Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

OBJETO DA PULSÃO

Laboratório de Ensino

OBJETO DA PULSÃO
A pulsão e seu objeto: a função do objeto perdido
Segmento da Tese de doutorado de Maria Cristina da Cunha Antunes:
"O discurso do analista e o campo da pulsão: da falta de gozo ao gozo com a falta" - UFRJ/PPGTP/RJ/2002

A noção de objeto perdido está no centro da questão do gozo. Este é apreendido na dimensão da perda, ou seja, é porque há uma perda que há um gozo a repetir, uma diferença a recuperar, que é o mais-de-gozar (LACAN, 1992, p.48).
A referência ao objeto perdido é antiga em Lacan e permanece como um eixo fundamental na sua obra. Desde o Seminário 2, ele articula repetição e a perda do objeto a partir da experiência freudiana. Segundo Lacan, Freud apresenta, pela via da repetição, uma dimensão da experiência humana que implica a conquista, a estruturação do mundo num esforço de trabalho.
“Na medida em que o que se apresenta a ele só coincide parcialmente com aquilo que lhe proporcionou satisfação, o sujeito se põe em busca e repete indefinidamente sua procura até reencontrar este objeto. O objeto se encontra e se estrutura pela via da repetição – reencontrar o objeto, repetir o objeto. Só que nunca é o mesmo objeto que o sujeito encontra” (19 92 , p.131 -/132).
No Seminário 7, o tema do objeto perdido retorna sob a noção de das ding (1991, p.69). Das ding é o objeto que orienta uma busca por algo que não pode ser reencontrado. Sob a égide do Édipo , Lacan propõe que a função de das ding articula-se à Lei da proibição do incesto. Das ding é o objeto proibido – representado pela mãe – que deve ser mantido à distância, ausente para que o desejo se constitua (LACAN, 1991, p.86/87).
Temos como conseqüência dessa concepção do objeto perdido, articulado à Lei do Édipo, para a noção de gozo que : o gozo é impossível para o sujeito desejante. Aceder a esse gozo – forçar o acesso à Coisa – coloca o sujeito na via da transgressão. O extremo do prazer – o gozo – é definido fundamentalmente, neste seminário, como dor, para além do princípio do prazer (1991, p. 102).
No Seminário 11, Lacan identifica o objeto perdido ao objeto a. Há um passo a dar do Seminário 7 ao Seminário 11. Das ding, no Seminário 7, tributária do Édipo e da Lei da proibição do incesto, é bastante substancializada: a mãe ocupa o lugar da Coisa como objeto proibido. No Seminário 11, verificamos um esvaziamento, uma dessubstancialização do objeto perdido e a sua formalização sob a noção de objeto a. O objeto perdido – tomado como objeto a – é uma função lógica (MILLER, 1995 , p. 18).
No Seminário11, Lacan apresenta a equivalência entre o objeto a, objeto causa do desejo e objeto perdido (1990, p.160), diferenciando-o dos objetos de satisfação que, retomando Freud, seriam apenas um meio pelo qual a pulsão se satisfaz.
E com que se satisfaz a pulsão? Ela se satisfaz no circuito, no contorno do objeto a (LACAN, 1990, p.160). Lacan precisa: o objeto a não pode ser confundido com aquilo sobre o que a pulsão se refecha. O objeto a é a presença de um cavo, de um vazio, só conhecido na forma de objeto perdido (1990, p.170).
A este respeito, Miller ressalta que, a rigor, o objeto a não é um objeto no sentido do termo, isto é, não é uma substância (1995, p. :19). Aliás, ele aponta que Lacan realiza um forçamento ao chamar o objeto a de objeto. Nesse sentido, o objeto a é uma função lógica que designa uma elisão, uma perda, um fracasso.
É essa função que sustenta o movimento pulsional. Com estes elementos, pode-se compreender melhor a repetição, definida por Lacan, como repetição de um fracasso, como encontro faltoso. Freud indica esse fracasso no "Além do princípio do prazer" (1920) como a diferença de quantidade entre a satisfação exigida e a satisfação realmente conseguida e que esta diferença é o fator impulsionador. Esta diferença de quantidade (diferença de gozo) é o que opera, impulsiona, na medida em que é extraída como uma certa perda. Nesse sentido, o objeto a apresenta-se como essa diferença.
