O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930)
Andréa Martello
Já percorremos, junto com Freud, um caminho que pressupõe a idéia de inexistência da pulsão de morte
de forma independente da libido (ver "O ego e o id"). Tal idéia permite averiguar a real proporção
do masoquismo como condição essencial do ego e os impasses que isso traz para a clínica analítica.
Foi necessário a Freud abordar esse aspecto também a partir do ponto de vista do projeto
civilizatório. Isso nos induz a pensar num outro nível de interdição, que mesmo fundada na primitiva
interdição paterna, não possuiria a mesma configuração. A ira paterna é substituída pelo mandamento
"amar ao próximo como a ti mesmo".
É sobre esse mandamento que se funda a civilização, e a força de seu imperativo está na proporção
exata da força de seu não cumprimento. É necessário esse mandamento cego, de caráter reativo, já que
o maior empecilho à civilização é a agressão como disposição instintiva original e auto-subsistente
(Freud, 1930, p. 144).
Em Mal-estar na civilização (1930) Freud muda ligeiramente sua perspectiva e passa a dar maior
atenção ao fator externo da desfusão pulsional. Em O problema econômico do masoquismo (1924) a
externalização da pulsão de morte era concebida de forma acoplada à libido, e desempenhava a
importante tarefa de exercer o domínio do objeto sexual requerido. A externalização era pensada
apenas no exercício sádico da pulsão que em maior ou menor grau apresentava uma dose de satisfação
sexual.
No entanto, em 1930 a pulsão de morte nos é apresentada de outra forma que nem mesmo pode ser
incluída numa lógica do ódio, será antes pensada em termos de uma agressividade onipresente e
silenciosa nas relações humanas: A afirmação da existência de um instinto de morte ou de destruição
deparou-se com resistências, inclusive em círculos analíticos; estou ciente de que existe, antes,
uma inclinação frequente a atribuir o que é perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de
sua própria natureza (FREUD, 1930, p.142).
Seu exame propiciará um esclarecimento acerca da consciência moral e um aprofundamento sobre o
sentimento inconsciente de culpa, vinculando-o de forma estrutural ao sintoma.
A questão do superego será então abordada pelo viés da agressividade que originalmente é tanto
interna como externa, dirigida para fora. O que é acrescentado de forma mais clara é o componente
agressivo do complexo de Édipo, em que o fortalecimento do superego não advém apenas da renúncia do
investimento libidinal - que no masoquismo encontra algum tipo de satisfação concomitante à
encarnação do superego na figura paterna - mas também das consequências da renúncia agressiva.
O critério de juízo próprio ao ego é circunscrito por Freud como sendo o de prazer/desprazer
(acoplado à decisão incluir/excluir) seguido da decisão quanto ao atributo de existência na
realidade de uma representação do psiquismo. Temos então que não há de saída um juízo de atribuição
sobre o bem ou o mal. No nível da pulsão e na questão masoquista isto é indecidível, mas em relação
ao próximo um critério de decisão se faz pesar: a profunda dependência de seu amor como antídoto
contra sua violência.
É deste modo que Freud subverte por completo a questão da consciência moral. Seu papel determinante
no recalque, a força de sua coerção, não é uma dado espontâneo para o psiquismo, nem algo que uma
pulsão de autoconservação possa vir a gerir. A dependência do outro impõe a renúncia da agressão que
lhe é dirigida e com isso a necessidade de uma consciência que venha policiar os impulsos hostis, ou
mesmo desejosos, que produzam em última instância algum tipo de hostilidade. O critério da
consciência moral fica, também, submetida à ordem pulsional.
A idéia central que justifica sua constância, idéia que, aliás, percorre todo o texto de Freud, está
referida à permanência e indestrutibilidade de tudo que se formou no psiquismo, ou seja, que o
mecanismo da renúncia exigido só se realiza mediante recalque.
Contra a autoridade externa, a renúncia da satisfação pela via do recalque é suficiente. Contra o
superego essa renúncia não é suficiente, na medida em que o desejo persiste e não pode ser
escondido. Essa condição produz um inerente sentimento de culpa que persiste apesar da renúncia
efetuada. A infelicidade externa é permutada pela infelicidade interna do sentimento de culpa.
