Laboratório de Ensino
CONSCIENTE/INCONSCIENTE
Roberta Guimarães D'Assunção
A idéia da existência de uma atividade distinta da consciência foi objeto de muitas reflexões desde a Antiguidade e, com René Descartes (1596-1650), um princípio de dualismo foi efetivamente elaborado. Descartes postulou uma divisão entre corpo e mente que se traduzia no contraste entre uma consciência, lugar da razão, com um universo da desrazão, que deveria ser submetido a uma domesticação e parecia ter lugar somente na loucura. (Roudinesco e Plon, 1944, p. 375)
Ao estudar a histeria, Freud e Breuer acabam por depararem-se com esse mundo da desrazão, uma vez que os sintomas histéricos não eram explicados pela ciência da época pois não tinham causa orgânica ou qualquer outra causa conhecida. Em suas tentativas de desenvolver uma teoria acerca da origem desta "doença", surgem como principais causas dos sintomas histéricos a "dissociação da consciência" e o consequente surgimento de estados anormais ou de rebaixamento da consciência, os chamados estados "hipnóides". Essa "dupla consciência" caracteriza-se por uma divisão da personalidade em que um dos estados da personalidade ficaria ligado à consciência, enquanto o segundo estado estaria separado da consciência, sendo denominado de 'inconsciente', o qual teria ampla influência sobre aquilo que permaneceria consciente.
Com Breuer e Freud, já em 1893, no capítulo "Comunicação preliminar" do livro "Estudos sobre a histeria" (1893-1895), podemos destacar uma passagem que indica os primórdios do conceito de inconsciente:
"(...) na histeria grupos de idéias que se originam em estados hipnóides estão presentes, e são isoladas de ligação associativa com as outras idéias, mas podem associar-se entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente organizado de uma segunda consciência, uma condition seconde." (Breuer e Freud, 1893, pp. 56/57)
Neste primeiro momento, falava-se de uma segunda consciência e o termo inconsciente era utilizado descritivamente em referência às idéias que não teriam acesso à consciência, ou seja, que não eram conhecidas conscientemente.
Ao longo da teoria, os termos consciente e inconsciente passaram a ter uma especificidade e serem empregados principalmente de duas formas. A forma sistêmica, no sentido substantivo, para indicar a localização de certos processos psíquicos, isto é, para nomear os sistemas descritos por Freud em sua primeira tópica do aparelho psíquico: o Inconsciente (Ics.) e o Consciente (Cs.). Esses termos podem ser utilizados descritivamente, isto é, no sentido adjetivo, para qualificar um estado psíquico como consciente (cs.) ou inconsciente (ics.), ou seja, um pensamento ou idéia pode estar consciente ou inconsciente.
O conceito de Inconsciente, como sistema, remonta a uma carta de freud a fliess na qual é descrito o primeiro modelo de aparelho ps´qaparece de forma explícita somente em sua famosa carta a Wilhelm Fliess datada de 6 de dezembro de 1896, na qual descreve o primeiro modelo do aparelho psíquico conforme seria formulado em "A interpretação dos sonhos" (1900). A primeira definição do Inconsciente, portanto, aparece na seguinte passagem da Carta 52, como "segundo registro, disposto de acordo com outras relações (talvez causais)." (Freud, 1950[1892-1899], p. 318)
Com essa definição e seus desdobramentos, Freud supõe a existência de um lugar psíquico inconsciente em contraposição à convicção da psicologia da consciência de que psíquico e consciente se equivaleriam e certos conteúdos "latentes", que estariam fora da consciência, seriam de natureza física. Os processos que interessam à Psicanálise são justamente incognoscíveis e somente aparecem sob a forma de lacunas de memória, conclusões intelectuais, sintomas, sonhos e outras formações do inconsciente.
O conceito de consciência, conforme amplamente empregado em filosofia e psicologia, "pressupõe uma universalidade e uma singularidade da subjetividade humana, isto é, um sujeito da consciência (...)". (Roudinesco e Plon, 1944, p. 130) O sujeito da consciência é aquele que possui um conhecimento e uma intuição sobre si e, enfim, sobre seu estado e sua relação com o mundo e consigo mesmo, o que implica em um pensamento em si e na propriedade de emitir juízos espontâneos.
O Consciente, para Freud, vai sendo progressivamente melhor definido desde a elaboração, junto a Breuer, da hipótese da "cisão consciente". Em sua primeira tópica, o consciente é definido como sendo o ego que, em oposição ou resistência ao inconsciente, é regido pelo princípio de realidade e é o agente do recalque. Na segunda tópica freudiana, o Consciente tem seu tamanho bastante reduzido, restringindo-se a uma ligação com a percepção.
