Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU

"PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU" (1921)
Andréa Martello
O processo de identificação será aprofundado em Psicologia das Massas e Análise do ego (Freud, 1921), onde a identificação vem responder por muitas das funções anteriormente atribuídas à pulsão de autoconservação, como por exemplo aquilo que se refere à escolha amorosa.
Há neste texto a reafirmação de uma identificação primordial estruturante que antecede todo o jogo objetal do complexo de Édipo (n.1): A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo.
Uma vez posta, seu caráter primitivo não se traduz como apenas uma etapa de fundação marcada por uma anterioridade a ser superada no tempo, antes representará um mecanismo originário de estruturação do ego e de sua relação com os objetos cuja possibilidade de reatualização sempre se encontra presente.
Ao desenvolvimento da teoria da identificação se faz concomitante a relevância que o complexo de Édipo alcançará na teoria freudiana. O complexo de Édipo passa a representar para a teoria freudiana o modo de constituição do desejo sexual pela via da identificação(n.2). Através deste complexo se encena o drama do narcisismo e se constituem as leis da escolha de objeto.
O ideal do ego em 1921 será pensado diante da dificuldade de desvincular o investimento objetal da identificação narcísica. O prenúncio deste problema é pensado por Freud em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) na medida em que há sempre uma possibilidade de reversão da libido do ego em libido objetal e vice-versa. Considerar o ego como o autêntico reservatório da libido3 significa implicá-lo na relação com os objetos.
A consideração das patologias já havia dado subsídios a Freud para se aproximar da condição real da relação do ego com os objetos. A abordagem da melancolia tomava a identificação como necessariamente remetida à fase oral primitiva. A situação identificatória era, portanto, examinada fundamentalmente em seu aspecto regressivo. O que temos agora é uma ampliação do processo identificatório e a tentativa de esclarecer seu mecanismo para além do caráter regressivo e das configurações patológicas.
Da melancolia, onde a identificação advinha em resposta à perda de um objeto, a questão se coloca nos seguintes termos: Será inteiramente certo que a identificação pressupõe que a catexia do objeto tenha sido abandonada? Não pode haver identificação enquanto o objeto é mantido? (n.4)
A análise do estado amoroso abre caminho para a abordagem da questão na medida em que apresenta, de forma semelhente à melancolia, um empobrecimento do ego que, no entanto, se realiza numa condição em que o objeto se mantém em jogo.
No estado amoroso o objeto é aquilo que personifica o ideal do ego, sendo portando colocado em seu lugar. Como consequência da supervalorização dada ao objeto, temos o empobrecimento do ego e de suas funções críticas.
Do exame desta condição - onde um objeto é investido de acordo com a sua adequação ao ideal - resta um pequeno passo para a formulação da estrutura dos grupos, formulação esta que é um dos objetivos do texto.
O intuito de Freud é demonstrar que a identificação e o ideal do ego não são apenas nuances da estrutura psíquica, mas que essas noções permitem, acima de tudo, lançar uma luz sobre o modo de constituição do laço social.
Temos então que os grupos se caracterizam por colocarem um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram(em) uns com os outros em seu ego (n.5). Deste modo, temos configurados dois tipos de laço emocional: o investimento no objeto e a identificação entre os pares que compartilham este investimento. Esta identificação apresenta uma característica pontual, se efetuando de forma economicamente vantajosa através de um traço.
Essa condição se apresenta de forma muito diferente da identificação maciça do ego com o objeto que encontramos na melancolia e nos sintomas neuróticos. O aspecto positivo do ideal do ego se dá na medida em que o investimento objetal, ocorrendo vinculado a este nível, permite uma parcialidade na identificação do ego, condição esta que lhe "protege" de muitos danos. Esta situação se resume numa certa distância que sustenta a tensão entre o que ocorre de um lado como identificação (ego) e de outro o investimento (ideal do ego).
O ideal do ego se funda como uma possibilidade da prorrogação narcísica, característica do ego, que se realiza a partir de um investimento de ideais externos, ideais de uma cultura, de uma moral, cuja marca de exterioridade permitirá a inversão de seu papel tornando-o recalcante através de exigências impostas ao ego. Deste modo, o exercício da função judicativa do ideal do ego é garantida pela promessa de continuação narcísica que representa. Essa característica faz do ideal do ego um legítimo representante do mundo externo internalizado pelo ego através da identificação primordial com a potente instância legiferante (ou paterna).
Assim, aquilo que em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (Freud, 1914) nos é apresentado apenas como um derivado do narcisismo, um narcisismo relançado na via objetal, adquire agora uma autonomia que lhe confere a autoridade de representante do mundo externo.
