ele chamou de sua
excomunhão – faz com que Lacan não dê continuidade a esse
seminário. Ele chega a dizer mesmo que jamais voltaria a
retomá-lo. Vocês sabem o que ocorreu a seguir: em 1964, após
mudar o local em que dava seu seminário, Lacan inicia o Seminário
11.
Temos
então a seguinte trilogia:
1)
o final do Seminário 10;
2)
a única aula do Seminário: Os Nomes-do-Pai
3)
o Seminário 11, no qual irá se produzir uma mudança
por parte de Lacan em relação ao Édipo freudiano.
O
que Lacan diz nesta aula dos Nomes-do-Pai?
Penso
que essa aula foi publicada em português (Lacan,
2005). Nela encontramos dois quadros de Caravaggio sobre o
sacrifício de Isaac. Na primeira versão do sacrifício de Isaac,
aparece o rosto aterrorizado de Isaac diante da decisão de seu
pai, Abraão, de matá-lo. Na segunda, surge um anjo que vem
anunciar a Abraão a decisão de Deus de que ele não deve matar
seu filho.
Lacan
diz nesta aula: “Se Freud coloca o mito do pai no centro de
sua doutrina, é claro que é em razão da inevitabilidade desta
questão” (Id.,
p. 71). Ou seja, é inevitável falar do pai. “Não menos
claro é o fato de que, se toda a teoria e a práxis da
psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem
ousado ir mais longe, nessa questão, que Freud” (Id.,
p. 72). Lacan diz então que se trata de ir mais longe que
Freud, para além de sua idealização do pai através do
Édipo.
O
que Lacan promove aqui é um exame do desejo do pai. Trata-se do
pai que deseja, e não do Pai todo amor. É o que víamos antes:
o desejo do Outro implica o .
Ele examina a questão do desejo do Outro sob a modalidade do
desejo de Deus, deste Deus que exige que Abraão sacrifique seu
filho, Isaac, para lhe provar a sua fé.
Vocês
sabem que Sara não podia dar filhos a Abraão. O milagre se
produz quando Sara, já em idade avançada, consegue engravidar
e dar um filho a Abraão. Neste momento, Abraão, que já tinha
tido um filho com sua primeira esposa, que não era judia,
abandona esta primeira família no deserto para viver com Sara e
Isaac. Chega então o momento em que Deus decide pôr a fé de
Abraão à prova, ordenando-lhe que este lhe ofereça a vida de
seu filho predileto, Isaac, em holocausto. Abraão decide
fazê-lo, mas, no último momento, quando Abraão está preste a
matar Isaac, aparece um anjo enviado por Deus, anunciando que
Deus lhe pede para não consumar o sacrifício.
Kierkegaard
examina este episódio da Bíblia num livro chamado Temor e
tremor. O livro se inicia com um capítulo chamado
“Prelúdio e variações” (Kierkegaard,
2004, p. 21), no qual Kierkegaard apresenta quatro variações
do sacrifício de Isaac.
Lacan
faz referência a este trecho de Kierkegaard: “E Deus
pôs Abraão à prova e lhe disse: ‘Toma Isaac, teu único
filho, a quem amas, e leva-o à Terra de Moriah, e o ofereça a
mim em holocausto em um dos montes que te indicarei’”. Esta
é a frase e a partir dela se iniciam as variações. Lacan a
enuncia assim: “E Deus ordena: ‘sacrifica teu filho,
mate-o’, e em quatro variações, Abraão o executa”.
Primeira
variação do Sacrifício de Isaac
“Era
de madrugada, Abraão levantou-se e mandou preparar os burros.
Deixou sua casa com Isaac e, por uma janela, Sara os viu descer
o vale, até que os perdeu de vista”.
“Eles
caminharam, silenciosamente, no lombo de seus burros, durante
três dias. No amanhecer do quarto dia, Abraão, que não
dissera sequer uma palavra, levantou os olhos e viu ao longe o
Monte Moriah. Despediu seus criados e tomou, ele próprio, Isaac
pela mão e empreendeu a subida. Abraão se dizia: ‘Não posso
ocultar-me por mais tempo onde conduz este caminho’.
Deteve-se. Apoiou sua mão na cabeça de Isaac para
abençoá-lo, e o filho abaixou a cabeça para receber a
benção. A face de Abraão era a de um pai, doce era seu olhar
e sua voz persuasiva” (Kierkegaard,
2004, p. 22). Temos aqui a imagem de um pai ideal.
“Mas
Isaac não podia entendê-lo, sua alma era incapaz de elevar-se
tanto. Abraçou-se aos joelhos de Abraão, jogou-se a seus pés
e clamou por clemência. Implorou por sua juventude, por suas
doces esperanças”. As súplicas do filho evocavam
intensamente as alegrias da casa paterna e os sofrimentos da
solidão. Então, Abraão levantou-o, tomou-o pela mão e
continuou a caminhar. Suas palavras estavam cheias de consolo e
de exortação. Mas Isaac não podia compreendê-lo. Continuaram
subindo morro acima, mas Isaac não o compreendia. Então,
Abraão afastou-se por um momento do filho e, quando Isaac olhou
novamente sua face de pai, encontrou-a modificada, porque o
olhar do pai se tornara feroz e suas feições, aterradoras.
Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou:
‘Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai.
Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato
divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque
me inunda de prazer!”. Vejam a outra cara do pai ideal, a voz
do supereu: “Vou te matar porque gozo ao fazê-lo, por puro
gozo!”
“Então
Isaac estremeceu até a medula de seus ossos e exclamou
angustiado: ‘Deus do Céu, tende misericórdia de mim! Deus de
Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro
neste mundo!’. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor
onipotente, receba minha humilde ação de agradecimento, pois
é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do
que perca a fé em ti” (Kierkegaard,
2004, p. 22).
O
que temos nesta primeira variação? Por amor a Deus, ao Pai,
Abraão está disposto a matar seu filho, cumprindo a ordem dada
por Deus. Desta maneira, salva o Pai, fazendo-o existir através
do amor ao Pai, do amor a Deus. Mas este amor ao Pai tem o seu
avesso de mandado superegóico, o mandato desse Deus que deseja
que Abraão mate seu filho. Este é o ponto em que aparece o
desejo do Outro, ponto em que aparece o pecado do pai. Ele diz a
Isaac que o matará por ser um idólatra, justamente para salvar
o Pai, pois prefere que seu filho acredite que ele é um monstro
do que perca a fé em Deus. Não apenas está disposto a matar
seu filho, mas também a apresentar-se como um monstro diante
dele para salvar o amor ao Pai com esta vertente de mandato
superegóico. Com efeito, o que ele salva nesta versão é o
amor de seu filho ao Pai. Vejam o que Isaac diz: “Deus de
Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro
nesta terra!”.
Segunda
variação
Vou
ler apenas a parte final, que é a que varia:
“Abraão
viu o carneiro que Deus havia providenciado, abençoou-o e o
sacrificou, e regressou a sua casa. Desse dia em diante, Abraão
foi somente um velho. Nunca mais pode esquecer o que Deus havia
exigido dele. Isaac continuou crescendo como antes, mas os olhos
do pai haviam se nublado para sempre e jamais viram a
alegria”.
Nesta
segunda variação, Kierkegaard nos apresenta o pecado do pai: o
pecado de haver tentado matar seu filho retorna como sentimento
de culpa. “Ele se tornou um velho e jamais voltou a ter
alegria” como efeito do sentimento de culpa.
Terceira
variação
Vocês
perceberam que as variações sempre começam do mesmo modo,
para terminar dizendo outra coisa.
“Em
uma tarde agradável, Abraão subiu sozinho ao Monte Moriah.
Ali, ele jogou-se de bruços contra o solo e esfregou seu rosto
na terra, implorando a Deus que o abandonara em pecado por haver
querido sacrificar Isaac e, conseqüentemente, ter esquecido sua
verdade de pai para com o filho”.
“Muitas
vezes voltou depois Abraão a fazer o mesmo caminho solitário,
mas não achou o repouso que sua alma ia buscar. Não podia
entender que fora pecado haver querido sacrificar a Deus seu
melhor tesouro, o filho amado, pelo qual, com gosto, havia
oferecido sua própria vida, uma e mil vezes. Se era pecado, e
não amara Isaac, não podia entender como poderia ser perdoado.
Existe, por acaso, pecado mais horrível?”
Vocês
percebem que nesta terceira variação, Abraão não sente
apenas culpa, mas se sente mesmo um criminoso. Ele havia
praticado o crime de haver tentado matar seu filho, como Deus
lhe ordenava. Mas, quanto mais criminoso se sentia, mais culpa
sentia. Encontramos aqui o implacável retorno superegóico
produzido pela renúncia pulsional. Quanto mais Abraão se
martiriza, pior se sente e mais se sente culpado. Mais adiante
retomaremos esta questão da renúncia pulsional e do supereu.
Então,
nessa terceira variação, à culpa se acrescenta o imperdoável
do crime.
Quarta
variação
“Era
de madrugada [...]. Abraão fez todos os preparativos para o
sacrifício. Mas, quando se afastou um pouco para sacar a faca,
Isaac viu como se crispava de desespero a mão esquerda de seu
pai e como todo o seu corpo estremecia. Mas, Abraão sacou a
faca. Depois regressaram à sua casa, e Sara foi ao encontro
deles. Isaac, no entanto, havia perdido a fé. Jamais disse uma
só palavra disso nesse mundo, Isaac nunca disse nada a ninguém
sobre o que ele havia visto. E Abraão, por seu lado, jamais
sequer suspeitou que alguém o tivesse visto” (Kierkegaard,
2004, p. 25).
Vejam
que esta variação esclarece que Isaac sabia do pecado do pai.
A falta do pai, seu pecado, retorna sobre o filho, que nada diz
sobre isso. Se Isaac sabe que Abraão puxou a faca por amor ao
Pai, esta última seqüência mostra que não somente o
assassinato do pai primitivo foi em vão, mas também a
tentativa de sacrifício foi em vão, pois Isaac perdeu a fé em
Deus. Ele sabia do pecado de seu pai, sabia do significante da
falta do Outro e não sustenta o saber do Pai.
Vocês
me seguem até aqui?
Falamos
da renúncia pulsional, que alimenta o supereu: quanto mais
Abraão se sente culpado, mais ele pensa ter praticado um crime.
Como ele poderia ser perdoado? É justamente isso que Lacan
formula como os paradoxos do supereu freudiano.
