Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

O SUJEITO MODERNO

O SUJEITO MODERNO

A ciência moderna e o discurso da histérica
Segmento da Tese de doutorado de Maria Cristina da Cunha Antunes:
"O discurso do analista e o campo da pulsão: da falta de gozo ao gozo com a falta" -
UFRJ/PPGTP/RJ/2002

O gesto cartesiano é o operador que possibilita a emergência da ciência moderna. Este operador consiste numa posição de “[...] rechaço de todo o saber”, definido por Lacan como sujeito da ciência. O sujeito da ciência é o correlato necessário antinômico da ciência, já que esta se define “[...] pela impossibilidade do esforço de suturar esse sujeito” (Lacan, 1998:870 e 875).
Desdobramos a operação cartesiana em dois momentos:
Um primeiro momento, que corresponde ao surgimento do sujeito da ciência, operador que funciona como rejeição a todo saber advindo da autoridade e da tradição;
Um segundo momento, que recobre o vazio, o buraco desvelado por essa operação, reintroduzindo o Outro (Deus) como fiador da verdade, lugar simbólico que garante o funcionamento e a produção de saber da ciência.
No Seminário 17, Lacan afirma que a ciência não resulta da operação presente na filosofia, ou seja, a extração do saber do escravo transformado em saber do mestre. Ela se funda no gesto cartesiano de renúncia a esse saber (1992:20), constituído a partir de S1, e se alicerça num vazio, num ponto de falta. A operação cartesiana produz, assim, um deslocamento: o de S1 do lugar de agente, produtor de saber no discurso do mestre. Desse deslocamento de um quarto de giro, resulta o discurso da histérica:
$/a - S1/S2
Nesse sentido, podemos dizer que a ciência moderna opera do âmbito do discurso histérico. Isso se coaduna com a afirmativa lacaniana de que “o que conduz ao saber não é o desejo de saber. É o discurso da histérica” (1992:21). Ainda no Seminário 17, ele afirma que o saber absoluto não se confunde com o ideal de formalização, onde tudo é cálculo. Pergunta-se se não haverá aí um deslocamento, um quarto de giro, que “é o que faz com que se instaure, no lugar do senhor, uma articulação nova do saber, completamente redutível formalmente” (1992:76). A nosso ver, esta é a mutação a que Lacan se refere em “Ciência e verdade”, acerca da ciência moderna: mudança radical de estilo e uma forma galopante de imisção no mundo (1998:869).
Ciência e conhecimento não são sinônimos e Lacan os diferencia apontando que “a característica da ciência não é ter introduzido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas ter feito surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano da nossa percepção”, pois a ciência não se constitui a partir da percepção, “[...] mas se refere a uma articulação, que só se concebe pela ordem significante”. Ela, portanto, “[...] se constrói com alguma coisa que antes não era nada” (1992:150 e 152). Pensamos que aqui Lacan faz referência à questão do objeto na ciência, que pode ser retomada em conjunto com as suas teses apresentadas nos Seminários 11 e 13.
No Seminário 13, Lacan enfatiza que o essencial para a ciência é o buraco, o vazio, e define o objeto da ciência como uma metonímia do objeto que falta. Neste ponto de falta, ele articula a relação entre a psicanálise e a ciência. Ambas operam a partir da falta (1965, Lição 2). Esta afirmação é melhor explorada por Lacan no Seminário 11, onde afirma que “a ciência se situa no ponto preciso da separação” e que “a análise procede do mesmo estatuto da ciência”, estatuto definido como o engajamento “[...] na falta central em que o sujeito se experimenta como desejo” (1990:250 e 251).
Partindo dessas referências podemos falar de um ponto de interseção entre ciência e psicanálise, situado na operação de separação que Lacan expõe no Seminário 11.
De que trata a operação de separação?
Para Lacan, operações de alienação e de separação são constituintes do sujeito. A operação de alienação, segundo Laurent, indica que o sujeito só pode ser reconhecido no lugar do Outro, impossibilitando que o pensemos como consciência-de-si. Paralelamente, a operação de alienação também aponta o fato de que o sujeito não pode ser inteiramente representado no campo do Outro (1997:34 e 37).
A operação de alienação produz um resto, introduzindo o sujeito como $, ou seja, habitado por uma falta. Laurent assinala que, no momento em que o sujeito se identifica a um significante, produz-se uma perda, isto é, ele se encontra no Outro à custa de uma parte perdida, o objeto a. Desse modo, a alienação reside no fato de que, por não ter identidade, o sujeito tenha de se identificar a algo: um significante.
