Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

CASO SCHREBER

OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO
DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA
O CASO SCHREBER

Andréa Martello (FAPERJ/PPGTP/UFRJ)
Renata Rosa da Costa (PIBIC/UFRJ)
Neste artigo, de 1911, pela primeira vez Freud se debruça sobre o tema da paranoia de modo mais extenso. Mantendo a suspeita de que mesmo estruturas de pensamento tão extraordinárias derivam dos mais gerais e compreensíveis impulsos da mente humana, ele defende no trabalho seu interesse (e da psicanálise) no sentido e na origem de uma ideia dita patológica. Como o nome sugere, as considerações de Freud acerca do paciente - Daniel Paul Schreber - são retiradas de sua autobiografia. O autor já no início do artigo justifica-se, afirmando que o relato dessa história pode substituir o conhecimento pessoal do paciente, uma vez que, segundo ele, os paranoicos revelam, ainda que de forma distorcida, conteúdos os quais os neuróticos mantêm camuflados. (FREUD,1911/2010, p.14)
I. HISTÓRIA CLÍNICA
Sendo assim, após as devidas ressalvas, ele inicia sua exposição do histórico clínico de Schreber, cujo adoecimento é atribuído a uma fadiga intelectual. Num primeiro momento, sua primeira doença, uma hipocondria, manifestou-se quando estava na candidatura do Parlamento, no intervalo entre 1884 e 1885. Depois disso teria vivido oito anos sem maiores complicações, exceto pelo fato de não ter conseguido ser pai. Até que em 1893 foi nomeado presidente da corte de apelação, o que segundo ele, lhe teria trazido uma sobrecarga de trabalho. Foi nessa época que apresentou alguns sonhos que foram caros à interpretação trazida por Freud. Sonhou que a doença havia retornado e ainda, numa outra vez, entre o estado de sono e o de vigília, lhe ocorreu a ideia de que deveria ser bom ser uma mulher submetida ao coito.
Foi também em 1893 que se deu seu segundo adoecimento. Desta vez o quadro contava com ideias hipocondríacas e de perseguição, derivadas de alucinações. As informações contidas no parecer da casa de saúde onde esteve nessa época relatavam, além disso, os momentos onde as ideias delirantes levavam Schreber a um estado de profunda apatia. O paciente sentia-se morto e apodrecido, via seu corpo como objeto de manipulações. O caráter místico e religioso das ideias delirantes foi sendo pouco a pouco estabelecido. Além disso, seu ex-médico, Flechsig era acusado de ser um “assassino de almas” e encarnava o papel de perseguidor.
O decurso da doença é descrito como iniciado por uma psicose aguda que se estabilizou e cristalizou num quadro de paranoia com um engenhoso delírio. Tal delírio aparece como fator que o permitiu executar as “tarefas da vida” sem maiores prejuízos. No mesmo parecer, suas ideias são descritas como “mais ou menos fixas e aparentemente inacessíveis à correção por meio de interpretação e juízo objetivos acerca da realidade.
Em 1903 Schreber publica suas memórias. Tinha o discurso organizado, assim como todas as faculdades mentais, mas não negava seu delírio e não o escondia. Considerava-se ‘encarregado de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro se transformasse de homem em mulher.
A ideia principal era a missão de salvar o mundo, tal missão seria proveniente de uma inspiração divina e só tornar-se-ia possível caso se transformasse e mulher. Estava certo de ser objeto exclusivo de milagres divinos. Tinha a sensação de que um número enorme de “nervos femininos” passou para o seu corpo e, a partir deles, uma nova raça de homens se originaria, através de um processo de fecundação direta por Deus.
O autor do parecer destaca o papel de redentor e a transformação em mulher. A hipótese médica é a do delírio como impulsionado pela ambição de ser redentor, sendo a transformação em mulher um meio para alcançar esse fim. Já para Freud, o delírio mais originário era o de transformar-se em mulher. Ele afirma:
Vemos que a transformação em mulher (emasculação) era o delírio primário, que ela foi considerada inicialmente um ato que acarretaria grave dano e perseguição, e que apenas secundariamente veio ligar-se ao papel de Redentor. (...) Colocando de maneira formal, um delírio de perseguição sexual foi posteriormente transformado para o paciente, em delírio de grandeza religiosa. ((FREUD,1911/2010, p.25)
Neste delírio, o perseguidor tratava-se do Professor Flechsig, que depois é substituído por Deus. No complexo delirante, os seres humanos se constituem por corpo e nervos, já Deus somente por nervos infinitos e eternos. Quando antes da eclosão da doença, Schreber era cético no que referia-se a religião. Freud diz que no redentor que se tornou persistia o ceticismo de outrora. A existência de Deus é ameaçada quando os nervos dos homens entram em estado de excitação intensa, atraindo os nervos de Deus. Este seria o caso dos nervos de Schreber.