Serei
muito breve, pois não temos tempo para desenvolver o tema do
supereu em Freud e em Lacan. Vocês se lembram que, em 1923,
Freud diz que, como resultado do complexo de Édipo,
constitui-se o ideal do eu e o supereu. Há ambigüidades porque
Freud diz uma coisa em um momento e, em outro, diz outra. Por um
lado, ele diferencia o ideal do eu e o supereu dizendo que o
ideal do eu é a identificação primeira ao pai. Trata-se de
uma identificação direta e imediata, mais precoce do que o
investimento de objeto. É uma identificação primária. Quanto
ao supereu, ele o define como um resto do Édipo. Freud diz
precisamente que o supereu é um resíduo das primeiras escolhas
de objeto. É uma enérgica formação reativa (Freud,
1923, p. 45-54). Vocês se dão conta que Freud diz, por um
lado, que na saída do Édipo aparece o Ideal e o supereu, como
se fossem equivalentes e, depois, diz o contrário: o ideal do
eu é anterior à escolha de objeto e o supereu é um resíduo,
um resto, do investimento nos objetos edípicos. Vocês vêem
que não é um tema muito claro em Freud. É Lacan que se ocupa
de distingui-los.
Lacan
os distingue no Seminário 5, quando coloca o ideal do eu
do lado normativo, da lei. Ele o define como a identificação
que se produz no terceiro tempo do Édipo, através do que o
ideal do eu poderia ser equivalente ao supereu materno. Na
verdade, apresento um programa de trabalho para vocês, pois
isso também vai variando em Lacan. Neste momento, ele coloca o
supereu do lado do imperativo de gozo, aproximando-o da demanda
do Outro, mais próximo ao que seria o supereu materno kleiniano,
que é anterior ao Édipo.
Claro
que há algumas linhas diretrizes para distinguir o ideal do eu
e o supereu: o ideal do eu fica mais do lado do significante,
enquanto o supereu está mais do lado do gozo. Mas isso também
tem variações, porque no Seminário 11, Lacan vai
associar claramente o ideal do eu à identificação primária,
ao traço unário, ao S1, ou seja, ele está fora do tema do
Édipo. Trata-se da identificação primordial ao pai, a um S1.
No
desenrolar do seu ensino, Lacan dirá claramente, tanto em
“Kant com Sade” como no Seminário 20, que o supereu
é um empuxo ao gozo. Ao articulá-lo no Seminário 10 ao
objeto a, voz – ele o faz a partir do shoffar,
partindo de um texto de Theodor Reik –, diz que se trata do
imperativo categórico: Goza! Isso leva a colocar o supereu mais
do lado do objeto a, como empuxo ao gozo. Mais tarde,
Lacan situa duas maneiras de apresentar o S1:
1)
Como S1-S2 (o S1 articulado à cadeia
significante);
2)
Como S1 sozinho, fora-do-sentido, que tem a ver com .
Podemos
perceber então que o supereu não só inclui o objeto a,
mas também esse S1 insensato, essa pura metonímia de gozo que
empurra a gozar.
Sem
dúvida, trata-se na verdade de um programa de trabalho. Eu o
disse desse modo, pois seria possível dedicar um ano de
trabalho a este tema. O supereu é, aliás, um bom tema de
trabalho. Infelizmente, não posso me deter hoje aqui por falta
de tempo.
Apenas
indico o tema, sem desenvolvê-lo, apenas para marcar o paradoxo
apresentado por Freud. O paradoxo é: cada renúncia ao
pulsional se torna agora uma fonte dinâmica da consciência
moral. Cada nova renúncia aumenta a sua severidade e
intolerância (1930 [1929], p. 158-171). Ou seja, quanto mais se
renuncia ao gozo, mais severo se torna o supereu. A renúncia
pulsional cria a consciência moral que, depois, exige cada vez
mais renúncias. Este é o paradoxo: renuncia-se à pulsão para
satisfazer à consciência moral, e a cada vez o supereu exige
mais renúncias. O que pode ser considerado um paradoxo. Alguém
poderia perguntar: ora, se o supereu proíbe gozar, como é
possível que a cada vez que renuncio, tenho que renunciar mais?
O
paradoxo se dissolve se consideramos, com Lacan, que o supereu
não proíbe o gozo, como dizia Freud, mas sim que ele empurra
ao gozo. Por isso, a única coisa que se faz é gozar, e cada
vez mais. Que a renúncia pulsional não traga menos culpa, mais
sim que, a cada vez, o sujeito precise renunciar mais, responde
à lógica do imperativo superegóico Goza! Por isso Lacan chega
a falar, em “Radiofonia” (Lacan,
2001, p. 403-448), da gula do supereu: um pouquinho mais... Isso
mostra muito bem que, na concepção de Lacan, o supereu nada
tem de função socializante, nem tampouco funciona como
barreira aos desejos incestuosos, como pretendia o supereu
paterno freudiano. Trata-se precisamente do contrário. O que
funciona como limite ao gozo é o desejo, já que desejo e gozo
são antinômicos. Em relação ao supereu, o que encontramos é
um empuxo ao gozo. O conceito de gozo de Lacan inclui o conceito
freudiano de libido, de satisfação e de pulsão de morte. Ou
seja, a pulsão de morte faz parte do gozo, por isso o gozo
nunca leva ao melhor. O gozo inclui a possibilidade da
destruição do próprio sujeito, porque inclui a pulsão de
morte. Mas há também uma satisfação no gozo; de alguma
maneira, o princípio do prazer tenta limitar o gozo.
