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Laboratório de Ensino

RECALQUE

Roberta Guimarães D'Assunção 
 

Antes de um aprofundamento maior sobre assunto, é importante que nos detenhamos em diferenciar o conceito de recalque (Verdrängung) do conceito de repressão (Unterdrückung) em psicanálise, uma vez que, na tradução brasileira, optou-se por utilizar o termo repressão para designar o mecanismo inconsciente de recalque. O conceito de repressão designa a operação psíquica de "inibição voluntária de uma conduta consciente", considerada inoportuna ou desagradável. (Roudinesco e Plon, 1996, p. 659) A repressão diferencia-se, portanto, do recalque por operar ao nível da consciência e manter o conteúdo reprimido apenas em estado latente (no pré-consciente), sem torná-lo inconsciente, sendo isso o que caracteriza o processo recalque.

Podemos situar o recalque como um dos mecanismos de defesa, ou melhor, como um dos momentos da operação defensiva, que está presente em diversas neuroses. Em certos momentos da obra freudiana, em que Freud utiliza-se do recalque como "uma espécie de protótipo para outras operações defensivas", é possível confundir o recalque com o conceito geral de defesa. (Laplanche e Pontalis, 1998, p. 431) De fato, o conceito de recalque tem um lugar especial para a psicanálise dentre os outros mecanismos de defesa, pois é a observação de sua manifestação clínica, isto é, a resistência, que permite a Freud todas as formulações teóricas que se seguem com o abandono do método hipnótico. Em 1914, Freud aponta para a importância desse conceito ao afirmar o seguinte: "A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. " (Freud, 1914, p. 26)

Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), é afirmado que a unidade do ego é algo a ser desenvolvido, isto é, as pulsões parciais que caracterizam o auto-erotismo são unificadas a partir de uma nova ação psíquica que, afinal, provoca o narcisismo. A partir disso, é possível compreender que há um investimento original do ego, o qual pode ser transmitido a objetos, "assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz. " (Freud, 1914, p. 92) Ou seja, na medida que investe em objetos, o ego desinveste de si mesmo. Ora, o recalque pode ser entendido como um dos possíveis destinos dos impulsos libidinais provenientes do ego, se estes entrarem "em conflito com as idéias culturais e éticas do indivíduo", ou restrições sociais impostas a esse indivíduo, as quais são reconhecidas "como um padrão para si próprio". (Freud, 1914, p. 110) Podemos afirmar, então, que, em 1914, o recalque "provém do amor-próprio do ego", amor-próprio que, afinal, é a forma de resguardar a libido de investimentos objetais que não permitam algum tipo de satisfação narcísica (Freud, 1914, p. 110). A partir disso, podemos afirmar que a formação de um ideal é, do ponto de vista do ego, fator condicionante do recalque: "O ideal do ego impõe severas condições à satisfação da libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns deles sejam rejeitados por seu censor, como sendo incompatíveis. (...) Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz respeito 'as tendências sexuais não menos do que as outras - isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade." (Freud, 1914, p. 118)

Ainda em 1915, Freud apresenta esse conceito em três momentos que permitem diferenciar um recalque originário, ou primevo, de um recalque secundário, ou propriamente dito. Justamente com seu artigo entitulado O recalque (1915), Freud supõe a existência de um recalque primevo, um primeiro momento do recalque, portanto, "que consiste em negar entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) " da pulsão. (Freud, 1915, p.171) Com essa primeira fase de recalque há uma fixação, em função da qual o representante psíquico permanece inalterado e ligado à pulsão.

O segundo momento do recalque consiste em uma "pressão posterior" que age sobre os derivados mentais do representante psíquico ou sucessões de pensamento, originadas em outra parte, mas que tenham entrado em associação com esse representante originalmente fixado. Pelo fato de estarem associados a esse representante, os derivados ou sucessões "sofrem o mesmo destino daquilo que foi primevamente" recalcado. (Freud, 1915, p. 171) A partir disso, deve-se considerar que a atração exercida pelo material que foi primevamente recalcado, com o qual pode estabelecer uma ligação e que está "pronto para receber aquilo que é repelido pelo consciente", é tão essencial quanto a repulsão originada do consciente que atua sobre o material recalcado. (Freud, 1915, p.172) Com isso, verificamos que a cooperação entre as forças de repulsão (consciente) e de atração (inconsciente) é outra das condições para que o recalque possa ocorrer. Nesse momento, é importante ressaltar a justificação do sucesso do consciente em resistir a determinados conteúdos a partir da suposição de um recalque originário, o qual serve de apoio para receber o que é repelido pela consciência.

Sabe-se, no entanto, que a parcela ideacional do recalcado cria formações substitutivas e, que o recalque, em geral, "deixa sintomas em seu rastro". (Freud, 1915, p. 177) Tanto as formações substitutivas como os sintomas são indicações de um retorno do recalcado e são criados por processos diferentes ao recalque. Este seria, enfim, o terceiro momento do recalque, ou seja, o retorno do recalcado, que busca ainda satisfazer as exigências da pulsão. Nesse sentido, o recalque, nesse terceiro momento, pode ser entendido com um permanente dispêndio de força: enquanto o recalcado, através dos seus derivados, "exerce uma pressão contínua em direção ao consciente", continua havendo uma "contrapressão incessante", que parte de uma instância superior, ou seja, a consciência. (Freud, 1915, p. 174-175)

Concluindo, podemos resumir os três momentos do recalque como: um primeiro momento, no qual o recalque incide sobre os representantes da pulsão, criando um núcleo inconsciente que funciona como pólo de atração para os elementos a recalcar, o que caracteriza o recalque originário; no segundo momento, é acrescentada uma força de repulsão, proveniente da instância consciente, a qual caracteriza um processo duplo de atração e repulsão; e o terceiro momento seria, afinal, o "retorno do recalcado", que se dá sob a forma de sonhos, sintomas, chistes, etc. e que acarreta, então, um permanente dispêndio de energia para sustentar o recalque.


Freud, S. - A interpretação dos sonhos [1900] in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Freud, S. - A história do movimento psicanalítico [1914] in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Freud, S. - Sobre o narcisismo: uma introdução [1914] in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Freud, S. - O recalque [1915] in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Freud, S. - O inconsciente [1915] in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Vocabulário de Psicanálise / Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; [tradução Pedro Tamen]. - 3a ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Dicionário de Psicanálise / Roudinesco e Plon; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998

 

 

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