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Laboratório de Ensino

A NOÇÃO DE OBSTÁCULO EPISTEMOLÓGICO

Rosa Guedes Lopes

A noção de obstáculo epistemológico é um dos mais importantes eixos, se não o principal, do pensamento filosófico de Gaston Bachelard. Por meio desta noção, ele trata do caráter insistente e generalizado de certas resistências ao conhecimento científico que não ficaram restritas ao passado, mas se presentificam sempre como impasse ao progresso do pensamento humano.

Bachelard parte da tese de que o progresso das ciências tem como condição princeps a colocação dos problemas científicos sob a forma de obstáculos que incidem sob o próprio ato de conhecer. Por uma espécie de imperiosidade funcional surgem as lentidões e as dificuldades que devem obrigar o espírito científico ao questionamento sobre as causas que levam à estagnação, à regressão e até mesmo à inércia.

Obstáculo epistemológico foi o nome que Bachelard utilizou para batizar tudo que se incrusta no conhecimento não questionado, todos os pontos onde o progresso científico estanca, regride ou goza inerte. A importância de detectá-los sustenta sua tese de que o ato de conhecer se dá sempre contra um conhecimento anterior, destruindo o que foi mal estabelecido e superando o que, no próprio espírito (nota), se forma como obstáculo à espiritualização.

Bachelard estabelece que o espírito científico é fruto de uma evolução: da tarefa primordial de tornar geométrica a representação até o ponto onde ocorre a abstração completa, uma vez que a geometrização primeira pode estar fundada no ingênuo realismo das propriedades espaciais. O caminho da abstração procede da necessidade do espírito trabalhar sob o espaço, no nível em que se destacam as relações essenciais que sustentam espaço e fenômenos, isto é, as leis. Levar o pensamento científico a construções mais metafóricas que reais, ou seja, levá-lo a abstrair, é o procedimento normal e fecundo do espírito científico.

No entanto, o processo de abstração não se dá de modo uniforme. Se uma cultura quer ser científica, ela deve começar por expor-se a uma catarse intelectual e afetiva. A razão disso é que toda experiência que se pretende concreta e real, natural e imediata tem sempre o caráter de obstáculo. Para sustentar tal afirmativa, Bachelard lança mão de duas teses. Na primeira, afirma a existência de forças psíquicas que atuam no conhecimento científico. Contra essas forças, adverte que é preciso aplicar uma psicanálise, ou seja, é preciso despir o espírito das formas imaginárias às quais se apega e que o impelem a um falso rigor ou a uma unificação fácil. É preciso que se passe da contemplação do mesmo à busca do outro e à dialetização da experiência (1938, p.20) e, ainda, que se encontre a ação dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico e científico. São eles que fazem a permanência de certos princípios de explicação. Segundo Bachelard, a psicanálise deve fazer o sábio confessar seus motivos inconfessáveis (1937, 90-1).

A segunda tese é a de que não se obtém conhecimento senão como resposta a uma pergunta formulada sob a forma de um problema relativo a um saber. A capacidade de destacar, sob a forma de um questionamento particular, o que faz obstáculo ao progresso do pensamento é o que permite que o saber científico seja reconstruído a cada momento. As demonstrações epistemológicas devem ser sempre desenvolvidas no âmbito dos problemas particulares, isto é, da descoberta e da problematização do que faz impasse à evolução de um determinado saber, sem preocupação com a ordem histórica em que esses problemas surgiram. Trata-se de privilegiar o que se coloca como obstáculo e não a cronologia.

O modo como Bachelard define e privilegia o que comparece como impasse não tem por objetivo realçar a pura oposição que incide contra um saber. Pelo contrário, a ênfase no obstáculo confere positividade à noção de obstáculo porque, ao destacá-lo, a conseqüência imediata é a exigência de que novas formulações e soluções possam ser alcançadas. Com isso, torna-se possível impulsionar a ciência em direção a novas conquistas, pois o modo como o problema é destacado já organiza o caminho da pesquisa vindoura. "Detectar os obstáculos epistemológicos é um passo para fundamentar os rudimentos da psicanálise da razão" (1938, p.24).

Encontrar os obstáculos requer uma psicanálise das "felicidades do espírito científico". Ele precisa ser arrancado "do narcisismo que a evidencia primeira proporciona, dar-lhe outra segurança que não a posse, outras forças de convicção que não o calor e o entusiasmo; em suma, provas que não seriam em absoluto chamas" diante das quais o espírito se deixaria ficar num êxtase hipnótico (1937, p.6).