A alienação é identificada por Lacan, no Seminário 11, como a primeira operação que funda o sujeito. Adverte, entretanto, que ela não deve ser entendida no sentido “[...] de um sujeito condenado a só se ver surgir, in initio, no campo do Outro”. A alienação consiste num vel que condena o sujeito a só aparecer nesta divisão, isto é, “[...] se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, de outro, ele aparece como afânise” (1990:199). A lógica do vel oferece a interpretação de uma escolha excludente, forçada, remetida, fatalmente, a uma perda. Para esclarecer essa lógica, Lacan comenta o exemplo da escolha entre a bolsa e a vida: na escolha da bolsa, perde-se os dois; na opção pela vida, esta se dará, necessariamente, sem a bolsa. Desse modo, o sujeito, identificado a um significante, comparece, portanto, como sentido e subsiste decepado da parte de não senso, o objeto inconsciente, objeto a.
A questão central nesta operação não é a alienação do sujeito no campo do Outro, mas a dimensão letal dessa operação, que institui o sujeito como faltoso, necessariamente dividido. A escolha forçada é a própria divisão do sujeito, operada a partir da castração, pela qual um resto é excluído do campo do sujeito. A alienação instala a falta no campo do sujeito, elidindo a castração, a falta no Outro, tematizada por Lacan na operação de separação. Assim, nos intervalos do discurso do Outro, surge, na experiência do falante, a interrogação: ele me diz isso, mas o que ele quer? Trata-se do comparecimento do desejo do Outro enquanto falta de um objeto, ponto onde o sujeito se vê causado e a partir do qual se constitui como desejo. Trata-se da instituição do Outro como inconsistente e do falo como significante da falta no Outro. Para Zizek, “[...] o falo enquanto significante não é simplesmente o objeto perdido, mas é um objeto que, em sua própria presença, encarna a perda” (1991:203), o objeto que falta e diz respeito à castração da mãe, ao que lhe falta enquanto representante do Outro.
Rabinovich (1994) destaca que, na operação de separação, o que está em jogo não são os significantes do Outro, mas seu intervalo que faz emergir a falta no lugar do Outro, ou seja, o lugar do objeto causa do desejo enquanto perdido, em falta. Trata-se de perguntar qual o objeto que causa do desejo do Outro. A separação em jogo é a do objeto. Segundo a autora, Miller indicaria que a operação de separação engendra um paradoxo: por um lado, ela se situa no ponto de falta do Outro, em relação ao qual se instaura o objeto como perdido, como causa de desejo; por outro, o sujeito busca encontrar um lugar no Outro, ali onde, neste, comparece uma falta. Deste ângulo, realiza-se uma operação de fixação no Outro: o fantasma, isto é, a interpretação que o falante criou acerca do seu lugar, do que ele teria sido para o Outro (Miller apud Rabinovich, 1994:7).
Desta discussão, interessa-nos trazer para o primeiro plano as conseqüências de se situar a ciência no ponto de separação, ou seja, operando a partir de uma falta no Outro. Tentemos explorar isso articulando essa posição ao discurso da histérica, no qual $ situa-se em posição de agente.
Cabe aqui uma distinção: o agente não é a causa. O agente age, funciona impulsionado por uma causa que, embora valada, opera. Nesse sentido, podemos dizer que o motor da operação científica é o objeto a, funcionando como causa.
O movimento do discurso da histérica se dá no sentido da ação de $ sobre S1. O que $ deseja de S1? Lacan diz, no Seminário 17, que a histérica quer que o Outro seja um mestre, mas... que não saiba demais. Ele assinala que o discurso histérico possibilita que haja um homem motivado pelo desejo de saber (1992:122 e 32). Esta seria a posição subjetiva do homem moderno, surgida a partir do advento da ciência moderna: o sujeito “científico”.
Juntamente com essas informações, Lacan comenta que a análise introduz a histericização do discurso (1992:31). Passar pelo discurso da histérica seria um encaminhamento necessário no dispositivo analítico. Isso significa dizer que o discurso do analista opera sobre uma determinada posição subjetiva, efeito do que Lacan denomina discurso da histérica. A partir destes desdobramentos, podemos apontar que a psicanálise opera sobre o sujeito da ciência, o sujeito moderno, situado no âmbito do discurso da histérica, cuja posição discursiva é efeito do discurso da ciência moderna.
O sujeito moderno: a divisão entre saber e verdade
Sugerimos, assim, que uma nova posição subjetiva, pensada no âmbito do discurso histérico, advém como conseqüência da ciência moderna. Nossa intenção é mapear em que consiste essa posição, a que chamamos moderna, sobre a qual a psicanálise opera.
