Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

Três ensaios sobre a sexualidade

"TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE" (1905)
Sérgio Cwaigman Prestes
A psicologia infantil surge, no século XIX, com o objetivo de dar continuidade ao processo de objetivação e racionalização do saber empreendido pelo discurso cientificista. Neste percurso, o discurso psicológico acabou se destacando como aquele capaz de estabelecer um saber científico sobre a infância, delineando práticas de proteção à criança e procurando, inclusive, dar um estatuto científico às lacunas deixadas pelo saber religioso.
O resultado disto foi a constituição de uma concepção da infância baseada na idéia de imaturidade e incompletude, sustentada basicamente pelo discurso psicológico. Estas idéias acabaram contribuindo para a legitimação do conceito de natureza infantil que apresentava as seguintes características: curiosidade, espontaneidade, inocência, fragilidade, preponderância do sentimento sobre a razão, etc.
Freud, ao contrário, questionou os ideais psicológicos e pedagógicos, não em nome de novos ideais, mas em nome de uma ética que opera justamente no sentido oposto ao dos ideais, anunciando uma nova criança: não a criança frágil, espontânea, inocente e feliz, mas aquela que assinala o fracasso tanto dos educadores quanto dos psicólogos.
Desde as primeiras publicações psicanalíticas, Freud, ao contrário de Breuer, insistia na importância dos anos da infância na etiologia sexual das neuroses. Para tanto, serviu-se do modelo da teoria da sedução sexual precoce à qual todo sujeito neurótico teria sido submetido no tempo de sua infância, para justificar a causa das neuroses.
Em 1897, Freud abandona a teoria da sedução numa carta dirigida a Fliess onde ele dizia: E agora quero confiar-lhe, de imediato, o grande segredo que foi despontado lentamente em mim nestes últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica.(Freud, 1895, p.350) Apesar do abandono desta teoria, Freud manteve, de um modo radicalmente distinto, a infância dos pacientes na origem dos conflitos neuróticos, articulando o sexual e o infantil.
Embora Freud já falasse em sexualidade, ele, ainda, não tinha elaborado uma teoria sobre o sexual e, menos ainda, uma teoria sobre a sexualidade infantil. É comum pensarmos que o termo sexualidade infantil designa a presença de comportamentos sexuais na infância. A vida psíquica das crianças se faria acompanhar, desde o seu início, dessa dimensão sexual. Do ponto de vista fenomenológico, estas afirmações não são incorretas. No entanto, se levarmos em conta que a sexualidade concebida por Freud é, conforme veremos ao longo deste texto, perversa e a sexualidade infantil, por sua vez, é marcada pela disposição perverso polimorfa, então, o infantil deixa de ser apenas uma versão da sexualidade adulta, passando a ser o modo como Freud nomeou a sexualidade própria ao saber psicanalítico, seja ela, a de um adulto ou de uma criança.
Inicialmente, cabe esclarecer que a versão dos Três ensaios, a Standard Edition traduzida pela editora Imago, que consultamos atualmente, refere-se à sexta edição alemã, datada de 1925, a última publicada por Freud. Isto quer dizer que entre a edição original de 1905 e a de 1925, a obra sofreu inúmeros acréscimos e modificações significativas, à luz dos avanços teóricos expostos nos Artigos metapsicológicos (1915), em particular, no artigo sobre o narcisismo (1914).
O primeiro dos três ensaios intitula-se As aberrações sexuais. O próprio título deste ensaio pode sugerir uma nova tentativa de descrição das perversões, apesar de não ser esse o objetivo de Freud. Ao contrário, trata-se, muito mais, de subverter o saber da época sobre a sexualidade. Em particular, aquele referente às chamadas aberrações sexuais. A própria leitura do ensaio encaminha-se no sentido de mostrar, ao final, que a sexualidade humana é, em si, aberrante e perversa, dada a inexistência de um padrão fixo e invariável de comportamento sexual: Assim, a disseminação extraordinariamente grande das perversões nos força a supor que a disposição para as perversões não é em si muito rara, devendo constituir parte do que passa como constituição normal. (Freud, 1905, p.174)
O saber da época sobre a sexualidade tinha como referência básica o conceito de instinto, entendido como um padrão fixo e invariável de comportamento, comum a todos os indivíduos de uma mesma espécie, voltado para um objeto específico e pré-determinado de satisfação, que o é precisamente por garantir que sua finalidade seja alcançada.
Freud vai substituir o conceito de instinto pelo conceito de pulsão (Trieb). Embora o conceito de pulsão esteja extremamente distante do conceito de instinto, freqüentemente ambos são confundidos, dada a tradução inglesa da obra de Freud, a famosa Standard Edition, que utilizou o termo instinto para traduzir o Trieb alemão.
