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 O AVESSO DAS FAMÍLIAS: O ROMANCE FAMILIAR PARENTAL

 

 

Serge Cottet
Doutorado de Estado pelo Département de Psychanalyse/Paris VIII
Professor e orientador do 3éme. Cycle do Département de Psychanalyse/Paris VIII
Responsável pela Seção Clínica do Hospital de Gennevilliers
Analista Mestre da Escola na École de La Cause Freudienne

scottet@freesurf.com.fr

 

Resumo

Podemos chamar de romance familiar parental, o conjunto de ficções que sustentam as recomposições e os disfuncionamentos familiares de hoje, em favor do tipo de parentalidade escolhida. Estas ficções se esforçam para dissolver todos os semblantes que, até agora, mantinham na hipocrisia o essencial da vida em família. A cultura da permissividade, bem como a crise da autoridade que acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as barreiras das gerações. Nessa grande devastação, a incidência da psicanálise, deve ser levada em conta, principalmente no imperativo que obriga a dizer tudo às crianças: uma transparência propícia à construção da imagem de si.

Palavras- chave: romance familiar, declínio do pai, conjugalidade, parentalidade, filiações.

 

   
 

 

THE REVERSE OF THE FAMILYS: PARENT'S FAMILIAR ROMANCE

Abstract

We may call it parental family romance, the group of supporting fictions for the family rejoining and disfunctions of today in favor of the chosen parenthood. These fictions thrive to dissolve all semblances which had so far sustained in hypocrisy the essence of family life. The culture of permissiveness as well as the authority crisis that follows the decline of the father demands a transparency which abolishes the family secrets, denounces the hypocrisy and subverses the generation barriers. In this huge devastation, the incidence of psychoanalysis must be taken into consideration especially in the imperative that forces parents to tell everything to their children: an opportune transparency for the self-image construction.

Keywords: familiar romance, father decline, conjugalitys, parenthoods, filiations

 

 

As crianças têm seu romance familiar; elas inventam outros pais, mais prestigiados, diferentes dos seus: elas colocam em questão as origens do seu nascimento. Em suma, elas recompõem suas famílias. Hegel dizia: «o nascimento das crianças é a morte dos pais». A psicanálise recusa essa dialética, pois as crianças têm muitas razões para imaginar outros pais que não os seus; elas não os suprimem, acrescentam outros.

Acontece aos pais lamentarem-se por não terem os filhos que merecem; eles podem tentar fazê-los um pouco mais bem feitos, se ainda tiverem tempo para isso. Eles têm a escolha de fabricá-los. A família contemporânea pode alimentar-se de idealizações acerca dos laços familiares, desembaraçá-los dos modelos e entraves à liberdade de escolha, fazendo dela um lugar de experimentação.

Podemos chamar de romance familiar parental, o conjunto de ficções que sustentam as recomposições e os disfuncionamentos familiares de hoje, em favor do tipo de parentalidade escolhida. Estas ficções se esforçam para dissolver todos os semblantes que até agora, mantinham na hipocrisia o essencial da vida em família. A cultura da permissividade, bem como a crise da autoridade que acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as barreiras das gerações. Nessa grande devastação, a incidência da psicanálise, deve ser levada em conta, principalmente no imperativo que obriga a dizer tudo às crianças: uma transparência propícia à construção da imagem de si. O americano Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo (1970, p. 71), popularizou a tese do narcisismo como a fase suprema do individualismo que caracteriza a visão de mundo das sociedades ultraliberais: onde a despadronização das normas reguladoras e autoritárias e a erosão dos papéis sociais estão a serviço da realização autêntica do eu e do culto ao íntimo.

Gilles Lipovetsky fez eco com o seu artigo sobre o individualismo contemporâneo, variante sociológica sobre o tema do Outro que não existe. As teses catastróficas de Lasch são nitidamente conservadoras: elas são utilizadas hoje em dia pelos mais nostálgicos entre os psicólogos de criança. O desenvolvimento pessoal na intimidade de um ambiente familiar atento1 substitui-se à transmissão dos valores. Indignamo-nos com o fato de que o florescimento do eu se sobreponha à educação, favorecendo o egoísmo e a incivilidade.