A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no desenvolvimento histórico do pensamento científico. No entanto, o epistemólogo não deve se debruçar sobre todos os documentos que um historiador é capaz de reunir. Sua escolha é seletiva e muito precisa. Deve tomar os fatos como se fossem idéias que se inserem num sistema de pensamento. Portanto, nunca tomá-las isoladamente. Detectar a má interpretação de um fato numa determinada época é já detectar o que ali se interpôs como obstáculo, como contra-pensamento àquele sistema. Para Bachelard, todo conceito científico se liga a um anticonceito (1938, p.89). Ao captar os conceitos científicos em sínteses psicológicas progressivas, estabelecendo, a respeito de cada noção, uma escala de conceitos, o epistemólogo mostra como um conceito deu origem a outro, como está relacionado a outro. Desse modo, terá alguma probabilidade de avaliar a eficácia epistemológica porque o pensamento científico surge, então, como dificuldade vencida, como obstáculo superado (Id., p.22-23).

Os principais obstáculos epistemológicos enumerados por Bachelard (1938) são os seguintes:

• A primeira experiência ou observação primeira: É repleta de imagens e sempre colocada antes e acima de toda crítica. Descrevê-la já é fator de arrebatamento. O espírito científico deve formar-se contra a Natureza, contra o encantamento, o colorido e o corriqueiro. A Natureza só pode ser verdadeiramente compreendida quando lhe fazemos resistência. É preciso considerar que entre a observação arrebatadora e a experimentação não há continuidade, mas ruptura. O obstáculo aqui surge com o apagamento da ruptura, quando ela se torna unidade, continuidade, desenvolvimento.

• Generalização: Acontece no instante seguinte às primeiras observações, quando já não há mais nada a observar. Os olhos deslumbrados fecham-se, então, num sistema que, por ser o primeiro, é sempre falso. Para Bachelard, a generalização apressada e fácil proporciona um perigoso prazer intelectual que leva o pensamento à imobilidade. O pensamento científico se engana quando segue duas tendências contrárias: a atração pelo particular e a atração pelo universal, que se caracterizam um, pelo conhecimento em compreensão e outro, pelo conhecimento em extensão. A saída desse impasse será encontrada com a criação de uma nova palavra que designe essa atividade do pensamento empírico inventivo. Para Bachelard, a fecundidade de um conceito científico é proporcional ao seu poder de deformação , que implica a necessidade de incorporar as condições de aplicação à própria essência da teoria.

• Primeiros conhecimentos gerais: São constituídos pelas interdições sociais. A experiência natural só virá depois para acrescentar prova material à lei. Assim, a queimadura confirma as interdições sociais, valorizando, aos olhos da criança, a inteligência paterna. O primeiro conhecimento geral sobre o fogo, por exemplo - "não se pode tocá-lo" -, é alcançado por meio da interdição social. No entanto, para que alguém o transforme num conhecimento pessoal, é preciso a desobediência engenhosa movida pelo desejo de saber, saber tanto ou mais que nossos pais e mestres (1937).

• Obstáculo verbal: Trata-se de uma falsa justificação obtida com a ajuda de uma palavra explicativa; extensão abusiva das imagens visuais; estranha inversão que pretende desenvolver o pensamento ao analisar um conceito, no lugar de inserir um conceito particular numa síntese racional.

• Substancialização: Um dos mais difíceis obstáculos a superar porque se apóia numa filosofia fácil. É a explicação monótona das propriedades por meio da substância; necessidade de explicação minuciosa, sintoma dos espíritos não científicos que pretendem nada negligenciar e dar conta de todos os aspectos da experiência concreta. É um obstáculo constituído por intuições dispersas e opostas, aproveitando-se dos artifícios da linguagem. Condensa num só objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos. Seu uso constrói mitos do tipo: o que é oculto é fechado, mito do interior , do íntimo , da continência , da concentração substancial , da valorização do comprimido , da substância virginal , etc.

• Conhecimento unitário e pragmático: A unidade é um princípio que sempre foi desejado para o espírito pré-científico que fazia com que as diversas atividades naturais se tornassem manifestações de uma só Natureza - por exemplo: o que é verdadeiro para o grande deve ser igualmente verdadeiro para o pequeno. As analogias não ajudam nenhuma pesquisa. Pelo contrário, provocam fugas de idéias, impedem a curiosidade. Trata-se da crença numa unidade harmônica do mundo que leva ao estabelecimento de uma sobredeterminação bem característica da mentalidade pré-científica. A ciência contemporânea, ao contrário, se instrui sobre sistemas isolados, sobre unidades parcelares e tem como princípio epistemológico a afirmação de que as quantidades desprezíveis devem ser desprezadas e não unificadas. O que conta são as determinações puramente plausíveis e nunca provadas.

