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As
crianças têm seu romance familiar; elas inventam outros pais,
mais prestigiados, diferentes dos seus: elas colocam em questão
as origens do seu nascimento. Em suma, elas recompõem suas famílias.
Hegel dizia: «o nascimento das crianças é a morte dos pais».
A psicanálise recusa essa dialética, pois as crianças têm
muitas razões para imaginar outros pais que não os seus; elas
não os suprimem, acrescentam outros.
Acontece
aos pais lamentarem-se por não terem os filhos que merecem;
eles podem tentar fazê-los um pouco mais bem feitos, se ainda
tiverem tempo para isso. Eles têm a escolha de fabricá-los. A
família contemporânea pode alimentar-se de idealizações
acerca dos laços familiares, desembaraçá-los dos modelos e
entraves à liberdade de escolha, fazendo dela um lugar de
experimentação.
Podemos
chamar de romance familiar parental, o conjunto de ficções que
sustentam as recomposições e os disfuncionamentos familiares
de hoje, em favor do tipo de parentalidade escolhida. Estas ficções
se esforçam para dissolver todos os semblantes que até agora,
mantinham na hipocrisia o essencial da vida em família. A
cultura da permissividade, bem como a crise da autoridade que
acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole
os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as
barreiras das gerações. Nessa grande devastação, a incidência
da psicanálise, deve ser levada em conta, principalmente no
imperativo que obriga a dizer tudo às crianças: uma transparência
propícia à construção da imagem de si. O americano
Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo (1970, p.
71), popularizou a tese do narcisismo como a fase suprema do
individualismo que caracteriza a visão de mundo das sociedades
ultraliberais: onde a despadronização das normas reguladoras e
autoritárias e a erosão dos papéis sociais estão a serviço
da realização autêntica do eu e do culto ao íntimo.
Gilles
Lipovetsky fez eco com o seu artigo sobre o individualismo
contemporâneo, variante sociológica sobre o tema do Outro que
não existe. As teses catastróficas de Lasch são nitidamente
conservadoras: elas são utilizadas hoje em dia pelos mais nostálgicos
entre os psicólogos de criança. O desenvolvimento pessoal na
intimidade de um ambiente familiar atento1
substitui-se à transmissão dos valores. Indignamo-nos com o
fato de que o florescimento do eu se sobreponha à educação,
favorecendo o egoísmo e a incivilidade.
Uma
referência à psicanálise, tão arriscada quanto a precedente,
pretende retificar a autoridade parental: ela insurge-se contra
a promoção da “sua majestade, o bebê”, que engendra o «narcisismo»
primário dos pais. Todo o amor próprio dos pais cristaliza-se
na criança como ideal. A versão moderna da sua majestade, o
bebê, é a criança em igualdade com os adultos que detém seus
próprios direitos, o que, para alguns, tem a conseqüência de
suprimir o seu estatuto de criança. Essa regressão ao século
dezoito, faz da criança uma vítima do amor (segundo uma psicóloga
da rádio).
Entretanto,
a supressão dos tabus e do ideal permissivo não dizem respeito
apenas às crianças, tiranos domésticos que transformam a família
em jardim da infância. Aos pais modernos, tudo parece ser
permitido também. Essa erosão dos papéis parentais
despadronizados, apresenta um relevo muito atual ao julgamento,
sem ilusão, emitido por Lacan nos Escritos,
estigmatizando «essas verdadeiras crianças que são os pais»,
(não há, nesse sentido, outras na família senão eles próprios)
(Lacan, 1966, p.
579).
A
subversão dos papéis faz do teatro familiar uma comédia: um
fantasma hedonista assegura o triunfo de um filme recentemente
lançado nos Estados Unidos; Little Miss Sunshine. Uma stripteaser
de oito anos, laureada num concurso de beleza, iniciada, aliás,
pelo seu avô um pouco libidinoso, que engaja toda a família na
cena, desvelando o fantasma pedófilo da comunidade: a farra em
família. É a nova escola de pais, feita pelas crianças, em
versão soft.
A
insurreição dos costumes contra a família conjugal
tradicional tem também sua versão
hard. Ela parece animada por motivos menos «regressivos».
A onda de famílias recompostas, de adoções, da
homoparentalidade – especialmente nos EUA – não procede
apenas da fantasia que a psicanálise teria liberado. A
antropologia dos anos 70 lhes aportou uma caução mais culta,
atacando o familialismo da psicanálise e sua suposição da
universalidade da família conjugal; ela subverteu inteiramente
a ilusão naturalista. A universalidade do próprio conceito de
parentesco não resistiu a isso. Os laços de sangue ou a
interdição do incesto são objeto de curiosidade etnológica e
mesmo de exceção num relativismo cultural generalizado.