Freud inicia sua metapsicologia, em 1900, justamente pelo estudo da formação dos sonhos, quando define o aparelho psíquico em três sistemas (o Ics., o Cs. e o Pcs.). Presentes tanto nos pacientes, em achados "patológicos", como em todas as pessoas consideradas "normais", os sonhos são realizações de desejo infantil e denunciam a existência de um Inconsciente para todos os indivíduos. Enfim, denunciam que o sujeito não é apenas sua consciência e, sim, é dividido, atravessado por um inconsciente cuja propriedade é ser, ao mesmo tempo que interno ao indivíduo, um estranho para o ego.
Os sonhos são considerados por Freud, como a via principal de acesso ao Inconsciente, uma vez que, ao forçar caminho para o ego, o material recalcado formador dos sonhos traz "consigo as suas própria modalidades de funcionamento", expondo as leis que regem o funcionamento inconsciente. (Freud, 1938, p. 193) Verificamos que nos sonhos ocorre uma formação de compromisso, semelhante aos sintomas, na qual o Ics. exige a satisfação de uma pulsão, enquanto o ego, desejando manter o sono, satisfaz essa exigência até certo ponto, proporcionando uma "realização inofensiva de um desejo". (Freud, 1928, p. 196)
Neste texto de 1900, Freud ainda questiona o papel da consciência, outrora onipotente, para a teoria psicanalítica. Nesse momento, a Consciência é descrita como uma espécie de "orgão dos sentidos para a apreensão de qualidade psíquicas" que "pode receber excitações da periferia de todo o aparelho, do sistema perceptivo, e, além disso, pode receber excitações de prazer e desprazer (...)". (Freud, 1900, p. 612)
O sistema Pré-consciente, bastante próximo do Consciente, contem pensamentos latentes, que podem tornar-se conscientes, mediante certas condições. O surgimento desse sistema é relacionado a necessidade de uma regulação do aparelho psíquico de forma mais adequada do que a regulação, pela percepção consciente, da liberação de prazer ou desprazer. Para isso, o conteúdo pré-consciente precisa estar ligado a representações verbais, que são, enfim, qualidades psíquicas que permitem a regulação do aparelho psíquico.
Em 1915, em seu artigo entitulado "O Inconsciente", Freud justifica o conceito de inconsciente pela necessidade de explicar, justamente, atos psíquicos estranhos à consciência, que revelam, em última análise, uma segunda instância no próprio indivíduo, algo como um "outro" dentro dele. Neste artigo, Freud estabelece efetivamente o caráter sistemático do Inconsciente, definindo mais especificamente suas propriedades, as quais permitem diferenciar o funcionamento inconsciente de um funcionamento próprio à consciência.
Os processos psíquicos do inconsciente apresentam características especiais, diferentes do sistema consciente. Para começar, o núcleo do inconsciente é constituído por representantes da pulsão os quais procuram descarregar seu investimento, isto é, esse núcleo primordial consiste em "impulsos carregados de desejo" (Freud, 1900, p.587). Os representantes pulsionais, da ordem do desejo, operam no inconsciente de forma coordenada e "existem lado a lado sem se influenciarem mutuamente" (Freud, 1915, p.213), de modo que pulsões carregadas de desejos com finalidades distintas não entram em contradição, mantendo-se ativas e procurando uma finalidade intermediária. Isso é possível também porque o sistema inconsciente não funciona sob a lógica da certeza, nele não há negação como ocorre no consciente, através do recalque.
No inconsciente, as idéias podem possuir maior ou menor investimento. As intensidades desses investimentos são bastante móveis pois estão regidas pelos processos primários de funcionamento que são o deslocamento de uma quota de afeto de uma idéia para outra e a condensação do investimento de várias idéias em uma só idéia. Outra característica do inconsciente é a atemporalidade, isto é, seus processos não obedecem a uma ordem cronológica e não se alteram com o tempo. Os processos psíquicos inconscientes funcionam sob o princípio do prazer, pelo qual a realidade externa cede lugar à economia pulsional, ou seja, à regulação prazer-desprazer.
O sistema consciente-pré-consciente funciona através de processos psíquicos secundários, a partir dos quais as idéias investidas de desejo são inibidas de descarga e os processos de deslocamento e condensação são bastante restritas ou inoperantes. Essa característica dos processos pré-conscientes fez com que Breuer considerasse a existência de dois estados nos quais a energia pode aparecer. A energia pode estar ligada, isto é, vinculada (funcionamento regido pelos processos secundários) ou livre para se mover de uma idéia a outra e obter descarga (o que define os processos primários de funcionamento do Inconsciente). Ao contrário do inconsciente, o pré-consciente atribui uma referência temporal e efetua uma comunicação entre os conteúdos ideacionais, estabelecendo censuras e funcionando sob a lei do princípio de realidade. É também responsável pelas lembranças conscientes, não devendo ser confundido com os traços mnêmicos que fazem parte do inconsciente.