Todo pragmatismo, por sua vez, acaba exagerando pelo simples fato de ser um pensamento mutilado em função da indução utilitária. No uso pragmático apenas a utilidade é clara e capaz de explicar; nela se encontra a função real do verdadeiro. No entanto, esse modo utilitário de ver é uma aberração porque as explicações finalistas são sempre perigosas.

• Realismo: Pode ser considerado a única filosofia inata, uma vez que para o realista a substância de um objeto é aceita como um bem pessoal. Para Bachelard, todo realista é um avarento e todo avarento é um realista. Trata-se do sentimento de ter e do complexo do pequeno lucro. Não perder nada é, de saída, uma prescrição normativa que se torna uma descrição: passa do normativo para o positivo. O principal axioma do realismo não provado - nada se perde, nada se cria - é uma afirmação de avarento.

• Obstáculo animista: A natureza, em todos os seus fenômenos, é envolvida numa teoria geral do crescimento e da vida. A crença no caráter universal da vida pode ocasionar exageros incríveis quando verificada em casos concretos. Vida torna-se uma palavra mágica, valorizada. Qualquer outro princípio esmaece quando se pode invocar um princípio vital.

• O mito da digestão: A digestão é a origem do mais forte realismo, da mais abrupta avareza. Bachelard destaca aqui a função de posse como objeto de todo um sistema de valorização. O alimento sólido e consistente torna-se mais prezado. O beber não significa nada diante do comer. A fome é, portanto, a necessidade natural de possuir o alimento sólido, durável, integrável, assimilável, verdadeira reserva de força e poder.

• O mito da geração: o mito da digestão esmaece quando comparado ao da geração: o ter e o ser nada são diante do devir. É preciso querer para tornar-se.

• A influência da libido no conhecimento objetivo: Pode ser observada nos pormenores da pesquisa objetiva disfarçada sob modalidades metafóricas. Uma das mais utilizadas é a idéia de germe e semente . Bachelard fornece exemplos de operações alquímicas que foram descritas como cópulas cuidadosamente observadas. A sexualização, que está sempre ativa no inconsciente, é capaz de distinguir num mesmo metal ou num corpo amorfo como o ouro, senão órgãos sexuais, pelo menos forças sexuais diferentes. Mas as imagens nem sempre são tão explícitas. Muitas vezes contentam-se em tratar todo interior como ventre . Outras vezes, surgem sob a forma de uma lista imensa de nomes para uma mesma matéria ou objeto. Isso basta para mostrar que o objeto é uma ilusão. Só um amante poderia dar tantos nomes ao ser amado e colocar tanto narcisismo em suas juras de amor! Nesse tipo de obstáculo, o pensamento se desenvolve mais pelo eixo do eu-você do que pelo do eu-isso. A pessoa é buscada em detrimento da objetividade. Para Bachelard não passa de uma resposta sintomática o tratamento sexualizado de uma reação química na qual dois corpos são diferenciados pelo fato de um ser descrito como ativo e outro, como passivo. Variações antitéticas do tipo o bom e o mau, o puro e o impuro, o suave e o podre, também são tomadas como sintomáticas. Para esses casos, só uma psicanálise completa do inconsciente científico poderia examinar a vontade de poder que a libido exerce sobre o espírito.

• O quantitativo: O conhecimento objetivo imediato já é falso por ser qualitativo uma vez que marca o objeto com impressões subjetivas e certezas prematuras. Por isso, pensa-se que o conhecimento quantitativo escaparia a esses perigos. Mas grandeza não é sinônimo de objetividade. Os obstáculos epistemológicos andam aos pares. Por isso, no reino da quantidade, a um matematismo demasiadamente vago se opõe a atração por outro, demasiado preciso; ao excesso de precisão no reino da quantidade corresponde outro, no da qualidade. O privilégio do quantitativo é fruto da crença maior do cientista na medida do que na realidade do objeto. Ele deixa escapar as relações do objeto em nome do esgotamento de sua determinação quantitativa. A mensuração depende de uma reflexão adequada e não o contrário, depende de um instrumental construído especificamente para o que se quer avaliar. A física moderna não postula o sobredeterminismo ou a correlação universal característicos do período pré-científico. Para se passar do espírito filosófico ao científico é preciso que se aceite uma redução do alcance do determinismo. Na cultura científica tudo não é possível , há o direito de desprezar . O principio de desprezabilidade está na base do cálculo diferencial. É preciso que se desenvolva o hábito do pensamento discursivo, pois a intuição nunca deve ser um dado, mas apenas uma ilustração.

