"O ESPÍRITO CIENTÍFICO SEGUNDO GASTON BACHELARD"
Rosa Guedes Lopes
Para Gaston Bachelard, a ciência progride sempre que o espírito humano consegue romper com o objeto
imediato que se coloca diante dos sentidos. É preciso virar as costas ao campo dos sentidos e à
doxa. A evolução do espírito [nota] científico desenhou um movimento que vai do geométrico (mais ou
menos visual) em direção à abstração completa.
Trata-se de escolher recusar o que, de modo sedutor, se impõe ao pesquisador ou ao cientista sob a
forma dos primeiros pensamentos, nascidos a partir de observações e colocados sempre antes e acima
da crítica. Para o espírito científico, a percepção é considerada apenas no que ela tem de exatidão
para logo depois ser posta de lado em nome de objeções comandadas pela razão, que se dirige à
abstração. Toda experiência que se pretende concreta e real, natural e imediata tem caráter de
obstáculo para o pensamento científico porque o ato de conhecer se dá sempre contra um conhecimento
anterior que se coloca como abjeção em relação à investigação a ser desenvolvida ou à hipótese a ser
confirmada.
Bachelard distingue três grandes períodos do pensamento científico:
1. Estado pré-científico (Antiguidade clássica, renascimento e séculos XVI, XVII e XVIII).
2. Estado científico (fim do século XVIII, século XIX e início do XX).
3. Novo espírito científico (iniciando-se em 1905, quando a relatividade de Einstein operou
deformações em conceitos primordiais tidos como já fixados).
Trata-se de uma divisão que não segmenta as etapas. Ela apenas objetiva oferecer uma clareza
provisória às teses que pretende introduzir pois, segundo Bachelard, não se consegue ir de uma etapa
do saber a outra, nova, sem carregar consigo os vestígios do saber que se deixou para trás. Neste
ponto o pensamento de Koyré tem afinidade com o de Bachelard. Para Koyré, "a história não opera
através de saltos bruscos; e as divisões nítidas em períodos e épocas só existem nos manuais
escolares" (Koyré, 1991, p.15). A hipótese de Bachelard é a de que mesmo no novo homem permanecem
vestígios do homem velho uma vez que a mente lúcida possui cavernas onde ainda vivem sombras
obscuras. Assim, ele esboça uma tese: forças psíquicas atuam no conhecimento científico e a prova
disso é a possibilidade de encontrarmos, por exemplo, a presença latente do século XVIII naquilo que
se produziu muito tempo depois (Bachelard, 1938, p.10).
Partindo dessa premissa, a obra de Bachelard demonstra-nos de dois modos diferentes e excludentes
entre si como é possível encontrar os vestígios de um tempo presentes em outro. Por um lado,
exemplifica exaustivamente os meandros pelos quais o modo de operação constitutivo das primeiras
experiências - por exemplo, o devaneio - permanece no pensamento elaborado, característico das
experiências científicas. É o que ele ironicamente chama de idolatria do fogo , ou seja, agora que o
fogo não abre mais nenhuma perspectiva a estudos científicos, uma vez que seus fenômenos já foram
exaustivamente descritos e pesquisados, ele se mostra instrutivo, do ponto de vista psicológico, a
ser usado como metáfora para falar da hipnótica presença de valores fenomenológicos no campo
científico. É quando o sujeito perde-se em devaneios acerca do seu objeto de pesquisa do mesmo modo
que seus antecessores ficavam hipnotizados diante da colorida dança das chamas ardentes. Por essa
via, temos a presença do homem velho na criança e a do alquimista sob as vestes do engenheiro quando
este toma as provas como se fossem chamas (1937). Trata-se de uma via cujo interesse particular é
preciso psicanalisar, pois induz a respostas falsas e de cuja imediatez é preciso sempre duvidar.
No entanto, Bachelard indica também de que outra maneira as marcas de um tempo passado se apresentam
atualizadas em outro. Trata-se de uma via onde o ponto de identificação não passa pela hipnose,
portanto, não privilegia o aspecto ilusório, cujo eixo é sempre imaginário, mas os eixos racionais,
isto é, simbólicos, onde o realismo das coisas é tomado como idêntico ao realismo das leis. Esta é a
via que interessa à constituição do espírito científico. Se, segundo Bachelard, Newton deu à sua
mecânica racional uma doutrina científica já dotada de um caráter filosófico, foi por instruir-se na
mecânica newtoniana que Kant pôde desenvolver sua metafísica (1940, p.28). Desse modo, Bachelard dá
à luz uma importante tese: a de que no âmbito da ciência não há precursores, apenas corte, ruptura.
Isso implica que é possível que uma noção simples, utilizada num âmbito restrito, possa dar lugar,
num outro âmbito, a uma noção complexa sem que o seu papel de elemento constitutivo seja declinado
(Id., p.30). Implica também que podemos transportar uma noção que funcionava num determinado
contexto de saber, a serviço de uma certa lógica, para um outro contexto onde poderá adquirir um
sentido, uma lógica e um uso absolutamente inéditos.