O Deus do delírio não é perfeito como nas religiões além de sofrer a queixa de não compreender os homens vivos e por isso mesmo transformou- se em instigador da conspiração contra Schreber. A compulsão de pensar é a saída encontrada para que Deus não considerasse extinto seu entendimento.
A necessidade de evacuar é atribuída a milagre divino. Deus provocaria nele essa necessidade e depois o impediria de evacuar, perguntando por que ele não o fazia, ao que respondia “porque sou burro”. Mas, para o paciente, a “ordem do mundo” estava ao seu lado, e por isso o triunfo foi seu.
Em suas interpretações, Freud vai ressaltar que antes Schreber se inclinava à ascese sexual e duvidava de Deus; após a doença passou a crer em Deus e entregar-se à volúpia; sentia-se mulher de Deus. O cultivo da volúpia passa então a ser uma obrigação que, caso cumprida, cessaria a luta em seu interior e ao seu redor. Essa parte do delírio, a da transformação em mulher, é segundo Freud a mais tratado na autobiografia. (FREUD, 1911/2010, p.43)
Freud aponta o delírio de transformação em mulher como realização de sonho, mais especificamente, realização daquela ideia de outrora: a de que seria bom ser uma mulher submetida ao coito. No início Schreber revoltava-se contra a ideia, mas conciliou-se com a mesma ao assumir uma atitude feminina frente a Deus, além do dever de proporcionar ao ser divino um contínuo gozo. O papel de mulher perante o médico era inadmissível, mas a Deus ele cede e assume a tarefa de concedê-lo a volúpia pedida. A emasculação, de uma desgraça passa a ser uma graça especial, onde novos homens sairiam de seu espírito. (p.45 -47)
II. TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO
Para construir uma análise do caso Freud explora a relação de Schreber com seu primeiro médico, que foi tido no delírio como autor de todas as perseguições. Em nota de rodapé o autor expõe uma das cartas de Schreber a Flechsig, onde o paciente diz ouvir vozes que pronunciam o nome do médico e o proclamam como autor dos danos que sofreu.
O delírio de perseguição foi atenuado ao longo da doença e a emasculação que o ameaçava ganha um propósito que estaria de acordo com o que chamava de "ordem do mundo". Entretanto, os motivos pelos quais estariam acontecendo tais perseguições permanece obscuro ao longo do desenvolvimento do delírio. Freud vai dizer que isso se dá devido ao fato de o delírio, assim com o sonho, passar por uma distorção da censura (FREUD,1911/2010, p.29)
Flechsig ocupava a função de chefe dos raios e até a Deus ele influenciava. Quanto a esse papel do médico no delírio, Freud vai dizer que a importância afetiva do mesmo teria sido projetada para fora e o afeto transformado em seu oposto:
“A pessoa a que o delírio atribui tamanho poder e influência, (...) seria, no caso de ser expressamente nomeada, a mesma que antes da doença tinha significado igualmente grande para a vida afetiva do paciente, ou um substituto facilmente reconhecível. A importância afetiva é projetada para fora, como poder externo, e o tom afetivo é transformado no oposto; aquele agora odiado e temido, por sua perseguição seria alguém amado e venerado anteriormente”. (p. 55-56)
Dessa forma, o fator precipitante de sua doença é referido a uma manifestação de libido homossexual cujo objeto era Flechsig. Justamente a resistência a esse impulso libidinal teria produzido o conflito que deu origem aos sintomas. (p.58)
Segundo as observações realizadas, a doença foi ocasionada, pois, pelo surgimento de uma fantasia que tomava o médico como objeto, sendo a defesa encontrada por Schreber o delírio de perseguição, onde o indivíduo amado tornou-se o perseguidor e o conteúdo da fantasia de desejo tornou-se o conteúdo da perseguição.
