O ESTÁGIO DO ESPELHO
Andréa Martello
A inauguração da contribuição de Lacan para uma releitura da obra freudiana se faz com o "estádio do
espelho" que vem constituir um esclarecimento sobre o eu considerando-o pela perspectiva de uma
matriz imaginária. Sua construção, curiosamente, é feita a partir de um experimento biológico,
comportamental , que pode ser verificado tanto nas crianças entre 6 e 18 meses quanto com alguns
animais, e consiste basicamente na apreensão dos efeitos que a imagem do espelho fornece nesses
casos.
Para além da verificação da pregnância imaginária no caso humano, o estágio do espelho particulariza
essa experiência na medida em que essa imagem pregnante é investida libidinalmente e ela se encontra
diretamente relacionada com o universo simbólico que vem respaldá-la.
A forma total do corpo no espelho é dada como uma Gestalt, que se define numa exterioridade em que
decerto essa forma é mais constituinte do que constituída . Para o humano, ao contrário dos animais,
a imagem não acarreta uma maturação e sim a antecipação do domínio motor, ou como nos diz Lacan: o
estágio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação.
O aspecto marcante do estágio do espelho se dá pela condição de impotência motora, pela
descoordenação profunda em que se encontra a criança nesta fase, onde a imagem unificada fornece a
primeira matriz do jogo de suas relações libidinais, justificando, portanto, sua reação de júbilo
diante do espelho. A imagem de si mesmo é atingida na relação com o outro e como outro, em seu
aspecto idealizado.
A apreensão da imagem ideal compreende um congelamento que, se por um lado serve justamente para
fornecer o aspecto unificado do corpo, uma primeira matriz na relação intersubjetiva, por outro
instaura um parâmetro cujo resultado é a fantasia de corpo fragmentado. O que constitui a
identificação especular são as reações passionais frente à satisfação ou perda do que é investido
libidinalmente. Aquilo com que o sujeito se identifica se revela para ele através de uma ligação
amorosa e apaixonada que no entanto, justamente por ser uma imagem "outra", desperta nele sua ira,
seu ódio.
A identificação ganha relevo em razão da alteridade contida em seu mecanismo. Identificação não é
identidade. Seu mecanismo próprio se caracteriza por estarem em jogo termos que não são idênticos.
Ao eu é dado uma identidade na medida em que esta não passa de uma ilusão proveniente de uma
soldagem entre o eu e a imagem. Inferir no estágio do espelho um processo de identificação toma seu
valor a partir deste pressuposto de alteridade, onde a rivalidade que aí se apresenta vem atestar
seu valor de verdade.
O estádio do espelho representa a estrutura da dinâmica narcísica, as leis de funcionamento do eu,
não sendo portanto, uma fase ultrapassável (Veja também Imago). Sua estrutura consiste, antes, na
idéia de uma simultaneidade da constituição do eu e da perda que aí se instaura. Essa perda se
revela pela discordância e distância fundamental do eu com sua imagem. As consequências dessa
hiância, resumida no fato de que o eu se constitui como um outro, revelará toda a dimensão da
linguagem como sendo o registro por meio do qual o outro comparece para mediatizar e dar valor de
existência à constituição da imagem do eu, ou, o que seria o mesmo, a constituição do próprio eu.
O estádio do espelho tem o papel fundamental de, ao esclarecer a dinâmica exterior com a qual o eu
se funda, elucidar a problemática narcísica que encontrávamos em Freud. A idéia de uma libido do eu
implicava uma série de pressupostos, tais como o de uma suposta "origem orgânica" da libido , que
levavam à lógica de uma origem do eu estabelecida sobre si mesmo, e consequentemente um
obscurecimento dos modos de relação desta estrutura com o mundo externo.
Com o estádio do espelho essa topografia interno-externo se altera já que a imagem constituinte do
eu comparece determinada por uma exterioridade. A condição dessa exterioridade íntima do eu, onde a
relação consigo se marca e se atualiza através de uma relação com o outro, reorienta toda a
dialética do desejo. A dessimetria inerente à constituição especular do eu coloca uma hiância e uma
estrutura de falta, de deficiência, que marcará toda a dialética do desejo.
No nível da relação especular, o desejo não é pelo outro, é antes, desejo de reconhecimento do
outro. Que o outro reconheça no eu essa imagem através da qual o eu se representa e na qual está
alienado. "O desejo do homem é o desejo do outro" apresenta sua primeira vertente nessa condição
precária da identidade subjetiva alcançada pela via sinuosa da identificação, identificação primária
que estrutura o sujeito como rival de si mesmo , e que tem no desejo do outro, constituído a partir
da linguagem, o único meio de se sustentar.
As identificações secundárias, pertinentes ao desfecho do complexo de Édipo, se estruturam através
do ideal do eu que desempenha assim uma função apaziguadora de toda a rivalidade encontrada na
estrutura da identificação primária. A identificação alcançada no complexo de Édipo só se torna
possível por advir em um solo cuja questão da rivalidade já está colocada, para vir, justamente,
intervir no jogo de vida ou morte que aí se encena. O complexo de Édipo é central para a regulação
do desejo pois será através dele que se estabelece toda uma reformulação identificatórica do
sujeito.
O objetivo de Lacan com o estágio do espelho é desfazer a noção de uma pulsão agressiva original que
agiria lado a lado com a libido. Com isso, a agressividade é uma vicissitude das condições em que o
eu se forma, a exterioridade de sua imagem e o valor que ela representa na economia libidinal.
Podemos dizer que neste aspecto também há um resgate da resistência de Freud em aceitar uma pulsão
agressiva original, que só é conjecturada em Mal-estar na civilização (1930) e, devemos lembrar, que
sob a perspectiva da pulsão de morte, tal como foi concebida para justificar a compulsão à
repetição.
Ao trazer fundamentos lógicos para se pensar a agressividade como atributo da libido, Lacan preserva
toda a abordagem de Freud sobre pulsão de morte, cuja tendência era reduzir-se a um instinto
agressivo, e fornece-lhe uma nova dimensão a partir do simbólico que passará então a justificar a
insistência da repetição.
Há um desmerecimento da definição do superego como internalização da lei social para com isso
assinalar o aspecto da 'lei social' como formada de pactos e trocas simbólicas, necessárias para
garantir outra realidade que não apenas a realidade passional do estágio especular.
A forma obscura com que Freud vai estabelecendo a partir do narcisismo um agente crítico e,
posteriormente, o ideal do eu como aquilo que regula o investimento objetal, é retomado por Lacan a
partir de um arcabouço teórico mais refinado que multiplica e atualiza a construção freudiana. O
ideal do eu não é o próximo patarmar narcísico, tal como Freud o pensou, é antes o patamar de onde
se regulam pelas determinações simbólicas as questões do próprio narcisismo.
BIBLIOGRAFIA
ALLOUCH, Jean - "Freud déplacé", in Littoral n. 14, Paris, Editions Erès, nov. 1984.
JULIEN, Philippe, O retorno a Freud de Jacques Lacan - a aplicação do espelho, Porto Alegre, Ed.
Artes Médicas, 1993.
LACAN, J., Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
OGILVIE, Bertrand, Lacan - a formação do conceito de sujeito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.
1991.