A ampliação da clínica psicanalítica para abranger os diversos lugares de assistência pública e/ou ambulatorial abre espaços novos para acolher as urgências subjetivas decorrentes dos mais diversos níveis de sofrimento mental, que se alastram na contemporaneidade sem sentido. Entretanto, para que se possa trabalhar nestes novos espaços, faz-se necessário que a psicanálise aplicada seja fiel aos princípios da psicanálise pura e que cada experiência dessa expansão seja devidamente justificada. Seguimos, assim, o postulado freudiano de que a psicanálise vai além de um método terapêutico, pois propõe uma teoria da gênese e do funcionamento do psiquismo em geral.
Desde Freud até Lacan, há um consenso de que os limites e as possibilidades de intervenção da psicanálise no laço social são proporcionais à formação e à experiência dos analistas. Em meu projeto de pesquisa de doutorado (Fonseca, 2009) sobre “os efeitos subjetivos da pobreza”, constatei que Freud, até 1913, desconsiderava o tratamento psicanalítico aos pobres. Só a partir de 1917, já com a teorização sobre o narcisismo e as pulsões, ele modifica a afirmação anterior e registra concomitantemente suas preocupações com a doença psíquica que se alastrava como uma epidemia social – a miséria social e psíquica - e com a formação dos analistas para tal empreitada.
No Brasil, a oferta de dispositivos clínicos inspirados na psicanálise se dá em alguns poucos serviços públicos e/ou privados de caráter ambulatorial. Acredita-se que o desejo do psicanalista de participar da polis, divulgando e ampliando os espaços de intervenção da psicanálise na contemporaneidade, exige uma reflexão crítica os conceitos fundamentais para delimitar o que é essencial, isto é, a nossa prática.
A coincidência: os estudos sobre os efeitos subjetivos da pobreza e a formação dos analistas.
Neste trabalho, levantam-se as diretrizes freudianas para uma prática da psicanálise com brasileiros de baixa renda, com pouca escolaridade e não familiarizados com o discurso psicanalítico. Por que Freud considerava que a população mais pobre precisava ser atendida por analistas mais experientes?
O valor da psicanálise para Freud (1920) era o de ser um procedimento terapêutico que pode fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização.
“Esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho. Isso parece constituir uma necessidade social, particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à neurose, estão mergulhando irresistivelmente na pobreza” (Freud, 1920, p. 357). |
Inicialmente,em 1913, nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, Freud não era muito otimista quanto às indicações de tratamento psicanalítico para os pobres. Considerava que a maioria estava preocupada com as questões referentes à garantia da sobrevivência, sendo assim, menos susceptíveis a neuroses. Muitos dos que sucumbiam à neurose resistiam a se livrar dela, na medida que obtinham um ganho secundário da doença. Ele observou que as neuroses, nesses casos, serviam para reivindicar a piedade do mundo, liberando-os da obrigação de superar a pobreza com o trabalho. Apenas poucos se interessavam pelo tratamento quando tinha acesso a ele.
Nesse momento, Freud era radicalmente contrário ao tratamento gratuito. O pagamento dos honorários do analista tem função reguladora da transferência tanto para o analista quanto para o paciente. A falta de pagamento tem consequências importantes: em relação ao paciente, aumenta suas resistências neuróticas ao tratamento; e, em relação ao analista, a prática filantrópica desinteressada desperta fantasias de sacrifício e de submissão. E mais, o analista corre o risco de os pacientes entenderem que ele não valoriza adequadamente seu trabalho. Freud adverte os analistas que, ao ocuparem-se das questões de honorários, devem considerar que as pessoas tratam as questões de dinheiro como as questões de sexo, ou seja, com incoerência, pudor e hipocrisia. O analista, ao conversar sobre pagamento, tempo de tratamento, prognóstico, regras da análise, entre outros temas, ‘educa’ o paciente para o convívio com a realidade externa.