Um
tal de David Schneider alcançou a glória na Universidade de
Chicago durante os anos 80, junto às feministas e os estudantes
de vanguarda, ao dissociar o parentesco de todo fator biológico
e toda referência à sexualidade. Os laços econômicos e
religiosos, as afinidades culturais têm um papel mais
determinante que as estruturas elementares. O pragmatismo das
alianças é mais importante que os modelos intangíveis do
parentesco. A família conjugal não parece decorrer senão das
ilusões etnocêntricas, às quais Lévi-Strauss, ele próprio,
não escapou.
Durante
esses mesmos anos, o partido anti Lévi-Strauss foi conduzido,
em 1971, pelos antropólogos Edmond Leach e Rodney Needham. Este
último, responsável pela obra coletiva O parentesco em
questão, que chamou a atenção de Lacan; no ano de sua
tradução em francês, Lacan (1979,
p. 13) o
menciona no seu Seminário de 19 de abril de 1977, Les
non-dupes errent. Needham observa a justo título, aliás,
que o parentesco deve ser colocado
em questão porque ele comporta mais variedade de fato, do que
os analisandos reconhecem. Mas, o que resta espantoso, de todo
modo, é que os analisandos não falam senão disso, dos
parentes próximos, seus parentes «mais ou menos imediatos».
Sem
ignorar nada do relativismo cultural, Lacan já havia tomado
como exemplo os casos de três sujeitos du Haut-Togo para
recusar a homologia do inconsciente com as estruturas do
parentesco; nossos três africanos eram suficientemente
colonizados para que seu inconsciente fosse edipiano (Lacan,
1991, p. 104). O discurso do mestre é transcultural, o
inconsciente não escapa
a isso. Não é indiferente lembrar que Lacan já se endereçava aos americanos na Universidade de Yale, em 1975, sobre o
mesmo tema: «O analisando começa a falar de maneira mais e
mais centrada, centrada em qualquer coisa que desde sempre se opõe
à polis (no sentido
de cidade), a saber sobre sua família particular. A inércia
que faz com que um sujeito não fale senão de papai e
mamãe é, sem dúvida, um fato curioso» (Lacan,
1976, p. 44).
Poderíamos
pensar que essa disjunção família-cidade tende a esmaecer-se
graças à dissolução da ordem familiar que a sociedade urbana
favorece, liberando os fluxos que desterritorializam de tal
maneira a coisa familiar, especialmente nas cidades onde a família
se torna uma cidade em si mesma; aqui, os pequenos segredos de
família são segredos para a família ela própria. A prática
com crianças esgota-se em desembaraçar os novelos do
parentesco; os incestos edipianos e a incerteza sobre a
identidade do pater familias fazem o terapeuta gastar seu grego e seu latim.
As
referências sociológicas inspiradas no relativismo cultural não
têm dificuldade em justificar a pertinência e a variedade das
práticas que governam as famílias hipermodernas. Não é difícil
concordar as referências sociológicas inspiradas no
relativismo cultural com a doutrina lacaniana. É uma tentação.
A etnologia comparada é um laboratório do qual pode se nutrir
o fantasma: prescindir do pai... ao menos distinguí-lo
completamente do genitor. A família conjugal
estará atrasada em relação aos melanésios? Com efeito, «o
pai não é o genitor» (Lacan.,
2001, p. 532).
Lacan
reduz a ordem familiar a essa disjunção. É, de fato, o
recalque desta oposição significante que preside a criação
da família conjugal: em conseqüência, a fragmentação da família
parece inscrever-se nessa estrutura, fora do recalque, afirmando
em alto e bom tom que prescindimos do pai, pois um nome
se transmite por meio de um «parentesco escolhido» (Schouman
& Simard,
2006, p. 114).
A
dialética «prescindir, saber se servir» consegue destronar o
pai de família nas suas pretensões de universalidade. A redução
da função paterna a um semblante, assim como a pluralização
dos Nomes-do-Pai, poderá justificar que as funções requeridas
dos pais sejam independentes do sexo. É o sonho da antropologia
progressista. Trata-se da estrutura posta a nu. A família se
tornaria o espaço metafórico privilegiado, alargado. Passando
do lar ao território, onde um pai ou uma mãe, um vizinho, um
amigo poderiam suprir todas as carências do ambiente imediato.
A
antropologia americana dos anos 70-80 deverá ainda alimentar as
ficções hiper-modernas pelo reforço do feminismo universitário
na insurreição contra o patriarcado e o sexismo. Esta nova
onda toma ainda Lévi-Strauss como efígie, denunciando o
machismo que preside as estruturas do parentesco, supostamente
fundadas na circulação de mulheres. Poder-se-ia, igualmente, promover
a circulação de homens em seu lugar, como parece ser o caso
entre os Na de Chine, caros a Godelier, onde se prescinde do
pai, do marido e do genitor (Godelier,
2004, p. 395-400.).
Malinovski tinha seus trobiandeses para recusar o Complexo de Édipo;
a antropologia contemporânea consegue consagrar a inutilidade
do pai trilhando os recantos
esquecidos do planeta.