A repetição do circuito pulsional é, portanto, logicamente, a repetição desse fracasso. É o que leva Lacan a afirmar que a pulsão se satisfaz no circuito, no contorno do objeto a (1990, p.160), ou seja, o gozo pulsional é gozar com a diferença, com a subtração, com um “não é isso” ( LACAN, apud COELHO DOS SANTOS, 2001, p.257).
Miller critica a expressão semblante de objeto (1995, p. 18) que faria crer que temos o objeto a e os seus semblantes. Como o objeto a não é uma coisa, o que nós temos como objetos são sempre semblantes. A advertência de Miller com relação a se dividir o objeto a e seus semblantes merece ser enfatizada. O objeto a – como função do objeto perdido – é a decantação de uma perda, de um fracasso na repetição do circuito das pulsões. No encontro com o objeto da satisfação, abre-se uma falha, uma diferença entre a satisfação que se busca e a que se alcança. Essa é recuperada pela via da construção fantasmática, encarnada num objeto parcial. A fantasia fundamental seria a identificação do falante à posição de objeto parcial do gozo do Outro (LACAN, 1990, p.175).
Neste plano, apresenta-se o que Freud nomeou como pulsões parciais. Podemos articular as pulsões parciais de Freud à noção de fantasia em Lacan. No Seminário 11, Lacan assinala que as pulsões parciais dizem respeito a se fazer chupar, se fazer cagar, se fazer ver etc. (1990, p.184). O fundamental – o gozo da pulsão – reside na voz reflexiva do verbo – se fazer – que indica o gozo do sujeito na posição de objeto do Outro. A fixação desse enunciado pulsional é a fantasia fundamental, a identificação primordial do sujeito na posição de objeto a – aqui apresentado como objeto parcial – do gozo do Outro.
Esta questão é retomada por Lacan no Seminário 17 com a noção de mais- de- gozar definida, neste seminário, como o gozar do Outro (1992, p.50). Trata-se do comparecimento de um gozo que se apresenta em suplência à interdição do gozo fálico (1992, p.70). Esta suplência diz respeito a que o sujeito goza como objeto que completa, faz o Outro gozar. Daí a formulação de Lacan: o sujeito recebe o seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro (1992, p.62).
A suplência é a estratégia encontrada pelo sujeito para dar corpo, fixar essa diferença que escapa. Identificado a um objeto parcial, ele encarna essa diferença a mais que, acrescentada ao Outro, o fa ria gozar. A noção de suplência encaminha-nos para o Seminário 20 (19 85 , p.81). Neste seminário, o Outro é redefinido como o outro sexo, o parceiro, que é enlaçado pelo sintoma do sujeito. Lacan retoma o objeto a como a rata, o fiasco, a mancada, o fracasso ( Ibid , p.80). Ele assinala que este – o objeto a – é sustentado pelo axioma não há relação sexual ( Ibid , p.79).
Não há relação sexual é o axioma extraído da experiência psicanalítica, que diz respeito ao campo do gozo. O aparecimento do gozo revela a inexistência de um objeto complementar à pulsão, ou melhor, evidencia que o objeto da pulsão é vazio. Portanto, a relação sexual só é possível pela mediação, pela criação de suplências que aparelham o gozo e enlaçam o outro numa relação. É a função que Lacan daria ao sintoma nas suas últimas formulações (MILLE R , 1998, p.103).
O axioma não há relação sexual diz respeito à condição de privação do objeto vivida pelo falante. A ação do significante introduz no campo do gozo uma perda. Esta perda é o que podemos chamar, a partir do Seminário 17, de castração como um efeito da linguagem: a privação do objeto que serviria de referente à sexualidade para o falante. (COELHO DOS SANTOS, 2001, p.136).
A esta altura, estamos bem distantes da formulação do objeto perdido como das ding, articulado à Lei como proibição, que coloca o gozo na trilha do gozo impossível ou transgressor. Das ding, enquanto objeto perdido – subsumido ao mito do Édipo – é o objeto incestuoso.