Assim, os Três ensaios tratam, da pulsão sexual e não do instinto sexual. Para tanto, Freud concebe a pulsão, ao contrário do instinto, como sendo independente de seu objeto e que nem é provável que sua origem seja determinada pelos atrativos de seu objeto. (Freud, 1905, p. 149) No que diz respeito ao objeto é onde a pulsão mais radicalmente se distingue do instinto, dada a inexistência de um objeto específico, adequado e muito menos pré-determinado. Freud, num artigo posterior aos Três ensaios, afirma que o objeto é o que há de mais variável numa pulsão. (Freud, 1915, p. 143) Além disto, a pulsão tem como objetivo a sua satisfação, regida pelo princípio do prazer e não a reprodução e a manutenção da espécie.
Freud, portanto, conceitua a pulsão, ao contrário do estímulo, como sendo o representante psíquico de uma fonte interna, ou seja, endossomática e contínua de excitação, constituindo-se numa medida da exigência de trabalho feita a mente. (Freud, 1905, p. 171) A pulsão exige o trabalho psíquico permanente e constante, não existindo sujeito para quem a pulsão não se coloque como exigência de trabalho, seja na forma do recalque e dos outros destinos da pulsão descritos por Freud, mais tarde, no artigo As pulsões e suas vicissitudes (Freud, 1915, p. 147). Neste sentido, o sintoma é uma das formas da pulsão obter a sua satisfação, apesar do sofrimento do sujeito.
Desse modo, os sintomas, principalmente os histéricos, se originam através da aversão excessiva à sexualidade, dada à sua condição perversa, oferecida pelas forças psíquicas, sobretudo a vergonha e a repugnância. Essas forças psíquicas, portanto, transformariam as pulsões sexuais em sintomas neuróticos. Daí a célebre frase de Freud de que as neuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões. (Freud, 1905, p. 168)
O equívoco de tomarmos o negativo das perversões enquanto oposição às neuroses, só teria sentido na hipótese de que a obra freudiana sustentasse a oposição entre o normal e o patológico. Se a fronteira que demarca o normal do patológico é difícil, senão, impossível de ser traçada, já que nenhuma pessoa sadia, ao que parece, pode deixar de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada de perversa ao objetivo sexual normal (Freud, 1905, p. 163), o negativo das perversões é muito mais a maneira como o neurótico se relaciona com a sua própria sexualidade do que o caráter patológico da mesma.
Tendo em vista que a sexualidade é perversa, Freud é levado, a partir de suas próprias reflexões, a investigar a vida sexual das crianças, mais exatamente, os fatores que influenciam a constituição da sexualidade em virtude de uma idéia que começava a se esboçar de que a sexualidade dos neuróticos permanece num estado infantil ou é trazida de volta ele. (Freud, 1905, p. 175)
Freud, como se sabe, não partiu do estudo direto da criança. O ponto de partida da pesquisa freudiana foi, basicamente, o relato de suas pacientes histéricas adultas. As conclusões teóricas sobre a sexualidade infantil estiveram, principalmente, na dependência do que Freud escutava da sintomatologia dos adultos, chegando, inclusive, a aproximar a amnésia infantil da amnésia histérica, ao dizer que aquele que resolvesse este enigma [amnésia infantil] teria, a meu ver, explicado também a amnésia histérica. (Freud, 1905, p. 179)
No início do ensaio sobre a sexualidade infantil, Freud aponta o ato de sugar o dedo como uma amostra das primeiras manifestações sexuais na infância. Nesse ato o bebê procura obter à satisfação da necessidade de nutrição e à satisfação da zona erógena, no caso, a boca. Porém, o fundamental é a satisfação sexual, do contrário, o bebê não repetiria o ato de sugar o dedo. Nesse sentido, a satisfação da necessidade é secundária em relação ao prazer de sugar. Contudo, o mais importante, segundo Freud, é que a pulsão não é dirigida para outras pessoas, mas obtém satisfação no corpo do próprio indivíduo. É auto-erótico, (...). (Freud, 1905, p. 186)
Assim, as características principais da vida sexual das crianças é que as pulsões sexuais são auto-eróticas e parciais em relação à finalidade de reprodução da espécie, que concede primazia à zona genital. Por conta disto, Freud segue descrevendo as fases de desenvolvimento da organização pré-genital, cujo conceito só foi introduzido aos Três ensaios em 1915, pois, até então, ele não concebia a existência de uma organização anterior à puberdade.