Assim, vai dizer Freud que o delírio permitiu ao eu ser compensado pela megalomania. Já a mania de grandeza permitiu acolhimento da fantasia sexual reprimida. O doente explica a si mesmo a perseguição que sentia ao concluir que é uma personalidade digna de tal perseguição.
O fato de Schreber ter, no tempo de incubação da doença sonhado que a mesma retornava, leva Freud à hipótese de que este sonho relacionava-se a um anseio de rever o antigo médico, o que reforçara o argumento de que sua postura feminina dizia respeito a seu ex-médico desde o início.
De acordo com a referida hipótese, essa fantasia feminina defrontou-se inicialmente com um repúdio cuja derrocada se deu na emergência da psicose onde conseguiu meios de expressão. A lógica encontrada por Schreber foi a seguinte: por ter sido atestado a impossibilidade de sua cura, seu corpo seria submetido a uma transformação tornando-se feminino, e em sequencia seria entregue a um homem, que intencionava o abuso sexual. (1911/2010p.59)
Freud utiliza-se de aspectos presentes no decorrer de toda a trajetória de Schreber e cita a circunstância onde a presença da esposa do paranoico o protegia deste impulso homossexual. Segundo o teórico, quando a mulher tirou rápidas férias Schreber teve um dos colapsos nervosos decisivos para o desencadeamento da doença. Freud fala que em geral oscilamos entre a hetero e a homossexualidade e frustrações de um lado podem nos empurrar para o outro (p.61)
O sentimento que Schreber nutria pelo médico é relacionado ao processo nomeado de transferência. Neste, um investimento afetivo do doente é transposto, de alguém que lhe é importante, para a pessoa do médico. A hipótese levantada é a de que o doente lembrou-se ou do pai ou do irmão através da figura do médico. Na época da doença tanto um quanto o outro já haviam falecido.
Freud vai dizer que a paranoia decompõe, reduz novamente a seus elementos os produtos das condensações e identificações realizadas no inconsciente. A frequente repetição do processo de decomposição no caso de Schreber seria expressão da importância que a pessoa em apreço possuía para ele.
Dentre as associações propostas por Freud, está a de que Flechsig representa o papel de irmão de Schreber ao passo que Deus o de pai. Deus era alvo de crítica e indignação com respeitosa devoção, mesma atitude infantil que Freud observara de um nos garotos frente a seus pais.
O deus de Schreber era incapaz de aprender com a experiência, não conhecia os seres humanos vivos, pois só sabia lidar com cadáveres, manifestava poder em milagres tolos. Em contrapartida, o pai de Schreber era um renomado médico. Diante do observado Freud vai deduzir que o escárnio por Deus era o escárnio pelo próprio pai. E as objeções feitas a Deus tratar-se-ia de uma não incomum réplica infantil, onde se devolve uma recriminação recebida. (FREUD,1911/2010, p.70)
Freud aponta no texto a figura do pai como destruidor da satisfação buscada, que logo é substituída na fantasia. Em paralelo sublinha que a ameaça de castração proveniente da figura do pai revela-se no material do delírio referia a Deus, por meio da fantasia de transformação em mulher primeiro rejeitada e posteriormente aceita. Outro aspecto mencionado é o fato de a frustração de não ter tido filho poder ter participado na formação da fantasia de ser uma mulher que junto a Deus formaria novos homens povoando o mundo (p.77-78)
III. SOBRE O MECANISMO DA PARANOIA
Ao tratar do mecanismo próprio da paranoia, Freud vai ressaltar que nos casos observados tanto por ele quanto por outros psicanalistas como Ferenczi e Jung, reconhecia-se a defesa contra um impulso homossexual. Segundo ele, o delírio expõe o erotismo presente nas relações entre o indivíduo com os outros e em sua vida social de modo geral.
Nesse último trecho do artigo, Freud fala sobre as principais formas de paranoia e os mecanismos que estão em jogo nelas. Todas apresentam, segundo ele, contradições á frase: Eu (um homem) amo ele (um homem). Indo nessa direção, vai postular que no delírio de perseguição a sentença “eu o amo” se transforma em “eu o odeio”, que por projeção aparece como a seguinte percepção externa: “ele me odeia” (e por isso me persegue).