Da episteme antiga à ciência moderna opera-se um deslocamento discursivo, introduzido pela castração do Outro, pelo processo de separação: do discurso do mestre ao da histérica. Da falta desse Outro desejante e, portanto, castrado, engendra-se uma dupla conseqüência. Por um lado, comparece o sujeito como $ - sujeito moderno, científico, aquele que deseja saber o que lhe falta, que precisa de um mestre, castrado, que compareça como desejante, sustentando a falta. Reencontramos aqui a posição cartesiana de recusar qualquer conhecimento advindo da tradição, do saber estabelecido, de um Outro que tudo sabe. Descartes parte da falta no Outro para sustentar todo o conhecimento na razão. Esta não é uma prerrogativa individual e o conhecimento que se adquire daí não é um saber relativo, particular a cada sujeito, o que nos faria cair num relativismo em que tudo (ou nada, dá no mesmo) pode ser verdadeiro. A razão para Descartes é uma operatória que se sustenta no Outro, isto é, na relação significante.
Guenancia comenta que o ponto básico em Descartes é a idéia de que o homem não pode ser, para si mesmo, a garantia de seus pensamentos, ou seja, há um Outro – no caso, Deus – que funciona como garante e causa da verdade. Para Descartes, Deus representa uma alteridade, uma idéia da qual o sujeito não é a causa (1991:93 e 91). Desse raciocínio, Descartes extrai o sujeito como ser finito, que não pode ser causa de si mesmo, um sujeito castrado, a quem algo falta. Essa falta, que é sua causa, está no Outro. Temos, aqui presente, a própria definição de sujeito dada por Lacan: o que um significante representa para outro significante.
Comparece o $, sujeito da razão, como efeito da operatória significante, o sujeito que quer saber sempre mais, que aposta na razão e na ciência.
Na modernidade, o sujeito cartesiano é recoberto pela figura do indivíduo. No Seminário 3, Lacan define o homem moderno como”[...] aquele em que se afirma sua independência em relação não só a todo senhor, mas também a todo deus, aquele de sua irredutível autonomia como indivíduo, como existência individual” (1988:154).
Dumont, no seu estudo sobre o individualismo como valor moderno por excelência, remonta ao Cristianismo a introdução da noção de indivíduo. O Cristianismo lança a idéia de que todos os homens são iguais e irmãos perante Deus. Dumont nomeia como um indivíduo-fora-do-mundo o homem que resulta dessa relação com deus. A noção de indivíduo surge ligada a Deus e apresenta-se, como tal, apenas em relação a ele, fora do âmbito mundano. Assim, “a alma individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus e nessa relação se funda igualmente a fraternidade humana: os cristãos reúnem-se no Cristo, de quem são os membros” (1993:39 e 42).
Dumont assinala que a igualdade e a fraternidade situam-se “[...] num plano que transcende o mundo do homem e das suas instituições sociais”. O valor absoluto do indivíduo, no Cristianismo, é, ao mesmo tempo, corolário do aviltamento, da desvalorização do mundo (1993:42 e 43). Este duplo aspecto do Cristianismo – valor supremo do indivíduo (fora-do-mundo) sustentado pela desvalorização do mundano – engloba, a partir do poder supremo de Deus, reconhecimento e obediência quanto às potências do mundo.
Dumont comenta este englobamento do seguinte modo: “Dois círculos concêntricos, representando o maior o individualismo-em-relação-com-Deus e o menor a aceitação das necessidades, deveres e obediências no mundo, ou seja, a inserção numa sociedade pagã, depois cristã, que nunca deixou de ser holista” (1993:44-5).
Temos, assim, a representação do universo antigo e medieval, interpretados pelo Cristianismo: um universo hierarquizado, ordenado, constituindo uma totalidade sob o poder de Deus. Mundo heterogêneo, organizado segundo as qualidades intrínsecas dos seres que determinam os lugares próprios de cada um. O elemento de igualdade, de homogeneização, que acompanhava a noção de indivíduos iguais perante Deus, permanece fora do mundo.