A passagem de das ding ao objeto a para designar a função do objeto perdido é correlata da separação que Lacan realiza, no Seminário 17, entre o mito (o Édipo) e a estrutura ( a linguagem ). A partir deste seminário, o objeto perdido – o objeto a – é a indicação de uma perda realizada pelo efeito da ação do significante sobre o falante. Assim, a “...a linguagem, mesmo a do mestre, não pode ser outra coisa senão demanda, demanda que fracassa. Não é de seu êxito, é de sua repetição que se engendra algo que é de uma outra dimensão, que chamei de perda – a perda de onde o mais-de-gozar toma corpo” (LACAN , 1992, p.117).
O objeto a – como o objeto da pulsão – é uma função lógica e não se confunde com o objeto incestuoso, proibido do mito do Édipo. O objeto da pulsão define-se negativamente em relação aos objetos que existem e se apresentam na experiência pessoal e da cultura (COELHO DOS SANTOS, 2001, p.133). Nesse sentido, ele é diferença, é sempre “não é isso”.
O campo da pulsão define-se, portanto, pela operatividade desse objeto, pelo engendramento da repetição que ele promove, apontando para um gozo com o fracasso, o insucesso (COELHO DOS SANTOS, 2001, p.314).
Estabelecidas estas articulações, podemos afirmar que o campo das pulsões – explicitadas por Freud nas pulsões parciais – está subsumido ao campo do sexual inventado pelo dispositivo de sexualidade, descoberto por Foucault. O dispositivo de sexualidade, são estratégias de mais-de-gozar, criadas na modernidade, sob a égide da ciência. São criações, invenções de objetos e de saberes para se gozar dos corpos. O dispositivo de sexualidade recobre o que Freud descobriu como as modalidades de gozo das pulsões parciais.
Ora, as pulsões parciais, que articulamos à fantasia, são uma tentativa de suplência, de recobrimento, da falha, do hiato do encontro com o Outro. Por outro lado, a nossa proposta é que o campo pulsional não se reduz a estas estratégias de mais-de-gozar, reconhecidas por Foucault no dispositvo de sexualidade.
A noção de objeto a como uma função lógica que se apresenta no circuito pulsional como diferença, negatividade, como um “não é isso”, obriga-nos a postular a idéia de uma decantação, um resto, um gozo pulsional que não se confunde com as pulsões parciais. Trabalhamos, aqui, com o apoio de Coelho dos Santos (2001, p. 242) que chama a atenção que o gozo, em Lacan, é o gozo com a falta e o mais-de-gozar é o lucro, a mais –valia obtida a partir dessa falta, dessa perda. O mais-de-gozar é evidenciado, em Freud, pelas pulsões parciais, ou seja, pela identificação do sujeito à posição de objeto do Outro. O c ircuito pulsional – que é o efeito da ação do significante sobre o falante – produz, portanto, uma falha, uma fratura. Em nossa interpretação, este é o ponto de onde o discurso do analista opera: o objeto a –como objeto perdido – na função de agente.

Bibliografia
COELHO DOS SANTOS, Tânia. Quem precisa de análise hoje? RJ, Bertrand Brasil ed., 2001.
FREUD, Sigmund Além do princípio do prazer. In Obras Completas . Vol. XVIII, Rio de Janeiro, Imago ed,., 1980.
FOUCAULT, Michel . História da sexualidade I – a vontade de saber. Lisboa, Relógio d’água ed., 1994.
______ ______. História da sexualidade II – o uso dos prazeres. RJ, Graal ed., 1998.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: o eu na teoria e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, 3a ed. Jorge Zahar ed., 1992.
_____________. O Seminário: livro 7: A ética da psicanálise . Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1991.
_____________. O seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ, Jorge Zahar ed., 1990.
_____________. O Seminário: livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1992.
_____________. O seminário: livro 20. Mai,s ainda. 2a ed., RJ, Jorge Zahar ed., 1985. MILLER, Jacques-Alain. A imagem rainha. In: Opção Lacaniana n. 14. Rio de Janeiro, Nov.. 1995.
_____________. Los signos del gozo. Buenos Aires, Paidós ed., 1998.