Isso
leva Miller (2004-05), em seu Curso Pièces détachées, a
propor esta outra maneira de escrever a metáfora paterna,
desde uma perspectiva edípica:
Princípio
do prazer
Gozo
Como
dizíamos ontem1, a metáfora paterna implica o
movimento de barrar o DM (desejo da mãe), ou seja, o gozo
incluído em DM. Por isso, podemos dizer que o gozo, ao passar
pelo Édipo, se inscreve como (- φ), como castração. Esta
maneira de escrever: NP/DM tem a ver com a metáfora paterna, na
qual o Nome-do-Pai impõe um limite ao Desejo da Mãe. Eu disse
que esta era uma inscrição edípica.
Mas,
para além do pai, no ponto em que não fazemos do pai o
operador da lei que impõe um limite ao gozo, qual seria este
operador? No Seminário 17, Lacan dá um salto, dizendo:
a inclusão no Outro produz uma perda de gozo, ou seja, a
inclusão do sujeito na linguagem produz por si mesma uma perda
de gozo, que, por um efeito de uma entropia, se recupera sob as
formas do objeto a. Então, no mais além do pai
edípico, é a própria linguagem que produz o efeito de perda
de gozo, gozo que é, em parte, recuperado através do objeto a.
Neste
ponto, estamos no para além do Édipo, porque não estamos mais
fazendo a castração girar em torno do pai. Ou seja,
concluímos que o pai simbólico dá uma vestimenta edípica a
um elemento de estrutura. É a própria introdução na
linguagem que produz uma perda de gozo. O Édipo dá a esta
estrutura uma vestimenta imaginária, dizendo que o pai é
aquele que castra.
No
Banquete dos analistas, Miller (1989/90, p. 295-312) vai
examinar esses paradoxos do supereu através do Esquema do
circuito superegóico:
Diz
Miller: “O supereu atua sobre as pulsões, levando-as a
renunciar às suas exigências de satisfação” (id.).
O supereu atua sobre as pulsões para que renunciem ao objeto a,
ao gozo suplementar.
O
problema é que o supereu é um mandato de gozo que
imediatamente se apropria desse gozo suplementar, não
permitindo que se saia desse circuito. Vejam neste esquema:
trata-se de um circuito fechado, sem saída. Ou seja, o supereu
exige que as pulsões renunciem a este objeto suplementar de
gozo, e, imediatamente, o supereu passa a se alimentar deste
gozo, tornando-se assim mais poderoso. Cada renúncia produz,
portanto, uma nova renúncia. A renúncia não satisfaz o
supereu, não o pacifica. Pelo contrário, ele se torna cada vez
mais guloso, pedindo cada vez mais renúncias. Não há nenhum
obstáculo neste circuito fechado. O gozo, ao qual se renuncia,
retorna sobre o supereu, exigindo mais renúncias.
Vocês
conhecem o conceito de discurso proposto por Lacan. Todos se
lembram dos quatro discursos propostos por Lacan no Seminário
17: O avesso da psicanálise - o discurso do mestre (que é
também o discurso do inconsciente), o discurso histérico, o
discurso da universidade e o discurso analítico.
Miller
indica que o conceito de discurso tenta e consegue, de alguma
forma, produzir um movimento oposto a esse movimento perpétuo
do esquema do circuito do supereu. Podemos dizer, além disso,
que o desejo do analista se opõe à vontade de gozo. Que o
desejo do analista inclui o trabalho dos impasses da
civilização, porque tais impasses têm a ver com essa gula do
supereu, que impele ao consumo. O desejo do analista, como
separador, tem um lugar privilegiado na contemporaneidade. A
psicanálise tem um lugar privilegiado para atuar contra esse
circuito fechado do supereu, tanto na direção do tratamento,
como ao interpretar o mal-estar da civilização.
O
que faz o discurso do mestre (que é também o discurso do
inconsciente) para frear este movimento perpétuo da vontade de
gozo, que atua no centro da nossa civilização?
O
discurso do inconsciente produz uma barreira que impede o acesso
do sujeito ao objeto a, freando assim este circuito
infernal.
Vejamos
o que ocorre no discurso do capitalista, ao qual Lacan (1971/72)
se refere apenas em duas ocasiões: na aula de maio de 1972 e em
um artigo chamado “Sobre a experiência do passe”
(03/11/1973).
Discurso
do capitalista
Vejamos
as inversões deste discurso em relação ao discurso do mestre:
no lugar do agente, que no discurso do mestre é ocupado pelo
S1, temos, no discurso capitalista, o $, o sujeito do consumo.
Portanto, no discurso capitalista há uma inversão dos
elementos da primeira fração do discurso do mestre, enquanto a
outra fração permanece a mesma. Mas há também uma mudança
nas setas. No discurso do capitalista temos este circuito
proposto por Miller, circuito que, no discurso do mestre, é
freado, porque há esta barreira que separa o $ (sujeito) e o
objeto a, objeto suplementar de gozo. No discurso
capitalista, tal barreira dupla desaparece. Primeiro porque a
verdade do sujeito do consumo ($) é o senhor que ordena que se
trabalhe para produzir mais-valia, e esta mais-valia, que é o
objeto a, impele a consumir. Neste discurso este circuito
não tem nenhuma barreira. O discurso capitalista é um empuxo
ao consumo, ao gozo. Os sujeitos se transformam em sujeitos de
consumo; os objetos consumidos impelem a consumir cada vez mais.
