Laboratório de Ensino
COMPULSÃO E REPETIÇÃO
Alexandre Bustani Louzada,
Kin Fon Hwang e
Roberta Guimarães D'Assunção
Ainda que suas implicações teóricas só tenham surgido a partir de 1920, desde cedo, Freud já chamava a atenção, a partir de observações clínicas, narrativas literárias e experiências próprias, para o fenômeno da compulsão à repetição, se perguntando porque somos impelidos à repetir. Em verdade a lógica da compulsão à repetição está presente em toda a obra freudiana e se trata de um de seus conceitos mais fundamentais, a ponto de Lacan dizer que a repetição é a novidade freudiana e situá-la como um dos quatro conceitos fundamentais da Psicanálise em seu seminário de 1964.
Em 1893, em Comunicação preliminar, Freud já frisava a importância da repetição na histeria, ao afirmar que os "histéricos sofrem principalmente de reminiscências" (Freud, 1893: 48). O sintoma histérico é um símbolo mnésico e o que o define é exatamente o fato de reproduzir, de maneira distorcida, elementos de um conflito da história do sujeito. Na clínica, o que insiste e repete é o sintoma. O sintoma tem algo a dizer: o sujeito diz pelo sintoma o que não pode dizer de outra forma. Kaufmann coloca que o sintoma como palavra a dizer pede para ser ouvido e a repetição é o signo da insistência desse pedido (Kaufmann, 1993: 451).
Antes disso, a idéia de facilitação, em "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895), apesar de ainda obedecer à lógica do princípio do prazer, abre um caminho para entender a lógica da repetição. Facilitação, nos diz Freud, se refere a quantidades de energia que transpõem as barreiras de contato, ocasionando dor, mas abrindo um caminho que se tornará referência para futuros investimentos. Haverá uma tendência a percorrer os caminhos já percorridos anteriormente porque os novos caminhos impõem uma resistência e um gasto maior de energia. A facilitação é um apego a traços que permite uma diminuição permanente da resistência e uma economia de energia pela evitação do encontro permanente com o novo.
Em 1914, em "Recordar, repetir, elaborar", Freud utiliza pela primeira vez a expressão compulsão à repetição, ali considerada como um fenômeno clínico. Tendo definido o objetivo do tratamento psicanalítico como o preenchimento de lacunas na memória ou como a superação das resistências devidas ao recalque, Freud evidencia o comportamento dos pacientes em análise. O paciente não comporta-se sempre calmamente, concentrando-se em recordar o material recalcado, (...) mas expressa-se pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo. (Freud, 1914: 196) Portanto, sem saber, quando em tratamento, o paciente está entregue a uma compulsão à repetição, sendo esta sua maneira de recordar.
Ao chamar a atenção para a compulsão à repetição, amplia-se a visão que se tem sobre o tratamento psicanalítico e o estado de enfermidade do paciente, demonstrando que ambos, apesar de referidos ao passado, devem ser tratados como uma força atual. O trabalho do analista, neste momento da obra freudiana, seria, então, remontar ao passado as experiências reais e atuais que o paciente tem em relação ao tratamento e ao analista. Pode-se entender, em conseqüência, que a transferência, como atualização do material recalcado, é uma repetição. Repetição que se faz presente, quanto maior for a resistência, em lugar do recordar, que é possível apenas em estados nos quais as resistências tenham sido elaboradas. Como Freud esclarece: Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido (...) (Freud, 1914: 197)
Até aqui a dominância do princípio do prazer parecia incontestável e uma experiência desagradável poderia ser considerada teoricamente de diversas formas, não sendo prova convincente de tendências além do princípio do prazer. De fato, as circunstâncias que impediriam a dominância do princípio do prazer eram facilmente explicadas: (1) pela substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, o qual adia a satisfação e abandona uma série de possibilidades de obtê-la, porém tem como finalidade obter prazer, ou (2) pelo conflito entre o inconsciente e o consciente, determinado pelo recalque, em que o prazer para uma instância pode transformar-se em desprazer sob a referência da outra instância.