Já na erotomania, teríamos a seguinte formação: “Eu não o amo, eu amo a ela” que posteriormente se transforma em: “Eu não o amo é ela que eu amo porque ela me ama”. Outras configurações apresentadas são as encontradas no delírio ciumento do alcoólatra e da mulher. O primeiro refere-se à transformação: “não sou eu quem amo um homem – ela o ama” ao passo que no outro caso formular-se-ia: “não sou eu que amo as mulheres-ele as ama”.
Em todos os casos, uma percepção interna é suprimida e seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa.
Uma percepção interna é suprimida e, em substituição, seu conteúdo vem à consciência, após sofrer certa deformação, como percepção de fora. Essa deformação consiste, no delírio persecutório, numa transformação do afeto; o que deveria ser sentido internamente como amor é percebido como ódio vindo do exterior. (FREUD,1911/2010, p.88)
O processo de repressão é dividido em três fases no artigo. A primeira fase consiste na fixação, que é a precursora e condição necessária de toda ‘repressão’. A fixação pode ser descrita da seguinte maneira: determinado instinto ou componente instintual deixa de acompanhar os demais ao longo do caminho normal previsto de desenvolvimento, e, em consequência desta inibição em seu desenvolvimento, é deixado para trás, num estádio mais infantil.
A segunda fase da repressão é a da repressão proveniente dos sistemas considerados mais desenvolvidos do ego. Sofrem nessa fase as tendências psíquicas que despertaram uma forte aversão por parte do sistema consciente. Mas Freud explica que esta aversão, em si própria, não conduziria à repressão, a menos que alguma vinculação tenha sido estabelecida e entre as tendências indesejáveis que têm de ser reprimidas e aquelas que já o foram.
A terceira fase, característica dos fenômenos patológicos, é a do fracasso da repressão - retorno do reprimido. Este toma seu impulso do ponto de fixação, e implica uma regressão do desenvolvimento libidinal a esse ponto.
O texto traz a ideia de que o doente retirou do mundo externo o investimento libidinal. Devido a esse desinvestimento, tanto as pessoas como o ambiente de modo geral, tornaram-se indiferentes e foram explicados, como produzidos por milagre, feito as pressas. Freud vai dizer que “O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interior; seu mundo subjetivo acabou, depois que retirou dele seu amor” (p.93)
Freud chama atenção para o fato de que o desprendimento da libido se manifesta também na vida cotidiana. Entretanto, o emprego feito desta libido desprendida é que define o aspecto patogênico na paranoia, uma vez que nesse caso a libido se voltaria para o eu, gerando uma fixação no narcisismo.
O delírio é visto pela teoria como uma tentativa de cura que se realiza tendo como instrumento a projeção. Conclui-se que por meio desse recurso Schreber readquiriu relação com pessoas e mundo ainda que de maneira hostil. E ainda, o momento crucial onde há o desprendimento da libido em relação ao mundo externo só pode ser percebido através dos eventos consecutivos que deixam suas pistas, a saber, as das construções delirantes.
No caso de Schreber, o desinvestimento libidinal em relação a Flechsig foi seguido de uma condução da libido a essa mesma pessoa, mas com sinal negativo, o que aponta para o sucesso da repressão. A repressão mostra-se bem sucedida também através da convicção de que o mundo acabou e só restou o eu.
No trabalho a paranoia é aproximada da demência precoce (psicose) pelo desprendimento da libido, mas a fixação da segunda residiria num estágio mais primitivo do desenvolvimento. Nesse quadro não operaria a projeção, mas o mecanismo alucinatório.
Freud lança mão da ideia de que na paranoia há um algo que não é apenas suprimido, mas cancelado, e que retorna a partir de fora. Sua hipótese do desprendimento libidinal que retorna para o eu é tida como confirmada e concretizada na ideia de Schreber de que o mundo irá acabar porque seu eu atrai todos os raios divinos. No fim do artigo o autor compartilha conosco o seu parecer: “O futuro decidirá se na teoria há mais delírio do que eu penso, ou se no delírio há mais verdade do que outros atualmente acreditam”. (FREUD, 1911/2010, p.103)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Freud, Sigmund. (1856-1939). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p .13-107 (Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, volume 10).