Tentem
não comprar nada, ao passar por um shopping olhando as
vitrines! Desejem apenas olhar e não comprar nada, nem tomar um
café, etc. Aliás, vocês não tomam água, mas coca-cola,
vinho ou cerveja de tal marca – é o que se anuncia na TV.
Todos nos oferecemos como consumidores, ou melhor, os objetos
nos transformam em consumidores. Vejam uma criança pequena
vendo TV. No intervalo do desenho, há propaganda de todas as
novas Barbies, de todos os novos brinquedos, para que a criança
diga: “Eu quero isso, e aquilo, e aquilo mais”. Eles querem
tudo! Assim, os sujeitos se tornam consumidores, o discurso
capitalista determinando quais são os objetos a consumir.
Ontem
à noite, falando da reprodução assistida na Escola Brasileira
de Psicanálise do Rio de Janeiro, mostrei em certo momento que
um filho pode se tornar também um objeto de consumo. Eu trazia
o exemplo de uma mãe, que fazia a função de barriga de
aluguel, que anunciava pela Internet a venda da criança. Não
só a criança pode ser objeto de consumo, mas também nosso
próprio corpo, por meio da venda de órgãos. Vocês já leram
sobre crianças raptadas das quais se roubam órgãos. Isso é
trágico! No tráfico de órgãos, os corpos são cortados,
segmentados, divididos em seus órgãos, que entram no mercado
de consumo. A psicanálise, ao interpretar os impasses
crescentes em nossa civilização, tenta pôr um limite a este
empuxo ao gozo, característico do discurso capitalista.
Em
seu percurso na direção do para além do pai, Lacan começa a
dizer, no Seminário 11, que o Édipo foi um sonho de
Freud. Prestem atenção: quando Lacan fala do pai simbólico
como pai morto, os exemplos que predominam são de pais mortos:
por exemplo, o assassinato de Laio, pai de Édipo, o pai morto
de Hamlet, etc. Mas, ao introduzir o além do pai, temos,
sobretudo, a morte do filho. Lacan toma, não apenas o
sacrifício de Isaac, por parte de Abraão, em Temor e tremor,
mas no Seminário 11 examina um dos sonhos da Interpretação
dos sonhos, que se tornou conhecido entre nós, desde
então, como: Pai, não vês? (Freud, 1900). O sonho é o seguinte: um pai vela seu filho
morto. Vai descansar um pouco e sonha que seu filho levanta e
lhe sussurra esta reprovação: “Pai, não vês que
estou queimando?”. Temos uma análise deste sonho feita
por Freud, e também a análise de Lacan, no Seminário 11.
Freud
diz que se trata neste sonho, sobretudo, de um resto diurno. O
pai está velando seu filho morto. Freud diz que o pai teria
escutado esta frase do filho durante uma febre alta: “Não
vês que estou queimando?” Por outro lado, qual é a origem do
sonho? O pai estava velando o filho e, em certo momento, se
retira para descansar um pouco. Ele havia pedido a um velho para
velar seu filho e este, por descuido, não percebe que uma vela
caiu sobre a mortalha, que começa a queimar. É o brilho
produzido pelo fogo que faz com que o pai desperte. Freud diz:
“Nesse sonho” – vocês sabem que Freud analisa os sonhos
como realização de um desejo – cumpre-se o desejo do pai de
ver seu filho de novo com vida”. Pensa que há aqui um
paradoxo, porque, ao despertar, o pai volta a vê-lo partir
novamente. “É como Eurídice morta duas vezes”, diz ele. Ou
seja, o despertar abrevia a vida de seu filho pela segunda vez.
É sensível que o filho não apenas aparece com vida novamente,
mas diz algo particular ao pai: Pai, não vês? Freud é tocado
por estas palavras, dizendo: “Estas palavras procedem de outra
ocasião que não conhecemos, mas que foi rica em afetos” (Id.).
Porque Freud diz isso ? - pergunta Lacan (1964). E responde:
porque ele quer salvar o pai. O filho aponta a falta do pai, mas
Freud parece não ver isso, dizendo: “Estas palavras procedem
de uma ocasião que foi rica em afetos”, e nada mais.
É
justamente este ponto – o Pai, não vês? – que é retomado
por Lacan no Seminário 11, quando quer ir para além do
pai. No capítulo chamado o “Inconsciente e a repetição”,
Lacan diz: “Por que esse nome senão para evocar o mistério
que é, nada menos, o do para além do mundo, e quem sabe que
segredo é compartilhado entre o pai e essa criança que vem
dizer-lhe: Pai, não vês que estou queimando?” (Lacan,
1964). Trata-se do segredo compartilhado sobre a falta do pai,
tal como o segredo compartilhado por Isaac e a Abraão: Isaac
viu que Abraão levantou a faca, mas jamais disse isso a
ninguém. Um segredo compartilhado, porque justamente as
crianças não falam disso. E os adultos, a menos que
reivindiquem, esquecem isso. Ou seja, por amor ao pai, eles
velam a sua falta. Continua Lacan: “O que o queima, senão
aquilo que vemos se delinear em outros pontos designados pela
topologia freudiana? O peso dos pecados do pai, que chega no
espectro do mito de Hamlet, com o qual Freud duplicou o mito de
Édipo. O Nome-do-Pai sustenta a estrutura do desejo junto com a
da lei, mas a herança do pai nos é designada por Kierkegaard:
o pai é seu pecado:” Trata-se aqui de uma referência a Temor
e tremor. Lacan está indo então para além do amor ao pai.