O espírito científico que Bachelard nos apresenta exige a reconstrução de todo o seu próprio saber e
isso só é possível por meio da utilização dos eixos racionais. Para tanto, é preciso um exercício
permanente de seguir o que ele chama de via psicológica normal do pensamento científico: a passagem
da imagem para a forma geométrica e, desta, para a abstrata. Não se trata de uma empreitada fácil de
ser realizada pelo espírito. As imagens primeiras sempre oferecerão resistência para serem
substituídas pelas formas geométricas adequadas, que representam apenas uma etapa intermediária
constitutiva do espírito científico que, em sua formação, passaria individualmente por três estados:
o concreto, o concreto-abstrato e o abstrato. No primeiro, o espírito se entretém com as imagens
iniciais do fenômeno apoiado numa literatura que exalta a Natureza e a unidade do mundo. Em seguida,
esquemas geométricos apoiados numa filosofia simples são acrescidos às experiências físicas. Aqui a
segurança da abstração se torna tanto mais segura quanto mais representada por uma intuição
sensível. Por fim, o espírito acede às informações desligadas da experiência imediata que, muitas
vezes, se chocam com a realidade primeira. A cada estágio corresponde um interesse diferente e,
juntos, esses interesses formam a base afetiva do pensamento científico (1938, p.11).
Não se pode formar o espírito científico sem que os interesses sejam despertados pelos educadores!
No entanto, Bachelard adverte que, uma vez despertados, esses interesses devem ser psicanalisados
pela filosofia científica, isto é, devem ser despidos de todo o utilitarismo com o qual se revestem,
mantendo-se como obstáculo ao progresso das ciências. "O espírito científico deveria ter em vista
uma reforma subjetiva total. Todo o progresso real no pensamento científico necessita de uma
conversão" (1940, p.12), ou seja, necessita dizer não à experiência antiga, um não que nunca é
definitivo, uma vez que os princípios sempre serão dialetizados para constituir novas espécies de
evidência que enriquecem o corpo com explicações que passam ao largo do que se apresenta como
natural ou universal. A ciência criada pela instrumentação transcendeu o campo da observação natural
e promoveu uma ruptura entre o conhecimento sensível e aquele que advém pelo esforço científico (Id.
p.13). Portanto, a filosofia científica visa fazer com que a atenção se volte do real para o
artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração. Ela inclui essa ruptura.
As hipóteses verdadeiramente científicas, para que não sejam inúteis, precisam esbarrar em
contradições. Do mesmo modo, as experiências precisam retificar erros, promover discussões. Do
contrário, não servem para nada. A perspectiva dos erros retificados é a única que caracteriza o
pensamento científico para Bachelard, uma vez que o campo da experiência imediata e usual possui
caráter tautológico, pois se desenvolve no reino das palavras e das definições. Não sendo uma
experiência construída, ela permanece como um fato. Sem a verificação e sem o confronto de uma
verdade com vários e diferentes pontos de vista não é possível criar leis ou confirmar
cientificamente algo como verdade (1938, p.14).
Pensar criticamente uma experiência é, por exemplo, conseguir mostrar a coerência do que
inicialmente se apresentou sob a forma de um pluralismo. Assim sendo, um epistemólogo não trabalha
como um historiador, pois sua tarefa é a de destacar, entre todos os conhecimentos de uma época, as
idéias efetivamente fecundas , isto é, aquelas que permitiram diagnosticar os obstáculos
epistemológicos e, por isso mesmo, possibilitaram avanços no pensamento científico. Desse ponto de
vista, trata-se de um erro ou uma inutilidade espiritual considerar verdades que não façam parte de
um sistema geral, valer-se de experiências cujas afirmações não estejam ligadas a um método de
experimentação geral, ou partir de observações que tenham sido anunciadas numa falsa perspectiva de
verificação (1938, p.14). Todo pensamento precisa estar inserido num sistema de idéias, pois é
somente desse modo que pode ocorrer a ruptura necessária ao avanço do pensamento científico.
Para Bachelard, a atitude de um filósofo das ciências que crê no progresso do pensamento humano não
consegue escapar à impressão de incredulidade sistemática, tampouco ao tom cético e irônico que deve
começar a ser desenvolvido primeiramente dirigido para si mesmo. A tradição da filosofia das
ciências requer sujeitos firmemente plantados no solo que considera a abstração como procedimento
normal e fecundo do pensamento científico, desconsiderando as forças psíquicas que obstaculizam esse
caminho. Para alcançar tal posição, Bachelard nos aconselha a prática de um exercício do qual se diz
mestre: zombar de si mesmo. Segundo ele, "nenhum progresso é possível no conhecimento objetivo sem
essa ironia autocrítica" (1937, p.8).
Bibliografia
Bachelard, Gaston (1928). Ensaio sobre o conhecimento aproximado. RJ:Contraponto, 2004, 316p.
_________ . (1934). O novo espírito científico. RJ:Tempo Brasileiro, 2000, 152p.
_________ . (1937). A psicanálise do fogo. SP:Martins Fontes, 1999, 172p.
_________ . (1938). A formação do espírito científico - contribuição para uma psicanálise do
conhecimento. RJ:Contraponto, 2003, 316p.
_________ . (1940). A filosofia do não - filosofia do novo espírito científico . Lisboa:Ed.
Presença, 1987, 140p.
_________. (1977). Epistemologia . RJ:JZE.
Koyré, Alexandre. (1991). Estudos de História do Pensamento Científico . SP:Forense
Universitária,
388p.