Freud vai dividir a vida sexual do sujeito em duas fases (o início da sexualidade é bifásico): uma primeira, cuja excitação é responsável por manter o sujeito ligado ao objeto infantil, ou seja, edipiano e que se interrompe durante o período de latência, e uma Segunda fase (a puberdade), que só tem lugar na medida em que as escolhas dos objetos da infância revelam-se inutilizáveis. (...) A escolha de objeto do período puberal é obrigada a abrir mão dos objetos da infância e começar de novo como uma corrente 'sensual'. Se estas duas correntes [afetiva e a sensual] deixarem de convergir, o resultado freqüentemente é que um dos ideais da vida sexual, a concentração de todos os desejos num único objeto, será inatingível.(Freud, 1905, p. 206)
Se o que mantém a ligação do sujeito com os objetos da infância na primeira etapa, é uma excitação, então, a eliminação desta excitação, na segunda fase, corresponde a uma renúncia aos objetos da infância. Contudo, antes de darmos seguimento à descrição das fases libidinais, caberia, esclarecer, que as fases não representam, exatamente, etapas.
Apesar de Freud ter disposto as fases no tempo, a ênfase maior recai sobre a diferença existente entre as fases e não sobre a ordem cronológica entre elas, até porque a temporalidade em psicanálise é sempre só-depois (nachträglich). Num outro aspecto, uma fase também não é uma etapa a ser superada porque a passagem de uma fase a outra não significa o completo abandono da fase anterior. Haveria sempre um resto e, justamente, o mecanismo de regressão, postulado por Freud, mostra bem este aspecto, onde, sob certas circunstâncias, o sujeito volta a recorrer a uma antiga posição libidinal, à qual, pelo menos, em tese, já deveria ter renunciado.
O caso do Homem dos Lobos (1918) é um bom exemplo clínico do mecanismo de regressão. Freud justifica o comportamento ambivalente do paciente afirmando que nenhuma posição da libido que fora antes estabelecida era, jamais, completamente substituída por uma posterior. Era antes deixada em co-existência com todas as outras e isso permitia-lhe manter uma vacilação incessante, que se mostrou incompatível com a aquisição de um caráter estável. (Freud, 1918 p. 41)
A primeira fase é descrita por Freud em termos de fases, mostrando como os elementos da sexualidade do sujeito vão se colocando ao longo do seu desenvolvimento. A primeira fase é a oral, que se caracteriza pelo prazer ligado à ingestão de alimentos e à excitação da mucosa dos lábios. O objetivo sexual consiste na incorporação dos objetos, cujo modelo, sob a forma da identificação, desempenhará um papel fundamental na vida psíquica do sujeito.
A segunda fase é a da organização sádico-anal. Esta fase é caracterizada pelo predomínio da zona do ânus e por um modo de relação de objeto ativo e passivo que ainda não podem ser descritos como masculino e feminino.
A terceira fase, denominada de fálica, foi introduzida por Freud em 1923, no artigo A organização genital infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade). O próprio título do artigo mostra que se trata de um esclarecimento relativo à teoria da sexualidade. Nesta fase a criança reconhece apenas um órgão, ou seja, o masculino. Quanto aos órgãos femininos estes jamais parecem ser descobertos. A diferença, portanto, reside entre os fálicos e os castrados. Neste sentido, diz Freud, o que está presente, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo. (Freud, 1923, p. 180)
Desse modo, Freud estabelece a diferença entre falo e pênis, colocando como caráter principal da organização genital infantil, o fato de que para ambos os sexos só entra em consideração um órgão genital, o masculino. Com isso, ele afirma, também, que a diferença entre a sexualidade infantil e a sexualidade adulta não se deve nem à subordinação das pulsões parciais à reprodução, nem ao surgimento na puberdade da escolha de objeto sexual, mas ao fato de que a sexualidade infantil é regida pela ordem fálica.
A segunda fase, descrita no último ensaio, se dá com a chegada da puberdade. As pulsões sexuais, até então auto-eróticas e parciais, encontram um objeto sexual em função da combinação das pulsões parciais sob o primado da zona genital. A pulsão sexual passa a ficar subordinada à função reprodutora. Uma vida sexual normal se dará através da exata convergência das correntes afetivas e sensuais na direção do objeto e do objetivo.
Assim, a psicanálise não é uma psicologia da infância, decorrente da má compreensão do estatuto infantil da sexualidade freudiana, levando a considerar o adulto desde a perspectiva de seu passado infantil. Conforme vimos ao longo deste texto, a sexualidade freudiana tem como fundamento a pulsão (trieb) e não o instinto. Esta é, justamente, a razão pela qual a sexualidade própria ao saber psicanalítico é infantil.
Bibliografia
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976:
- Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1892-99), vol. I.
- Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), vol. VII.
- Sobre o narcisismo: uma introdução (1915), vol. XIV.
- História de uma neurose infantil (1918[1914]), vol. XVII.
- A organização genital infantil (uma interpolação sobre a teoria da sexualidade) (1923), vol. XIX.