Para que o espírito científico se constitua como um conjunto de erros retificados é preciso que ele vença os inúmeros obstáculos epistemológicos. Eis o ponto de vista de Bachelard: "Psicologicamente, não há verdade sem erro retificado. A psicologia da atitude objetiva é a história de nossos erros pessoais" (1938, p.293).

A epistemologia requer alguns postulados:

• A marcha para o objeto não é inicialmente objetiva. Ela depende de uma verdadeira aceitação da ruptura existente entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico. Não há operação subjetiva sem a consciência de um erro íntimo. Portanto, as lições de objetividade devem começar por uma confissão de falhas intelectuais. Mas essa catarse prévia não pode ser feita por um sujeito sozinho. Seria tão impossível quanto psicanalisar a si mesmo.

• Toda doutrina da objetividade precisa sujeitar o conhecimento do objeto ao controle de outrem. É preciso escolher o olho do outro para se ver a forma abstrata do fenômeno objetivo. Esse é o único circuito que permite dar alguma garantia de que foi feita uma completa abstração de nossas idéias primeiras. O alcance do pensamento abstrato implica uma perda importante: a de uma "visão de mundo".

• Quem é ensinado deve ensinar. Esse é o princípio pedagógico fundamental da atitude objetiva que objetiva formar também o dinamismo e a autocrítica, propiciando a experiência psicológica do erro humano. É preciso um exercício social da convicção racional para que a razão profunda não se assemelhe a um rancor, pois a convicção que não se confronta com um ensino age na alma como um amor desprezado.
Ao propor uma psicanálise do espírito científico, Bachelard objetiva que o passado intelectual deva ser conhecido como tal, como passado. O antigo deve ser pensado em função do novo.

"Na obra da ciência só se pode amar o que se destrói, pode-se continuar o passado negando-o, pode-se venerar o mestre contradizendo-o" (1938, p.309).


NOTA

De acordo com o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, podemos entender que o termo espírito é empregado aqui sob dois aspectos: 1) num sentido impessoal, como realidade pensante em geral, o sujeito da representação com as suas leis e a sua própria atividade, enquanto oposta ao objeto da representação. Na filosofia contemporânea, este sentido é o mais geral e, segundo Lalande, compreende várias acepções: o Espírito é oposto à Matéria (a antítese é essencialmente a do pensamento e do objeto do pensamento, da unidade intelectual e da multiplicidade dos elementos que ela sintetiza); o Espírito é oposto à Natureza (a antítese é a do produtor e da produção, da libertação e da necessidade, da reflexão e da atividade espontânea); o Espírito é oposto à Carne (enquanto esta representa o conjunto dos instintos da vida animal); 2) num sentido mais particular, opondo-se à sensibilidade, torna-se sinônimo de inteligência (Lalande, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. SP:Martins Fontes, 1993, p.327-328).
Bachelard define o espírito científico presente em todas as ciências rigorosas como aquele formado por um pensamento inquieto, que desconfia das identidades mais ou menos aparentes. A crítica é, necessariamente, elemento integrante do espírito científico. Precisar, retificar e diversificar são tipos de pensamento dinâmico, que fogem da certeza e da unidade e que encontram nos sistemas homogêneos mais obstáculos do que estímulo. Resumindo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber não pelo sentimento de posse que a aquisição de um saber novo pode proporcionar narcisicamente, mas para, imediatamente, colocá-lo a serviço de um melhor trabalho de questionamento, de formulação de problemas. O que funda um espírito científico é a crença de que todo conhecimento é resposta a uma questão. Portanto, se a questão não for formulada, torna-se impossível obter qualquer conhecimento. Nada ocorre por si mesmo. Nada é dado, evidente ou gratuito. Tudo é construído. (Bachelard, G. (1938). A formação do espírito científico. RJ:Contraponto, 2003);


BIBLIOGRAFIA

Bachelard, Gaston (1928). Ensaio sobre o conhecimento aproximado. RJ:Contraponto, 2004, 316p.
_________. (1934). O novo espírito científico. RJ:Tempo Brasileiro, 2000, 152p.
_________. (1937). A psicanálise do fogo. SP:Martins Fontes, 1999, 172p.
_________. (1938). A formação do espírito científico. RJ:Contraponto, 2003, 316p.
_________. (1940). A filosofia do não - filosofia do novo espírito científico. Lisboa:Ed. Presença,
      1987, 140p.
_________. (1977). Epistemologia . RJ:JZE.