“De
onde surge o espectro do pai de Hamlet, senão de onde nos
denuncia que ele foi surpreendido na flor dos seus pecados? E de
modo algum dá a Hamlet a proibição da lei que possa fazer com
que seu desejo subsista” (Freud,
1913 [1912]). Não se trata, portanto, da lei. Toda a questão
gira em torno de um profundo questionamento desse pai
demasiadamente ideal. Lacan introduz assim o questionamento do
pai edípico, do pai por demais idealizado. Isso leva Lacan a
dizer, em a “Direção do tratamento...”, que o tratamento
deve visar pôr à distância o ideal e o objeto a. A
direção da análise lacaniana, tal como apresentada no Seminário
11, tenta vir a produzir um efeito de separação entre o
ideal e o objeto a.
Por
isso, no Seminário 17, Lacan pode dizer que, para falar
do pai, a histeria é na verdade um melhor guia do que o Édipo.
Por que diz isso? Dora, por exemplo, se dirige a um pai
idealizado, mas para denunciar que ele está castrado. Então,
se a histérica se dirige por amor ao pai, a um pai idealizado,
isso é seguido da denúncia da falta deste pai. Por isso, a
histeria seria um melhor guia para falar do pai, no ponto
preciso em que o pai idealizado está essencialmente castrado.
Lacan pode então insistir que o complexo de Édipo é um sonho
de Freud.
Isso
lhe permite dar o passo seguinte: dizer que o pai, na realidade,
é um pai real ou um operador lógico que sustenta a
castração. Trata-se de um operador lógico, e não do pai do
mito, do pai edípico que executa a castração. Trata-se do
para além do pai, porque passamos do mito à estrutura.
Por
isso, no Seminário 17 – no qual Lacan trabalha também
Moisés, e isso seria por si só um outro tema de trabalho –
Lacan põe em tensão o mito edípico e “Totem e tabu”. Esta
tensão entre o mito edípico e “Totem e Tabu” é preliminar
à teoria de Lacan sobre os gozos. Lacan realiza uma
decomposição estrutural do pai, opera uma desconstrução do
pai através dessa oposição.
Como
marcar rapidamente esta tensão?
O
Édipo, diz Lacan, está relatado a partir da perspectiva do
filho. É o filho o que conta, o que conta são suas
peripécias, suas tragédias. É ele que assassina o pai, que
goza da mãe e também quem não sabia. Este “não sabia”
mostra a verdade do saber inconsciente. O neurótico não sabe.
O saber do inconsciente é um saber não sabido. Justamente a
análise produz um progresso, no sentido de produzir uma
elaboração de saber.
Ao
contrário, em “Totem e tabu”, a apresentação é
diferente.
Recordo:
no Édipo tínhamos NP/DM, enquanto em seu comentário sobre
“Totem e tabu” Lacan faz passar o gozo da mãe ao pai. O que
se modifica é que, se no mito de Édipo, o filho goza da mãe,
em “Totem e tabu” o gozo de desloca para o lado do pai. A
diferença é que já não se trata de um pai ideal, mas ao
contrário de um pai que goza. Já não é o pai simbólico ou
um pai morto, mas sim um pai vivo que goza.
Em
“Totem e tabu”, temos este orangotango, este pai que goza de
todas as mulheres (não das mães). Sublinho este todas as
mulheres, porque é a base da elaboração de Lacan sobre a
sexuação feminina. No seminário seguinte – Seminário
18: D´un discours qui ne serait pas du semblant –, Lacan
se pergunta: “É possível falar de todas as mulheres?”.
Então esta oposição entre o Édipo e “Totem e tabu” é
levada a cabo tanto no Seminário 17 como, em parte, no Seminário
23. E Lacan responde: “Não há este universal: todas as
mulheres. A Mulher não existe” (1970/71). Vejam a sutileza. A
partir do exame de “Totem e tabu”, Lacan pode concluir que
não há um universal de todas as mulheres. Daí Miller
(1989/90) dizer, em seu comentário do Seminário 23: O
sinthoma, que é porque os filhos estavam igualmente
privados das mulheres que eles amam o pai. Trata-se de uma
substituição. É o amor ao pai que sustenta este pai que goza
de todas as mulheres. Como se lembram, neste mito, os filhos,
por estarem privados das mulheres, se revoltam e assassinam o
pai, e isso redunda numa fraternidade dos irmãos, assassinos,
que por uma obediência retroativa, se privam, por seu lado, do
gozo. Como dizia, a renúncia só produz uma nova renúncia
pulsional.
Do
lado do Édipo, vimos que o filho, assim como a mãe, goza.