Posteriormente, Freud muda radicalmente sua opinião sobre o tratamento dos pobres. Constatamos que depois do texto “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise”, só em “Luto e melancolia” (1917), ele estabelece as relações entre a pobreza, o empobrecimento do eu e a melancolia. Nesse intervalo, ele concebeu os estudos “Sobre o narcisismo...” (1915), “O inconsciente” (1915), “A pulsão e suas vicissitudes” (1915), entre outros da metapsicologia, que definitivamente mudaram a interpretação freudiana acerca da pobreza.
No V Congresso Psicanalítico Internacional (1918), em Budapeste, Freud declarou seu interesse de que a psicanálise pudesse beneficiar toda a sociedade humana. Fala da sua preocupação com a grande quantidade de miséria neurótica que existe no mundo e que, talvez, não precisasse existir. “As neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade” (1919, p. 210).
A solução viria através da responsabilização do Estado e da sociedade sobre a necessidade urgente de o pobre ter direito a uma assistência à sua mente tanto quanto tem direito a uma cirurgia. Ele sugere que esses atendimentos aconteçam em instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados analistas preparados:
“[...] de modo que homens que de outra forma cederiam a bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam se tornar capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente” (Freud, 1919, p. 210). |
E acrescenta que tais tratamentos seriam gratuitos. Freud acreditava na aceitação e na validade das hipóteses psicológicas também para as pessoas pouco instruídas e simultaneamente declarou sua preocupação com a formação dos analistas e com os desvios da técnica por falta de domínio da doutrina da psicanálise. Talvez fosse necessário adaptar a técnica às novas condições:
“[...] no entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, o seu ingrediente mais efetivo e mais importante continuará a ser, certamente, aquele tomado à psicanálise estrita e não tendenciosa” (Freud, 1919, p. 210, grifo meu).
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Freud se afligia com temas tais como os efeitos da guerra, os quais queria estudar. Ainda no V Congresso, Freud falou sobre a psicanálise e as neuroses de guerra (1919) e registrou seu aborrecimento com os representantes oficiais dos mais altos escalões das potências centro-europeias que não criaram centros psicanalíticos nos quais médicos com formação analítica teriam tempo e oportunidade para estudar a natureza desses intrincados distúrbios - as neuroses de guerra - e também o efeito terapêutico exercido sobre eles pela psicanálise. Lamentou a perda da oportunidade para uma investigação completa dessas afecções e a possibilidade de demonstrar suas conexões com a teoria sexual das neuroses.
Em “Linhas de progresso na terapia analítica” (1919 [1918]), Freud voltou a afirmar que estávamos diante de um tipo de neurose extremamente grave – a miséria social e psíquica. A partir de então, a psicanálise teria condições de ser aplicada aos pobres. Entendemos que com a teoria das pulsões, ele modificou seu modo de pensar o processo de civilização. Passou a declarar a necessidade de expansão da psicanálise à população pobre e, assim, traçou os indicadores da psicanálise aplicada à terapêutica. Em Freud, há uma relação direta entre o empobrecimento do eu e o empobrecimento econômico e social. Entendemos que a divisão do eu é constitucional e as consequências dessa divisão estão diretamente relacionadas com as condições individuais e sociais em que cada criança se organiza.
Esses estudos possibilitaram a compreensão dos processos de civilização. O pacto civilizado decorre do modo como o eu atende simultaneamente à satisfação pulsional e às exigências da realidade cujo processo resulta na divisão do eu. Essa divisão leva a um empobrecimento do eu, ou seja, à redução de recursos simbólicos para administrar a relação entre a satisfação pulsional e a realidade. Uma das consequências graves desse processo é a pobreza material.
Em 1920, Freud fez dois agradecimentos especiais aos analistas que tomaram a iniciativa de criar centros de atendimento em psicanálise e que puderam oferecer formação e atendimento aos pobres.