Em seu texto O estranho (1919), Freud traz exemplos sobre uma "repetição involuntária" ou "retorno constante da mesma coisa" que transformaria algo inicialmente inocente, como ocorrências semelhantes, em algo estranho e evocador de certa sensação de desamparo. (Freud, 1919: 293/303) Já neste momento, Freud fala suscintamente da compulsão à repetição da mesma forma como será finalmente elaborada em seu texto Além do princípio do prazer (concluído em 1919 e publicado em 1920):
"(...) é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma 'compulsão à repetição', procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco. E ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos." (Freud, 1919: 297/298) |
E é novamente pela via da clínica que Freud irá esclarecer do que se trata a compulsão à repetição em seu texto Além do princípio do prazer (1920). Neste momento, a necessidade de impelir o paciente a recordar torna-se problemática, uma vez que o paciente "não pode recordar a totalidade do que nele se acha reprimido" (Freud, 1920: 31). Não sendo possível que o inconsciente torne-se consciente, conforme havia sido estabelecido em 1914, resta-lhe repetir o material recalcado como se fosse algo atual. Tais reproduções têm como tema justamente parte da vida sexual infantil. Os pacientes repetem com o analista "situações indesejadas e emoções penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade". (Freud, 1920: 34)
Observando seu neto, Freud demonstrou que a brincadeira de jogar um carretel e em seguida puxá-lo de volta pelo barbante, proferindo as palavras Fort (saiu) e Da (voltou), era uma revivência da experiência desprazerosa de saída e retorno de sua mãe. Podia-se pensar que essa repetição se tratava de tentativas do eu para dominar as experiências desprazerozas e ocupar um lugar ativo em relação a elas, ao invés do originário passivo. Mas a compulsão à repetição é mais fundamental que a procura de um prazer ou da evitação de um desprazer: são experiências claramente desagradáveis que são repetidas, e não parece que nenhuma instância psíquica possa conseguir satisfação em sua repetição. É necessário que se suponha uma outra lógica de funcionamento psíquico, um além do princípio do prazer, porque é impossível sustentar que a repetição dessas experiências dêem algum ganho no registro do prazer. A compulsão à repetição enquanto engendrando um registro fora do esquema prazer/desprazer desafia todo o funcionamento narcísico presente na obra freudiana antes de 1920. Freud enuncia essa questão da seguinte forma:
"(...) a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos." (Freud, 1920: 34) |
Esta situação paradoxal dos conteúdos recalcados retornarem à consciência causando desprazer, enquanto que o aparelho psíquico busca, sem dúvida, a obtenção de prazer, deve-se aos mecanismos de defesa do ego. Lembremo-nos que o recalcado esforça-se por todos os meios para aflorar à consciência, isto é, insiste. É o ego que esforça-se por impedir que estas lembranças recalcadas retornem, resistindo. A fim de explicar de maneira mais clara como isso acontece, Freud recorrerá aos conceitos de energia ligada ou vinculada e energia livre ou livremente móvel. Freud irá, nesse momento, estabelecer uma relação entre a forma de energia livremente móvel, com o funcionamento da pulsão, o qual, por sua vez, é marcado pelos processos primários de funcionamento. Por outro lado, irá relacionar a forma de energia vinculada aos "aos estratos mais elevados do aparelho mental", os quais, em conformidade com os processos secundários, sujeitariam as excitações pulsionais. (Freud, 1920: 52)
Definindo-se a energia livre como uma quantidade de excitações não dominada pelo aparelho psíquico, ou seja, uma quantidade de energia maior do que o aparelho pode comportar, um trauma ou uma situação penosa qualquer necessitaria de um domínio dessa energia excessiva por parte do ego. À este último caberia dominar a tensão desagradável causada por essa irrupção brusca, transformando-a em energia ligada, ou seja, permitindo um escoamento adequado da energia. A compulsão à repetição nada mais seria do que uma tentativa, por parte do ego, de obter um domínio destas situações desagradáveis, vinculando a energia. É mediante a repetição que o aparelho psíquico consegue o equilíbrio buscado pelo princípio do prazer. Nesse contexto podemos pensar na compulsão à repetição como um funcionamento que, embora não contradiga o princípio do prazer, parece funcionar na tarefa de dominação dos estímulos de forma independentemente e mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar o desprazer.
O caráter pulsional da compulsão à repetição aponta para mudanças teóricas radicais na psicanálise. A implementação desse conceito, em última análise, configura-se na necessidade de instaurar um novo dualismo pulsional, uma vez que a repetição indica para Freud que a pulsão "é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas". (Freud, 1920: 53/54) Reconhece-se, enfim, na repetição dos sonhos traumáticos, nos fenômenos transferenciais dos neuróticos em análise, nos jogos infantis e em outras formas de repetir experiências antigas um caráter conservador e regressivo, que será, afinal, a característica da pulsão de morte, em oposição à pulsão de vida. Apesar de opostas, estas duas pulsões apareceriam sempre em estado fusional, produzindo as manifestações da vida, às quais dirigem-se, por fim, à morte. A constatação filosófica de que a vida é precedida por um estado de não-vida, leva Freud a postular a finalidade da pulsão de morte como retorno ao inorgânico, que seria o estado anterior da vida. Nesse contexto da pulsão de morte, a vida se apresenta por sua aptidão à morte, é um rodeio obstinado, em si mesmo, transitório e caduco, e desprovido de significação, nos diz Lacan (Lacan, 1955: 292). Ela se encontra conjugada à morte e sempre retorna à ela. A vida só pensa em morrer e só tarda pelos rodeios que Freud chama de elementos do mundo externo.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1980:
____ Estudos sobre a histeria (1893- 1895)
____ Projeto para uma psicologia científica (1895 [1940])
____ Recordar, repetir e elaborar (1914)
____ O 'estranho' (1919)
____ Além do princípio do prazer (1920)
____ O ego e o id (1923)
|