Lacan chega a se perguntar: “Jocasta, a mãe, não sabia ou
esqueceu?”. Ou seja, apesar disso não estar mencionado no
mito de Édipo – ou seja, nele não é mencionado o gozo do
pai – Lacan chega a evocar o gozo dos reis: eles gozam de
governar, gozam entre si, etc. Ou seja, Lacan estabelece a
correlação entre incesto e gozo.
Mas,
em “Totem e tabu”, o pai morto já não é um pai
simbólico; ele equivale ao gozo. O pai morto é o lugar no qual
se inscreve o gozo de todas das mulheres. Ele leva consigo, para
sempre, o gozo que falta, gozo que é impossível: é
impossível gozar de todas as mulheres. O impossível é situado
do lado do pai gozador, e é um elemento da estrutura.
Isto
pode ser explicado muito simplesmente: é impossível que o pai
gozador goze de todas as mulheres. Mais adiante, Lacan vai dizer
que este universal não existe – e este impossível como
estrutura se inscreve do lado deste pai, no lugar da exceção.
Há, então, definitivamente, uma passagem ao para além do
Édipo, porque no Édipo surge primeiro a lei que produz a
proibição ao incesto e, a seguir, ocorre o assassinato. Ou
seja, a lei precede o gozo. A lei dizia que era proibido gozar
da mãe, mas Édipo infringe a lei e goza da mãe. A lei é o
pai morto, porque Édipo, antes de encontrar-se com Jocasta,
mata Laio. Então a lei e a eficácia do pai simbólico precedem
o gozo. Este é o mito do duplo delito.
Édipo:
Proibição ao incesto – assassinato.
Mas,
ao contrário, em “Totem e tabu”, nesta passagem do mito à
estrutura, o que vem antes é o gozo, e depois a lei. Primeiro
surge este pai que goza de todas as mulheres e é seu
assassinato que funda a lei que proíbe aos filhos de gozarem de
todas as mulheres. Vejam que há entre os dois uma inversão: no
mito de Édipo, é a lei que precede o gozo, enquanto na
estrutura, o gozo precede a lei. Na estrutura, primeiro está
este gozo autístico – o sujeito goza de seu corpo – gozo
este que é, de certa forma, limitado pela inclusão do sujeito
na linguagem.
Resumindo:
Mito
(Édipo):
Lei – Gozo
Estrutura
(“Totem e tabu”): Gozo –Lei
Dizíamos
que esse pai que goza de todas a mulheres está no lugar da
exceção. Estou indo muito rápido porque não temos tempo;
resumi quase uma década em Lacan.
Mas
a partir do Seminário 17, e do exame do pai orangotando,
desse pai da horda primitiva que goza de todas as mulheres,
Lacan vai construindo as fórmulas da sexuação.
Disse
que o pai que goza de todas as mulheres está no lugar da
exceção:
Existe
um x que não está submetido à castração: o pai da horda que
goza de todas as mulheres.
Esta
exceção funda o universal: todos os sujeitos estão submetidos
à castração: todos os irmãos estão sujeitos à castração:
Vejam
que já há uma mudança em relação ao pai: tínhamos o
universal e o particular. A existência se fundava pelo
particular, pela maneira particular com que um pai transmite o
Nome-do-Pai. Ou seja, o Nome-do-Pai é uma função universal,
mas é através do particular que um pai pode ou não transmitir
o Nome-do-Pai.
Aqui
encontramos a exceção: é na exceção singular que se funda o
Nome-do-Pai um a
um. O pai nunca será um universal. A função fálica é que é
universal, mas tal função precisa estar encarnada em um pai
vivo, num pai que goza. Um que, para tornar-se pai, precisa,
como Lacan diz, colocar uma mulher no lugar de objeto a,
causa de seu desejo. Vimos isso na aula de ontem, quando falei
da vertente do objeto a, como causa de desejo. Também
podemos dizer isso assim: um pai que pode se confrontar com o
gozo feminino, com o gozo do Outro. Já não se trata de um pai
morto, mas sim de um pai vivo que inclui o gozo. É este pai
real que funda o universal: todos os irmãos estão submetidos
à castração.
Como
pensar isso do lado das mulheres? Vocês sabem que o lado
esquerdo das fórmulas se refere ao masculino, e o direito, ao
feminino.
Podemos
perguntar: existe um universal? Existem todas as mulheres? Não.
Vocês sabem que, nas fórmulas da sexuação, o lado esquerdo
corresponde ao masculino, e o direito, ao feminino. Deste lado
feminino, parte-se de uma inexistência: não existe um sujeito
que não esteja submetido à castração:
O
fundante para as mulheres não é o universal nem a exceção,
mas a inexistência de um sujeito que não haja passado pela
castração. Isto inscreve que a mulher não está inteiramente
inscrita na função fálica: ela é não-toda inscrita nesta
função. Este não-toda não existe em Aristóteles; é uma
invenção de Lacan. Ele propõe o par: todo/não-toda,
colocando a negação neste matema, e diz que a mulher é
não-toda inscrita na ordem fálica.
É
o que dizíamos ontem: as mulheres fazem existir o amor ao pai
desde uma posição de gozo (não-toda inscrita na função
fálica). Nelas o amor está unido ao gozo. Em sua demanda de
amor há um retorno desse excesso sob as formas de estrago
existentes nas relações entre mulheres e homens.