As questões quanto à realidade sempre foram expostas por Freud em seu aspecto problemático que excluiam resoluções simplistas. O recurso da realidade nunca fora instrumento confiável no tratamento das patologias, sendo elas próprias compreensíveis somente pela suspenção desses critérios de realidade. Este problema sempre permeou a discussão acerca da consciência, do ego, e como estamos vendo, também do ideal do ego.
Neste texto, o teste de realidade é atribuído ao ideal do ego (n.6). Tal atribuição não se faz sem ressalvas do modo como esta função pode vir a ser prejudicada, mostrando mesmo o limite de sua confiabilidade - características sempre colocadas por Freud ao abordar essa questão - e que resultam nas críticas a que um grupo humano pode ser submetido.
A forma mais cristalina que esclarece essa estrutura pode ser encontrada em grupos em que a figura do líder encarna o ideal em questão. Esse caso extremo possui todas as características examinadas por Freud no que se refere a grupos humanos coesos, remetendo-nos por sua vez, às características encontradas no sintoma por contágio, na hipnose e no estado amoroso, ou seja: certo grau de influência recíproca, especial condição de sugestionabilidade, inibição do funcionamento intelectual, elevação da afetividade.
A forma como a libido está inserida na dinâmica de constituição do ideal do ego, permitiu a explanação das condições do estado amoroso, cujas características de empobrecimento de qualquer iniciativa autônoma do ego se assemelham às condições encontradas na hipnose. Freud transporta essa mesma estrutura para a formação dos grupos acrescentando o contexto da identificação - que deixa de estar ligada apenas à patologias narcísicas - dando-lhe subsídios para pensar a organização dos grupos. Ou seja, ajuda a desvendar a natureza do laço social, tomando-o fundamentalmente a partir da libido na sofisticação de investimento que esta alcança com a esfera do ideal do ego. Assim, as relações amorosas constituem a essência da mente grupal (n.7). Com isso, Freud desfaz as teses cuja abordagem das características dos grupos se fazia a partir do pressuposto da sugestão, subjugando este conceito ao de libido.
A concepção do ideal do ego permite um primeiro exame da estrutura social, de onde se retira que o ideal moral da civilização é constituído com base no narcisismo. Ele provém da incapacidade de se renunciar ao modo de satisfação narcísica já obtida, e a transferência que então se efetua constitui a libido como o fundamento do laço social. Como consequência dessa primeira abordagem freudiana da constituição social encontramos a matriz da crítica que será lançada ao projeto civilizatório. Tal como na teoria do ego, a base libidinal do laço social confere um estatuto precário quanto à presença da realidade. Desse modo, não se sustenta uma idéia que conceba a moral como a conquista máxima do homem no discernimento do que é certo ou errado. A pulsão (tomada aqui como libido) é deste modo inserida no fundamento não apenas do psiquismo, mas, como não poderia deixar de ser, também no fundamento da organização social.
O esclarecimento dos mecanismos identificatórios a partir da perspectiva do ideal do ego, amplia o alcance da libido tornando-a um instrumento que permite pensar as bases da organização social. Encontraremos o alcance deste primeiro passo na análise do texto Mal-estar na civilização (1930), em que o laço social será pensado não apenas através das vicissitudes da libido, como também sob o aspecto radical da pulsão morte. Muitas vezes encontramos a estrutura referida do ideal do ego como semelhante à estrutura do superego. Deste modo, o superego seria considerado como o representante internalizado da estrutura social, cumprindo seu papel recalcante para as pulsões sexuais, sendo o conflito psíquico estruturado pela tensão no ego entre as exigências sociais e os desejos pulsionais.
Devemos considerar que o conceito de superego não nos será apresentado apenas como um desvio funcional da estrutura que aqui vemos exposta como ideal do ego. Não se tratará apenas de uma violência maior deste representante da ordem moral. As razões da violência superegóica serão designadas a partir de um aprofundamento cada vez maior na obra freudiana do conceito de pulsão de morte, que não encontramos presente no exame do ideal do ego de Psicologia das massas e análise do ego (1921). A pulsão de morte apresentar-se-á exigindo uma nova consideração dos pontos abordados, induzindo, com isso, uma nova tópica.
Notas 1 FREUD, S., Psicologia de Grupo e Análise do ego (1921), ESB, vol. XVIII, p. 133.
2 O processo de identificação no complexo de Édipo será mais acentuado a partir da postulação da fase fálica que caracteriza para ambos os sexos o reconhecimento de um único orgão sexual, o falo.
3 FREUD, S., Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), p. 92.
4 FREUD, S., (1921), p. 144.
5 FREUD, S., (1921), p. 147.
6 FREUD,S, (1921), p. 145.
7 FREUD, S., (1921), p. 117.

Bibliografia
FREUD, S., Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969.
_____Psicologia de Grupo e Análise do ego (1921), vol. XVIII.
_____Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), vol. XIV.
_____Mal-estar na civilização (1930), vol. XXI.