A
família hyper-moderna aboliria assim um passado familiar
caracterizado pelos diferentes retratos do pai carentes; o pai
desocupado, assinalado por Lacan nos seus Escritos, dará
lugar ao «pai-errante»; pai, traço de união, errante. No
lugar da falta, teremos, como dizia do general De Gaulle, o
cheio demais.
O
real étnico abriga ainda as ficções que os gender
studies2 popularizaram;
o binário homem-mulher e sobretudo o binário papai-mamãe
escaparia à fixidez pelo continuísmo do gênero, para além da
norma heterosexual, na perspectiva construtivista a família é
o lugar de uma construção de gênero, de um desempenho (activity),
do papel do gênero. Os estudos sobre o
gender justificam um hiper-funcionalismo, uma teoria dos papéis
que teatraliza ao máximo a vida de família, desnaturaliza as
funções reforçando assim os fatores de condicionamento e
ambiente na construção subjetiva, em detrimento de tudo aquilo
que possa fazer lei, transmissão legítima, limite para o
desejo.
A
este funcionalismo pragmático Lacan opunha, entretanto, o mito
do pai real que, com certeza, não é o genitor, mas que não é
permutável. Ele lembrava até mesmo que «não é a mesma coisa
ter sua própria mãe e a mãe do vizinho» (Lacan, 1976, p. 45)... É atual. Os trabalhos do Cereda,3
de junho passado4, mostraram a que ponto existe para
a criança uma tensão entre os
pais substitutos, padrastos, companheiros, amantes de um lado e
a ficção do pai cujo gozo coloca um enigma. Sem se fazerem de
guardiões da ordem simbólica, as crianças apresentam novos
sintomas que não devem nada à neurose do papai; conseqüência
do nevoeiro de identidades de sexo e da despadronização de papéis,
da opacidade do gozo dos pais (Cottet,
2006).
As
crianças adotadas e, mais ainda, as crianças nascidas de um
doador anônimo por causa da esterilidade do pai estão longe de
serem indiferentes à imagem suposta do doador. Elas ilustram,
à propósito, a tendência suicida própria às crianças não
desejadas, sublinhada por Lacan. Amadas, com certeza, elas o são.
Serão também amadas por um desejo que não é semblante,
enquanto máscara da necessidade?
Eis
porque as famílias à la
carte não estão livres de um fantasma que podemos chamar
de antropológico; elas recalcam a questão do sexo, da
transmissão, do mistério que é para a criança a união e a
desunião dos dois pais. A disjunção das estruturas do
parentesco de um lado, e da sexualidade do outro lado, em
proveito de uma combinatória de papéis, incita a uma maldição
sobre o sexo que pode ser percebida até na teorização do
problema.
Lacan
afirmava, há muito tempo, a teoria psicanalítica «participa,
ela própria, do véu lançado sobre o coito dos pais» (Lacan,
1966, p. 579). Encontramos aí o fantasma dos pais combinados,
no lugar da cena primitiva, ou a síntese harmoniosa do
genital love.5 Aí está, sem nuances, e é
lembrado por Jacques Alain Miller, inserido no programa destas
jornadas6.
Uma
aporia na doutrina convida a um enriquecimento por meio da science-fiction; as ciências, ditas humanas, os encorajam ao
dissociar filiação e sexualidade, com boas intenções sem dúvida,
mas suprimindo o sujeito afetado de perto pela questão, a saber
a criança-sintoma; elas contribuem para colocar fora do
circuito do fantasma dos pais, camuflado no vocabulário da
inovação.
Famíílias
hyper-modernas ou casais comuns participam do hedonismo
cool que oferece a família como último valor, refúgio
comum aos naturalistas e aos modernos. Não é a psicanálise
que é familialista, é o discurso do mestre que está disposto
a colocar todo mundo sob contrato. Fragmentado ou não, casal
homo ou pais hetero, todos pretendem ser felizes em família graças
à invenção de significantes novos da aliança, por meio da
palavra de ordem: construam-se, reconstruam-se. Sobre esse
ponto, as devastações do cognitivismo e dos gender studies se associam aos tradicionalistas para varrer o
inconsciente.
Traduzido
por Tania Coelho dos Santos.
Texto
recebido em: 20/12/2006.
Aprovado
em: 20/02/2007.
Notas:
-
N.T.
Substituímos a expressão à escuta, por atento.
-
Estudos
de gênero.
-
N.R.:
Nova Rede Cereda (Centre de Recherche sur l’Enfant dans le
Discours Analytique).
-
La
petite girafe,
Se faire sa famille, número 24. Paris: Agalma,
Paris, 2006.
-
N.T.:Amor
genital.
-
N.T.:
O autor se refere ao artigo de Jacques-Alain Miller,
“Assuntos de família no inconsciente”, publicado nessa
mesma edição de aSEPHallus, relativo às XXXVéme.
Journées da École de la Cause Freudienne.
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