Dizíamos
que, no discurso capitalista, há um empuxo ao consumo. O objeto
a, a mais valia, impele o sujeito a consumir. Este matema
das fórmulas da sexuação - “não existe x que não esteja
submetido à castração” - também ilustra, de certo modo, o
que ocorre na contemporaneidade: não existe ninguém que não
consuma, todos têm que gozar. Isso é um empuxo ao supereu.
Fabien Schejtman (2006) escreve desse modo o empuxo superegóico
ao gozo do discurso capitalista, em uma publicação da
Associação Mundial de Psicanálise sobre o Nome-do-Pai.
Também no Seminário de Jacques-Alain Miller e Éric Laurent,
“O Outro que não existe e seus comitês de ética”
(1996/97), existe um matema que ilustra bem o espírito da
época. Ele diz que, com o declínio da função paterna, esse
lugar de exceção do pai tende a desaparecer. Tende a
desaparecer a exceção paterna, já que a figura do pai está
desaparecendo. E qual a conseqüência? A tendência à
feminização na civilização contemporânea. Porque tudo isso
se sustenta a partir da exceção. Vejam o caso das mulheres: em
parte, pelo lado fálico, as mulheres partem da exceção. O pai
real como exceção também é fundante para as mulheres, e não
apenas para os homens. Mas a mulher, na posição feminina,
parte da inexistência.
No
que concerne à civilização em geral, no ponto preciso do
declínio da função paterna, Miller e Laurent indicam que o
resultado do impasse contemporâneo é um empuxo à
feminização.
Para
concluir, quero resumir o nosso percurso:
1. Começamos desenvolvendo o amor ao pai sob a figura de
salvar o pai. Salvar o pai é fazê-lo existir – fazer existir
esse pai ideal.
2. Vimos que a teorização de Freud é solidária dessa
idéia. O ponto central é: Freud salva o pai, salva o pai
ideal. A teoria de Freud tem essa perspectiva, e é dessa
perspectiva que ele dirige o tratamento.
3. Tomamos exemplos clínicos para mostrar que esta
perspectiva freudiana responde à clínica e também à paixão
do neurótico. O neurótico salva o pai.
4. Vimos, a seguir, que o segredo do pai é sua castração.
A metáfora paterna formaliza o Édipo, mas, ao mesmo tempo em
que aparece o Outro não barrado, há um tratamento na teoria
lacaniana, desde o Nome-do-Pai que se inscreve no Outro há uma
falta no Pai. Isso faz com que não haja apenas um Nome-do-Pai,
mas é preciso ver em cada caso, o que em cada um funcionou como
Nome-do-Pai, quais são as versões de pai que se constroem na
clínica, para cada sujeito.
5. Mas também vimos hoje que o preço pago pelo amor ao
pai, para salvar ao pai, é a renúncia à pulsão. Vimos isso
através do supereu. Ou seja, quanto mais se sustenta esse amor
ao pai, mais aumenta a severidade do supereu. Eis o paradoxo: a
outra face de salvar o pai é o supereu. Miller pode chegar a
dizer que o pai freudiano é a vestimenta da entropia do gozo,
mas que não é preciso um pai que proíba para que o gozo
funcione. Porque, na verdade, há uma passagem ao mais além do
Édipo, uma passagem da proibição ao impossível.
6. Finalmente, concluímos que no mais além do Édipo, não
partimos mais da oposição particular/universal, mas sim da
necessidade de uma exceção singular que exemplifica a
exceção, como assinala Éric Laurent, no artigo “Em modelo
de exceção”.
Transcrição:
Maria Elisa Delecave Monteiro.
Texto
recebido em: 10/06/2006
Aprovado em: 25/09/2006
Nota
1.
Silvia Tendlarz se refere à sua segunda conferência, publicada
no terceiro número da Revista aSEPHallus. In: www.nucleosephora.com/asephallus/numero_03/artigo_02port_edicao03.htm
Texto
recebido em: 10/06/2006
Aprovado em: 25/09/2006
Referências
bibliográficas
FREUD,
S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
_______.(1900)
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_______.(1913
[1912]) Totem e tabu. Vol. XIII.
_______.(1923)
O Ego e o Id. Vol. XIX.
_______.(1930
[1929]) Mal-estar na civilização. Vol. XXI.
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J. (2005) Introduction aux Noms-du-père. In: Des
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(Obs.: Todas as citações serão remetidas à edição
brasileira: Lacan, J. (2005) Introdução aos Nomes-do-Pai. In: Nomes-do-Pai.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 55-87).
___________.
(1957/58) O seminário. Livro 5: as formações do
inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
___________.
(1964) O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
___________.(1969/70)
O seminário. Livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1991.
___________.
(1970) Radiophonie. In: Autres Écrits. Paris: Ed. Seuil,
2001. p. 403-448.
__________.
(1970/71) O seminário. Livro 18: d’un discours qui ne
serait pas du semblant. Inédito.
___________.(1971/72)
Le Seminaire. Livre XIX: ou pire. Aulas de maio de
1972 (inédito).
___________.(1971/72).
O Seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2007.
LAURENT,
E.; MILLER, J.-A. (1996/97) El Outro que no existe y sus
comités de Ética. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2005.
MILLER,
J.-A. (1989/90) O Banquete dos analistas. Buenos Aires:
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SCHEJTMAN,
F. (2006) Sexuação. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. Rio
de Janeiro: Associação Mundial de Psicanálise, jun / 2006, p.
160-161.
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