Uma referência à psicanálise, tão arriscada quanto a precedente, pretende retificar a autoridade parental: ela insurge-se contra a promoção da “sua majestade, o bebê”, que engendra o «narcisismo» primário dos pais. Todo o amor próprio dos pais cristaliza-se na criança como ideal. A versão moderna da sua majestade, o bebê, é a criança em igualdade com os adultos que detém seus próprios direitos, o que, para alguns, tem a conseqüência de suprimir o seu estatuto de criança. Essa regressão ao século dezoito, faz da criança uma vítima do amor (segundo uma psicóloga da rádio).

Entretanto, a supressão dos tabus e do ideal permissivo não dizem respeito apenas às crianças, tiranos domésticos que transformam a família em jardim da infância. Aos pais modernos, tudo parece ser permitido também. Essa erosão dos papéis parentais despadronizados, apresenta um relevo muito atual ao julgamento, sem ilusão, emitido por Lacan nos Escritos, estigmatizando «essas verdadeiras crianças que são os pais», (não há, nesse sentido, outras na família senão eles próprios) (Lacan, 1966, p. 579).

A subversão dos papéis faz do teatro familiar uma comédia: um fantasma hedonista assegura o triunfo de um filme recentemente lançado nos Estados Unidos; Little Miss Sunshine. Uma stripteaser de oito anos, laureada num concurso de beleza, iniciada, aliás, pelo seu avô um pouco libidinoso, que engaja toda a família na cena, desvelando o fantasma pedófilo da comunidade: a farra em família. É a nova escola de pais, feita pelas crianças, em versão soft.

A insurreição dos costumes contra a família conjugal tradicional tem também sua versão hard. Ela parece animada por motivos menos «regressivos». A onda de famílias recompostas, de adoções, da homoparentalidade – especialmente nos EUA – não procede apenas da fantasia que a psicanálise teria liberado. A antropologia dos anos 70 lhes aportou uma caução mais culta, atacando o familialismo da psicanálise e sua suposição da universalidade da família conjugal; ela subverteu inteiramente a ilusão naturalista. A universalidade do próprio conceito de parentesco não resistiu a isso. Os laços de sangue ou a interdição do incesto são objeto de curiosidade etnológica e mesmo de exceção num relativismo cultural generalizado.

Um tal de David Schneider alcançou a glória na Universidade de Chicago durante os anos 80, junto às feministas e os estudantes de vanguarda, ao dissociar o parentesco de todo fator biológico e toda referência à sexualidade. Os laços econômicos e religiosos, as afinidades culturais têm um papel mais determinante que as estruturas elementares. O pragmatismo das alianças é mais importante que os modelos intangíveis do parentesco. A família conjugal não parece decorrer senão das ilusões etnocêntricas, às quais Lévi-Strauss, ele próprio, não escapou.

Durante esses mesmos anos, o partido anti Lévi-Strauss foi conduzido, em 1971, pelos antropólogos Edmond Leach e Rodney Needham. Este último, responsável pela obra coletiva O parentesco em questão, que chamou a atenção de Lacan; no ano de sua tradução em francês, Lacan (1979, p. 13) o menciona no seu Seminário de 19 de abril de 1977, Les non-dupes errent. Needham observa a justo título, aliás, que o parentesco deve ser colocado em questão porque ele comporta mais variedade de fato, do que os analisandos reconhecem. Mas, o que resta espantoso, de todo modo, é que os analisandos não falam senão disso, dos parentes próximos, seus parentes «mais ou menos imediatos».

Sem ignorar nada do relativismo cultural, Lacan já havia tomado como exemplo os casos de três sujeitos du Haut-Togo para recusar a homologia do inconsciente com as estruturas do parentesco; nossos três africanos eram suficientemente colonizados para que seu inconsciente fosse edipiano (Lacan, 1991, p. 104). O discurso do mestre é transcultural, o inconsciente não escapa a isso. Não é indiferente lembrar que Lacan já se endereçava  aos americanos na Universidade de Yale, em 1975, sobre o mesmo tema: «O analisando começa a falar de maneira mais e mais centrada, centrada em qualquer coisa que desde sempre se opõe à polis (no sentido de cidade), a saber sobre sua família particular. A inércia que faz com que um sujeito não fale senão de papai e mamãe é, sem dúvida, um fato curioso» (Lacan, 1976, p. 44).

Poderíamos pensar que essa disjunção família-cidade tende a esmaecer-se graças à dissolução da ordem familiar que a sociedade urbana favorece, liberando os fluxos que desterritorializam de tal maneira a coisa familiar, especialmente nas cidades onde a família se torna uma cidade em si mesma; aqui, os pequenos segredos de família são segredos para a família ela própria. A prática com crianças esgota-se em desembaraçar os novelos do parentesco; os incestos edipianos e a incerteza sobre a identidade do pater familias fazem o terapeuta gastar seu grego e seu latim.