O primeiro foi uma homenagem póstuma ao Doutor Anton von Freund, que foi Secretário-Geral da Associação Psicanalítica Internacional desde o Congresso de Budapeste, em setembro de 1918. O seu falecimento em 20 de janeiro de 1920 interrompeu o trabalho de fundação do Instituto de Psicanálise em Budapeste, cuja finalidade seria o ensino e a prática da psicanálise em ambulatório.
O outro agradecimento foi dirigido ao amigo Max Eitingon, que criou a Policlínica Psicanalítica de Berlim, em março de 1920. Esta Policlínica tornou-se uma instituição de formação de analistas. A exigência de formação foi considerada como fundamental e “encarada como a única proteção possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas ignorantes e não qualificadas, sejam leigas ou médicas” (1920-22, p. 358).
Em “A questão da análise leiga” (1926), Freud deixou claro que não se interessava em desenvolver mecanismos de avaliação, controle legal e criação de regulamentos sobre a autorização para os praticantes da psicanálise. “Sei que isto é uma questão de princípios”; e reforçou “a importância de se ter autoridades com as quais se possa aprender o que é a análise, que espécie de preparo se faz necessário para isso, e as possibilidades de instrução em análise terão de ser estimuladas” (Freud, 1926, p. 269-70). Ele resume a questão ao definir, no sentido jurídico, quem seria charlatão: “aquele que efetua um tratamento sem possuir conhecimento e capacidade necessária para tanto”. (1926, p.261).
A herança de Freud na obra de Lacan
Lacan herda a preocupação freudiana com a formação do analista e também expande a prática da psicanálise em hospitais, na França. Em 1964, na “Ata de fundação da Escola”, Lacan indica que a diferença fundamental entre a psicanálise pura e a aplicada diz respeito à formação do analista (Lacan, 1971). Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, acrescenta que a Escola deve garantir a formação daqueles que querem ser analistas. Afirma que o analista deve "tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência". (1967, p. 248).
Esse compromisso com a formação é de tal ordem que a ascensão aos lugares institucionais é decorrente dos níveis de envolvimento com a Escola. “O psicanalista só se autoriza por si mesmo” (1967, p. 248), e entre seus pares. Haveria um tempo para a psicanálise em intenção e um outro tempo para a psicanálise em extensão. Lacan, em Televisão (1973), adverte sobre o lugar do analista diferentemente do lugar dos trabalhadores sociais, aqueles que “escolheram carregar a miséria nos ombros”. Explica: “carregar nos ombros as exigências do sintoma implica sempre se por a seu serviço. Ora, o sintoma deve, antes, ser posto a trabalhar pelo analista” (1973, p. 24).
Em suma, redobramos a nossa atenção na perseguição contemporânea de eliminar qualquer experiência de “sofrimento” e de busca por “cura rápida” da infelicidade.
A delicadeza deste tema apresentado está na exposição dos limites de ação do analista e da pesquisa em clínica. Os embates nesse campo têm como consequência a prática de uma psicanálise selvagem. Consideramos que um analista sabe da rapidez e eficácia terapêutica das intervenções. O desafio está em “permitir a um sujeito ter a experiência do inconsciente, para encontrar a lógica de suas decisões e de sua posição na vida, é assegurar-lhe a possibilidade de sair da repetição do pior” (Blanco, 2007). A um analista cabe transmitir à civilização o que a particularidade de cada um tem de interesse para todos. Particularmente, no que diz respeitar à articulação entre normas e particularidades individuais (Laurent, 2007). Caso contrário, corre-se o risco de ocupar uma posição cínica, que abre espaço para se fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, para qualquer pessoa.
Nota
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Este texto é parte da minha pesquisa de doutoramento junto ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalitica na UFRJ, sob orientação da Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos, com o fomento da CAPES.
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Citacão/Citation: FONSECA, V.W.S. As indicações freudianas para a formação dos analistas e a clínica com a população de baixa renda. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 12/03/2010 / 03/12/2010.
Aceito/Accepted: 15/04/2010 / 04/15/2010.
Copyright: © 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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