A renúncia pulsional dá origem à consciência moral na medida em que essa renúncia é impossível e
torna-se necessária uma vigilância permanente contra o retorno do recalcado. De onde decorre que,
quanto maior a renúncia, maior a consciência (de culpa) de que essa renúncia na verdade é um logro,
e maior a exigência de renúncia para o fortalecimento do recalque. A consciência decorre
proporcionalmente da indestrutibilidade do desejo e se torna ruidosa por causa do superego.
A gênese do superego nos é apresentada neste texto de forma bastante desvinculada do narcisismo. O
papel do masoquismo primordial acaba sendo considerado apenas pelo seu aspecto de estrutura
pré-concebida que garante a resposta masoquista posterior. A constituição superegóica que é
privilegiada se assenta na renúncia imposta pela civilização ao componente agressivo que é dirigido
para fora, para o outro. A ameaça do outro é primordial, e é em virtude de sua coerção que o
superego atinge a potência inibidora com que Freud o caracteriza.
Pensamos que o valor da elaboração do conceito de superego é aquilo que permite a Freud poder
realizar o exame da civilização tal como é realizado. Não está em questão neste texto pensar a
genêse metapsicológica do superego e sim o desempenho de seu papel quanto à questão da autonomia da
pulsão de morte e suas consequências. É neste sentido que temos vagas referências quanto à sua
origem, sendo estas a de maior pregnância na literatura analítica: "é a civilização que estabelece
no interior do indivíduo um agente para cuidar dele" (FREUD, 1930, p. 147); ou, "o medo da
autoridade só se modifica quanto esta autoridade é 'internalizada' como superego" (FREUD, 1930, p.
148). Nada encontramos que justifique essa internalização.
O ato primordial é de renúncia que pela indestrutibilidade do impulso se converte em sentimento de
culpa, ou apenas medo da perda de amor. Uma vez instaurado o superego, a impostura da renúncia se
transforma em motor para o sentimento de culpa inconsciente e para a consciência moral. O resultado
desta condição não tarda a alimentar a estrutura masoquista que novamente se apresenta como reação
privilegiada para tal estrutura.
Que o que se apresenta como estrutura geral do sentimento de culpa seja evidenciado em maior ou
menor grau na melancolia ou na neurose obssessiva, isso se torna irrelevante frente à elucidação que
isto traz para a insistência do sintoma e para o fenômeno da reação terapêutica negativa.
Freud irá considerar o sentimento de culpa como uma variedade topográfica da angústia (FREUD, 1930,
p. 159). Vale esclarecer que para a segunda teoria da angústia, é a sua presença que impõe todo o
mecanismo defensivo do ego e sua determinação tanto pode aparecer de forma ruidosa na neurose
obssessiva com o sintoma da escrupulosidade - que no entanto, não deixa de ser inconsciente - quanto
de forma totalmente inconsciente na histeria que não reconhece nisso um empecilho para seu
restabelecimento.
O maior peso da análise de Freud é, a nosso ver, ter conseguido colocar os termos do problema moral
submetidos ao conceito central de sua obra, que é a pulsão, ao mesmo tempo que deriva do tratamento
dispensado à pulsão de morte pela civilização as razões do agravamento da condição psíquica. Temos
então desmanchadas as fronteiras entre individuo/sociedade no que tange à determinação do mal-estar.
As consequências últimas do superego levam Freud ao final deste texto a uma conclusão que pensamos
poder utilizar para nossos próximos passos. Freud nos diz: Que poderoso obstáculo à civilização a
agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria
agressividade! (FREUD, 1930, p. 168)
Será tomando a exposição deste texto que Lacan irá pensar a psicanálise sob uma perspectiva ética. O
que podemos colocar como questão para prosseguirmos é o seguinte: que radicalidade a ética da
psicanálise deve conter para que possa oferecer outra solução para a pulsão de morte que não o
mal-estar do sentimento de culpa ou agressão instalada nas relações humanas?
BIBLIOGRAFIA
FREUD, SIGMUND. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB)
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
______ Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna, (1908), vol. IX.
______ A disposição à neurose obssessiva - uma contribuição ao problema da escolha da neurose,
(1913), vol. XII.
______ Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, (1914), vol. XIV.
______ Além do Princípio do Prazer, (1920), vol. XVIII.
______ O ego e o Id, (1923), vol. XIX.
______ O problema econômico do masoquismo, (1924), vol. XIX.
______ A negativa, (1925), vol. XIX.
______ O mal-esta na civilização, (1930 [1929]), vol. XXI.
______ Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, (1933 [1932]), vol. XXII.