As referências sociológicas inspiradas no relativismo cultural não têm dificuldade em justificar a pertinência e a variedade das práticas que governam as famílias hipermodernas. Não é difícil concordar as referências sociológicas inspiradas no relativismo cultural com a doutrina lacaniana. É uma tentação. A etnologia comparada é um laboratório do qual pode se nutrir o fantasma: prescindir do pai... ao menos distinguí-lo completamente do genitor. A família conjugal estará atrasada em relação aos melanésios? Com efeito, «o pai não é o genitor» (Lacan., 2001, p. 532).

Lacan reduz a ordem familiar a essa disjunção. É, de fato, o recalque desta oposição significante que preside a criação da família conjugal: em conseqüência, a fragmentação da família parece inscrever-se nessa estrutura, fora do recalque, afirmando em alto e bom tom que prescindimos do pai, pois um nome se transmite por meio de um «parentesco escolhido» (Schouman & Simard, 2006, p. 114).

A dialética «prescindir, saber se servir» consegue destronar o pai de família nas suas pretensões de universalidade. A redução da função paterna a um semblante, assim como a pluralização dos Nomes-do-Pai, poderá justificar que as funções requeridas dos pais sejam independentes do sexo. É o sonho da antropologia progressista. Trata-se da estrutura posta a nu. A família se tornaria o espaço metafórico privilegiado, alargado. Passando do lar ao território, onde um pai ou uma mãe, um vizinho, um amigo poderiam suprir todas as carências do ambiente imediato.

A antropologia americana dos anos 70-80 deverá ainda alimentar as ficções hiper-modernas pelo reforço do feminismo universitário na insurreição contra o patriarcado e o sexismo. Esta nova onda toma ainda Lévi-Strauss como efígie, denunciando o machismo que preside as estruturas do parentesco, supostamente fundadas na circulação de mulheres. Poder-se-ia, igualmente, promover a circulação de homens em seu lugar, como parece ser o caso entre os Na de Chine, caros a Godelier, onde se prescinde do pai, do marido e do genitor (Godelier, 2004, p. 395-400.). Malinovski tinha seus trobiandeses para recusar o Complexo de Édipo; a antropologia contemporânea consegue consagrar a inutilidade do pai trilhando os recantos esquecidos do planeta.

A família hyper-moderna aboliria assim um passado familiar caracterizado pelos diferentes retratos do pai carentes; o pai desocupado, assinalado por Lacan nos seus Escritos, dará lugar ao «pai-errante»; pai, traço de união, errante. No lugar da falta, teremos, como dizia do general De Gaulle, o cheio demais.

O real étnico abriga ainda as ficções que os gender studies2 popularizaram; o binário homem-mulher e sobretudo o binário papai-mamãe escaparia à fixidez pelo continuísmo do gênero, para além da norma heterosexual, na perspectiva construtivista a família é o lugar de uma construção de gênero, de um desempenho (activity), do papel do gênero. Os estudos sobre o gender justificam um hiper-funcionalismo, uma teoria dos papéis que teatraliza ao máximo a vida de família, desnaturaliza as funções reforçando assim os fatores de condicionamento e ambiente na construção subjetiva, em detrimento de tudo aquilo que possa fazer lei, transmissão legítima, limite para o desejo.

A este funcionalismo pragmático Lacan opunha, entretanto, o mito do pai real que, com certeza, não é o genitor, mas que não é permutável. Ele lembrava até mesmo que «não é a mesma coisa ter sua própria mãe e a mãe do vizinho» (Lacan, 1976, p. 45)... É atual. Os trabalhos do Cereda,3 de junho passado4, mostraram a que ponto existe para a criança uma tensão entre os pais substitutos, padrastos, companheiros, amantes de um lado e a ficção do pai cujo gozo coloca um enigma. Sem se fazerem de guardiões da ordem simbólica, as crianças apresentam novos sintomas que não devem nada à neurose do papai; conseqüência do nevoeiro de identidades de sexo e da despadronização de papéis, da opacidade do gozo dos pais (Cottet, 2006).

As crianças adotadas e, mais ainda, as crianças nascidas de um doador anônimo por causa da esterilidade do pai estão longe de serem indiferentes à imagem suposta do doador. Elas ilustram, à propósito, a tendência suicida própria às crianças não desejadas, sublinhada por Lacan. Amadas, com certeza, elas o são. Serão também amadas por um desejo que não é semblante, enquanto máscara da necessidade?