Dumont enfatiza que, nesse enlace, o valor supremo (igualdade perante Deus) abriga o elemento mundano antitético (mundo heterogêneo e hierarquizado). Segundo ele, por etapas, a vida mundana será contaminada pelo valor extramundano até que “[...] toda a heterogeneidade do mundo dissipa-se por completo”. Continuando, observa que “todo campo está unificado, o holismo terá desaparecido da representação, a vida no mundo será concebida como suscetível de harmonizar-se totalmente com o valor supremo, o indivíduo-fora-do-mundo se converterá no moderno indivíduo-no-mundo” (1993:45). Assim, o moderno surge concomitantemente à homogeneização e unificação do campo social, humano. Tratamos homogeneização, aqui, no sentido da redução e eliminação das diferenças qualitativas, extinção dos lugares hierárquicos que cada ser ocupava no espaço social.
Koyré aponta uma operação semelhante no que diz respeito ao campo da ciência. Ele responsabiliza a física cartesiana e galileana pela destruição do Cosmo grego, pensado em termos de um universo hierarquizado e finito. A ciência cartesiana promove a homogeneização do espaço físico semelhante à homogeneização que Dumont aponta no que tange ao espaço humano.
O universo da ciência inaugurado por Descartes e Galileu é homogêneo e finito. Nele tudo é matéria e movimento, a Terra não está no centro e, mais radicalmente, enfatiza Koyré, não há centro. (1992:46). Nesse sentido, o universo não está ordenado para o homem, nem há qualquer finalidade no seu movimento. Com o gesto cartesiano, Deus retira-se do mundo e da ciência, enquanto fim último e origem (Guenancia, 1999:68).
A ciência, portanto, homogeneíza o universo. Na modernidade, esta operação é concomitante à homogeneização do espaço humano, com a universalização da noção de indivíduo advinda do Cristianismo e consagrada na máxima da revolução francesa: todos os homens são iguais. Coelho dos Santos (2000) analisa as conseqüências dessa nova ordem surgida no rastro da ciência moderna e da entrada em cena dos movimentos igualitários: uma Lei que universaliza a todos garantindo igualdade. No universo moderno, a Lei não contempla exceção. Conforma-se, assim, o reconhecimento dos direitos do homem, que é a forma da Lei no Ocidente moderno (Coelho dos Santos, 2000:177).
Segundo Dumont, a Declaração de Direitos do Homem é o triunfo do indivíduo (1993:109), concebido enquanto ser livre, autônomo e igual. Para ele, há um paradoxo presente na noção de indivíduo. O homem moderno, no plano jurídico, foi convertido em indivíduo político (livre, autônomo e igual), mas permanece um ser social (precisa associar-se, relacionar-se com o outro). Trata-se, justamente, de como combinar individualismo e autoridade, em conciliar igualdade e a existência necessária de diferenças permanentes de poder, de condição na sociedade e no Estado (1993:93).
No artigo “De que desejo do Outro a angústia é o sinal?”, Coelho dos Santos trata este paradoxo a partir das modificações das relações de poder operadas na modernidade. Antes, o poder era praticado pelo monarca encarnado no rei, que exercia a coerção externa sobre os súditos para inibir as intenções criminosas. Com a modernidade, a nova liberdade jurídica dos indivíduos “[...] tem como correlato a entrada em funcionamento de novos poderes que, pela disciplina, adestram o corpo para exercê-la”. A autora aponta que o poder torna-se uma instância invisível, interiorizando-se e aprofundando a sujeição à consciência moral. Ela associa essa condição ao mito freudiano do parricídio: “o pai morto torna-se mais poderoso do que vivo” (2000:177).
Na passagem do poder exercido por uma coerção externa àquele exercido a partir da coerção interna extraímos a principal conseqüência da Lei: sua propriedade de nos fazer objeto: há um olhar que sempre nos vê. Lacan retoma esse paradoxo nos Seminários 7 e 17 e em seu artigo “Kant com Sade”, ao desenvolver a tese de um laço de estrutura entre o direito científico à liberdade e à igualdade e sua face menos evidente, ou seja, a extração da mais-valia ou a exploração do trabalho pelo capital (Coelho dos Santos, 2000:177 e 180).
Revisitando o artigo citado, a autora sublinha que, nele, Lacan põe a nu essa dupla face da Lei. Por um lado, temos a Lei fundada na razão, que universaliza e estabelece a equivalência de todos os homens (2000:180). Por essa via, não é possível a reivindicação da exceção. Esta Lei traduz-se numa ética que é kantiana. Trata-se, para Kant, do acesso a um bem com valor universal e que, portanto, não pode tomar o caminho da diversidade e da particularidade dos bens do prazer, ao apetite individual. Kant realiza uma operação de redução de todos os objetos particulares, objetos da patologia, do afeto, para desembocar em um imperativo: tu deves... (2000:180, 181).