Até aqui, a premissa fundamental da Psicanálise é que o psíquico é dividido entre o que é consciente e o que é inconsciente. No entanto, um problema quanto a essas distinções, inicialmente bem definidas, se impõe à psicanálise no decorrer de sua prática. Até esse momento, Freud considera em cada indivíduo uma "organização coerente de processos mentais", à qual denomina de ego. (Freud, 1923, p. 28) Este ego, relacionado à consciência, é responsável por variadas funções e operações psíquicas: controle do acesso à motilidade e do desejo de dormir, supervisão de todos os seus próprios processos e procedimento do recalque. Temos até aqui, portanto, um consciente, relacionado ao ego, em oposição a um inconsciente.
Mas o trabalho de análise vem apontar para uma resistência que emana do ego, se opõe aos processos inconscientes de funcionamento psíquico e que passa desapercebidamente pela consciência do paciente. Mais precisamente:
"Deparamo-nos com algo no próprio ego que é também inconsciente, que se comporta exatamente como o reprimido - isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente." (Freud, 1923, p. 30)
Com essa descoberta, uma outra forma de pensar o conflito psíquico, baseado primeiramente, como vimos, na oposição consciente/inconsciente, torna-se necessária. É inaugurada uma nova "(...) antítese entre o ego coerente e o reprimido que é expelido (...) dele." (Freud, 1923, p. 30) Enquanto a primeira antítese baseava-se em considerações teóricas sobre o dinamismo psíquico, essa segunda corresponde à estrutura psíquica percebida com a observação clínica.
Desde 1915, Freud já havia definido o recalcado como sendo apenas uma parte do inconsciente. No entanto, é certo que até este momento, de acordo com a teoria do recalque, o inconsciente seria o protótipo do recalcado, o qual se oporia a uma consciência ou ego.
Freud, enfim, tem subsídios para afirmar que o inconsciente não coincide com o recalcado e adverte o seguinte: "Também uma parte do ego - e sabem os Céus que parte tão importante - pode ser Ics., indubitavelmente é Ics. (...) Quando nos vemos assim confrontados pela necessidade de postular um terceiro Ics., que não é reprimido, temos de admitir que a característica de ser inconsciente começa a perder significação para nós." (Freud, 1923, p. 30)
De 1920 a 1923, Freud é, portanto, levado a propor uma segunda tópica do aparelho psíquico. A nova teoria da pulsões, propondo um conflito entre pulsões de vida e de morte, e a reconsideração do processo de constituição do ego, determinada pelos conceitos de narcisismo e identificação, foram também essenciais para essa reformulação teórica. Nesta segunda tópica, os sistemas Inconsciente, Pré-consciente e Consciente são integrados nas três novas instâncias: ego, id e superego. Ao contrário da cisão absoluta entre Ics. e Cs. na primeira tópica, o id e o ego "se interpenetram de tal forma que o segundo se diferencia progressivamente do primeiro, sob a influência do mundo externo." (Dor apud Kaufmann, 1996, p. 266)
Em seu "Esboço de Psicanálise" (1938), Freud deixa implícito que o Inconsciente é uma ruptura nas sequências de pensamento conscientes e afirma, mais uma vez, que o psíquico pode ser igualado ao Inconsciente e que a consciência seria, portanto, uma qualidade psíquica definida como um estado altamente fugaz.
Lacan, em 1964, acaba por recuperar essa noção de Inconsciente conforme aparece ao final da obra freudiana, como lacuna, pura hiância. O inconsciente é justamente aquilo que manca no discurso, aquilo que aparece como ato falho, chiste, e que afeta o sujeito porque denuncia uma outra verdade não esperada, algo de não-nascido. Lacan esclarece:
"(...) o inconsciente freudiano (...) se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação." (Lacan, 1964, p. 27)
Breuer, J. e Freud, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895) in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, vol. III.
Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
_____ Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]), vol. I.
_____ A interpretação dos sonhos (1900), vol. V.
_____ O inconsciente (1915), vol. XIV.
_____ Além do princípio do prazer (1920), vol. XVIII.
_____ O ego e o id (1923), vol. XIX.
_____ Esboço de Psicanálise (1938), vol. XXIII.
Kaufmann,P. "Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud a Lacan". tradução, Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges; consultoria, Marco Antonio Coutinho Jorge. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
Lacan, J. "O Inconsciente Freudiano e o Nosso" in O Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
Laplanche e Pontalis. "Vocabulário de Psicanálise". sob a direção de Daniel Lagache; [tradução Pedro Tamen]. - 3a ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Roudinesco e Plon. "Dicionário de Psicanálise". tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
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