Eis porque as famílias à la carte não estão livres de um fantasma que podemos chamar de antropológico; elas recalcam a questão do sexo, da transmissão, do mistério que é para a criança a união e a desunião dos dois pais. A disjunção das estruturas do parentesco de um lado, e da sexualidade do outro lado, em proveito de uma combinatória de papéis, incita a uma maldição sobre o sexo que pode ser percebida até na teorização do problema.

Lacan afirmava, há muito tempo, a teoria psicanalítica «participa, ela própria, do véu lançado sobre o coito dos pais» (Lacan, 1966, p. 579). Encontramos aí o fantasma dos pais combinados, no lugar da cena primitiva, ou a síntese harmoniosa do genital love.5 Aí está, sem nuances, e é lembrado por Jacques Alain Miller, inserido no programa destas jornadas6.

Uma aporia na doutrina convida a um enriquecimento por meio da science-fiction; as ciências, ditas humanas, os encorajam ao dissociar filiação e sexualidade, com boas intenções sem dúvida, mas suprimindo o sujeito afetado de perto pela questão, a saber a criança-sintoma; elas contribuem para colocar fora do circuito do fantasma dos pais, camuflado no vocabulário da inovação.

Famíílias hyper-modernas ou casais comuns participam do hedonismo cool que oferece a família como último valor, refúgio comum aos naturalistas e aos modernos. Não é a psicanálise que é familialista, é o discurso do mestre que está disposto a colocar todo mundo sob contrato. Fragmentado ou não, casal homo ou pais hetero, todos pretendem ser felizes em família graças à invenção de significantes novos da aliança, por meio da palavra de ordem: construam-se, reconstruam-se. Sobre esse ponto, as devastações do cognitivismo e dos gender studies se associam aos tradicionalistas para varrer o inconsciente.

Traduzido por Tania Coelho dos Santos.  

Texto recebido em: 20/12/2006.

Aprovado em: 20/02/2007.  

 

Notas:

  1. N.T. Substituímos a expressão à escuta, por atento.

  2. Estudos de gênero.

  3. N.R.: Nova Rede Cereda (Centre de Recherche sur l’Enfant dans le Discours Analytique).

  4. La petite girafe, Se faire sa famille, número 24. Paris: Agalma, Paris, 2006.

  5. N.T.:Amor genital.

  6. N.T.: O autor se refere ao artigo de Jacques-Alain Miller, “Assuntos de família no inconsciente”, publicado nessa mesma edição de aSEPHallus, relativo às XXXVéme. Journées da École de la Cause Freudienne.

Referências bibliográficas

Cottet, S. (2006) Le père Eclaté. In: La petite girafe, n. 24. Paris: Agalma, Paris, 2006.

GODELIER, M. Métamorfhoses de la parenté. Paris: Editions Fayard, 2004. 700p. ISBN 2213614903

LACAN, J. (1966) Écrits. Paris: Ed. du Seuil, 1966, 911p.

_______. (1979) Les non-dupes errent. Ornicar, Paris: Lyse, n. 17-18, 1979.

_______. Le Séminaire XVII: L’ Envers de la psychanalyse (1970 [1969]). Paris: Ed. Du Seuil, 1991. 245p.

_______. Télevision. In: Autres Écrits. Paris: Ed. Du Seuil, 2001. p. 509-545.

_______. (1976) Conférences aux Universités Nord-Américaines. In: Scilicet n. 6-7, Paris: Ed. Seuil, 1976, 381p. ISBN 2-02-004527-3

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LASCH, C. The culture of narcissism. New York: w.w. Nortom & company, 1979. 302p.

LIPOVETSKY, G. Essais sur l’individualisme contemporain. In: L’Ere du vide. Paris: Gallimard, n. 121, (1989 [1983]). 313p.

SCHOUMAN, M.; SIMARD, D. Sexualité, famille procréation, faut-il obéir à la nature? Paris: Arnaud Franel Editions, 2006.

XXXVéme. JOURNÉES DA ÉCOLE DE LA CAUSE FREUDIENNE: L’Envers des familles, 2006, Paris. Le Lien familial dans l’expérience psychanalytique. Disponível em:< http:// www.causefreudienne.net/evenements/journees –ecf/35-journees-ecf/>. Acesso em: 23 abril. 2007.

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