O que Lacan evidencia é que essa renúncia a todo objeto particular envolve um pathos, um afeto, um objeto que comanda o sujeito. A verdade da Lei moral kantiana, que permanece elidida, é que quem deseja é o objeto (Coelho dos Santos, 2000:181). De acordo com Lacan, é a obra de Sade que evidencia o paradoxo da Lei, revelando o avesso da Lei moral: “tenho o direito de gozar do teu corpo. Pode me dizer qualquer um” (Lacan apud Coelho dos Santos, 2000:181).
No limite, a universalização – somos todos iguais – torna-se a máxima objetivação do sujeito. Trata-se da inserção do sujeito numa série, onde cada um vale igualmente, sem qualquer exceção que o distinga ou o especifique.
O que é retirado da cena social é, exatamente, essa condição de objeto que a Lei moderna institui. Aos olhos da modernidade, exibe-se o indivíduo livre, autônomo, senhor dos seus atos. O que fica elidido é que o sujeito da razão, o sujeito científico, tem uma face de objeto, de gozo. Assim, aquilo que não é livre nem igual, retirado do campo das representações sócias, efetua-se diretamente, silenciosamente: o objeto inconsciente – a face de gozo do sujeito da razão – comparece em ato. Este objeto recalcado, repudiado pelo sujeito moderno, comparece no real, como sintoma, como aquilo que não se inscreve na Lei segundo a qual somos todos iguais (Coelho dos Santos, 2000:183, 184).
A pesquisa de Dumont sobre o individualismo, por outra via, também se aproxima dessas conclusões. Para ele, o que sai de cena na modernidade é o valor, definido como uma noção ligada às sociedades hierárquicas. O valor “[...] designa algo diferente do ser, algo distinto da verdade científica, que é universal” (1993:246). O universo científico, cujo correlato é a lei da razão, exclui o valor. Segundo Dumont, na organização hierárquica, o valor de uma entidade “[...] está numa estreita relação de dependência em face da hierarquia de níveis de experiência onde essa entidade se situa”. Justamente, é essa percepção, afirma Dumont, que “[...] os modernos omitem, ignoram ou suprimem sem saber” (1993:257).
Com estas referências, podemos apontar o valor como o lugar que o sujeito ocupa na relação com o Outro, lugar que, na modernidade, é suprimido. Esta é a dimensão omitida, eclipsada do sujeito científico, sujeito da razão, sujeito cuja posição subjetiva advém da disjunção entre o eu penso e o eu sou, ou seja, da disjunção entre o saber e a verdade.
Esta é a posição que se apresenta no discurso da histérica: trata-se de um sujeito que nada sabe sobre a verdade que o causa, sobre a origem do seu desejo, que brota da sua posição de objeto do Outro. Como apontamos, esta é a verdade que a ciência foraclui: ela nada quer saber sobre a origem. Nas palavras de Lacan isso diria respeito ao campo da revelação, isto é, daquilo que o sujeito é para Deus, para o Outro. A revelação é o campo do gozo sobre o qual a ciência silencia.
A Lei moderna, científica, que homogeneíza, pe a Lei que produz e elide da cena social a face de objeto do sujeito moderno, ou seja, que é enquanto objeto que o sujeito goza. Isso que não pode existir nem no pensamento, nem na realidade social, mas que afeta o sujeito, vem do real, como um discurso estranho, e realiza-se numa “outra cena”: o inconsciente (Coelho dos Santos, 2000:185). O campo da psicanálise define-se, portanto, por acolher os efeitos do gozo sobre o sujeito que a Lei razão, a Lei científica, engendra.

Bibliografia

Coelho dos Santos (2000). “De que desejo do Outro a angústia é o sinal?". In: EBP-RJ. Revista
LATUSA, n.6. EBP-RJ, 2000.
Dumont, L. (1993). O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rocco:RJ.
Guenancia, Pierre (1991) Descartes. JZE:RJ.
Lacan, J. (1965). O Seminário, Livro 13: o objeto da psicanálise. Inédito.
Lacan, J. (1988). O Seminário, Livro 3: a psicose. JZE:RJ.
Lacan, J. (1990). O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. JZE:RJ.
Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. JZE:RJ.
Lacan, J. (1998). Escritos. JZE:RJ.
Laurent, Eric (1997) "Alienação e separação". In: Feldestein et al (Org). Para ler o Seminário 11 de
Lacan. JZE:RJ, 1997.
Rabinovich, Diana (1994). Sexualidad y significante. Manantial:Buenos Aires.
Zizek, Slavoj (1991). O mais sublime dos histéricos. JZE:RJ.