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A música e o vazio: da constituição do sujeito à sublimação1

 

João Luiz Leitão Paravidini
Psicólogo e psicanalista
Professor Associado do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia / UFU (Minas Gerais, Brasil)
Professor no departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros / UNIMONTES(Minas Gerais, Brasil)
E-mail: jlparavidini@gmail.com ; paravidini@ufu.br

Anamaria Silva Neves
Professora Associada 1, Graduação e Pós-graduação, Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia / IPUFU, Campus Umuarama (Minas Gerais, Brasil)
E-mail: anamaria@umuarama.ufu.br

Letícia Maria Soares Ferreira
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia / UFU (Minas Gerais, Brasil)
E-mail: leticiapsico@yahoo.com.br


Resumo

A busca pelo entendimento sobre o que há de comovente na música, para os que a criam e para os que a contemplam, é o que motiva o presente artigo. O ato criativo de inovação é abordado a partir do conceito psicanalítico de sublimação. Além disso, quando se ressalta os elementos sonoros, o processo de constituição do sujeito também se faz caminho para esse fim. A música manifesta o desejo e denuncia o vazio deixado pela Coisa, pelo que não se consegue dizer através das palavras. É intraduzível porque diz respeito ao resto pulsional não representável pela rede de significantes. Os autores tratam a musicalidade como constituinte do sujeito e a abordam como uma possibilidade de acessar o real inominável. Deste modo, enlaçam o caráter sublimatório da música ao seu caráter artístico.

Palavras-chave: psicanálise; música; sublimação; constituição do sujeito.

 

1- Introdução

Ouvir, parar para ouvir, se ater, se deixar consumir, dançar, se tranquilizar, se emocionar: são indescritíveis e incontáveis as reações e os estados que nos colocamos diante de uma produção musical. Alguns são fisgados por um estilo ou gênero de música, outros por diferentes tipos e qualidades, mas, quase inevitavelmente, uma hora ou em outra, todos nós somos seduzidos por melodias, ritmos e harmonias que nos levam a um estado de mobilização corpórea e/ou emocional.

Se nos atentarmos para nossa vivência, costume e rotina em sociedade, podemos perceber a naturalidade com que a música perpassa pelos ambientes em que os laços estão fundados. Ela está onde se busca alegria e diversão, onde se procura calmaria e consolo, onde há culto religioso, onde se pretende ensinar, onde se exercita o corpo, nos momentos de refeição, de comemoração, de despedida, para exaltar a pátria, para manifestar torcida, para celebrar a vida ou o amor, para lamentar a morte ou a dor. São diferentes locais, momentos e finalidades, em que a música é criada e recriada na tentativa de manifestar o que não se pode representar com palavras porque ela escapa e transcende qualquer significado traduzível.

Rossini (século XVIII, apud Costa, 2011), compositor italiano, escreveu:

"A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida por todo o mundo. A harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe num certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. A música exerce uma influência feliz sobre a alma. E a alma, que concebe a música, também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais encouraçadas e de comovê-las" (Costa, 2011, p.22).

Mas, o que nos comove na música? O que nela nos encanta? O que há de belo? Porque desde tão cedo, visto que os pequenos não escapam de seu fisgamento, nos interessamos e sentimos prazer em, de alguma forma, fazer parte dela? Por que nos reunimos de forma social para o fazer ou o contemplar musical? São questionamentos e curiosidades a respeito desse "mágico" efeito que movem e alimentam a escrita deste trabalho. Tentamos alcançar certa compreensão do que há de especial nos eventos sonoros, de forma primária e primordial, e na arte musical, considerando seu lugar social e suas produções criativas e de inovação.

Com um olhar psicanalítico para a constituição e origem do sujeito podemos ressaltar a importância e a necessidade do que há de sonoro, seja voz, grito ou batimento cardíaco, para o desenrolar desse processo constitucional e, posteriormente, para suportar o desamparo inerente ao homem que, para se constituir, terá que se representar no campo do Outro. Podemos lembrar ainda a teoria freudiana sobre os processos sublimatórios, incluindo o papel das artes e, dentre elas, o da música. Façamos, então, alguns apontamentos acerca do conceito de sublimação e da teoria da constituição do sujeito destacando o que há de sonoro nela, numa tentativa de compreender o gozo envolvido na criação e contemplação musical.


2- Considerações sobre a sublimação: a música como obra

Segundo Birman (2005), a teoria freudiana acerca do conceito de sublimação se modificou com o decorrer dos anos. Inicialmente, o termo foi utilizado como um tipo particular de atividade e de criação humana que não tem relação aparente com a sexualidade, mas que desloca a força da pulsão sexual para investimentos em objetos socialmente valorizados, como as atividades artísticas. Em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905) assinala que a sublimação envolve um escoamento, para outros campos, de excitações intensas originadas das fontes da sexualidade, o que resulta em um aumento da eficiência psíquica.

Neste sentido, a primeira teoria freudiana situava a sublimação como uma defesa, considerando as grandiosas produções humanas como originárias da sexualidade infantil. Impedida de se manifestar, esta precisaria mudar de alvo, ser desinvestida de sua qualidade sexual. A necessidade de dessexualizar a pulsão seria o resultado do recalque sobre a sexualidade perverso-polimorfa.

A pulsão sublimada é sempre de origem sexual e ela obtém satisfação apenas parcial, visto que, com sua capacidade plástica, escolhe um objeto não-sexual como alvo. Freud (1914), em "Introdução ao narcisismo", ressalta que a dinâmica da sublimação depende da potencialidade de satisfação narcísica para que o objeto sexual possa ser dessexualizado e para que a criação, a obra, passe pelo ideal do criador. Nasio (1997) ressalta que as obras de arte, em suas formas acabadas, são capazes de suscitar deslumbramento de seu espectador, justamente pelos seus componentes pulsionais e narcísicos, podendo mobilizar o mesmo estado de desejo suspenso que levou o artista a este ato criativo.

Seguindo as observações de Birman (2005) a respeito das alterações conceituais freudianas sobre a sublimação, tendo visto que no primeiro momento Freud desenvolveu o conceito acreditando que existiria uma transformação do registro do sexual em outro não-sexual, coloca-se em evidência que a relação tranquila entre as exigências da pulsão e da civilização jamais seria atingida. Este conflito é de ordem estrutural. Uma vez que o sujeito jamais se descola de seu originário desamparo, ele precisa fazer uma eterna gestão de seus conflitos. Em "O eu e o id", Freud (1923) avança:

"Essa conversão de libido erótica em libido do Eu implica, naturalmente, o abandono das metas sexuais e, assim, uma dessexualização. Podemos reconhecer aqui uma importante realização do Eu na sua relação com Eros. Na medida em que ele se apodera da libido dos investimentos objetais, impondo-se como único objeto de amor e, dessexualizando ou sublimando a libido do Id, ele trabalha contra os propósitos de Eros e se coloca a serviço de moções pulsionais que se opõem a Eros. Por outro lado, o Eu terá de tolerar e participar das atividades de uma outra parte dos investimentos objetais que permanecem sob o domínio do Id" (Freud, 1923/2007, p.54).


Birman (2005) entende a segunda concepção freudiana de sublimação, como sendo o processo de transformação da pulsão de morte em pulsão sexual, não mais existindo oposição entre sexualidade e sublimação. Supõe outra economia do erotismo com possibilidades de criação que pudessem, contra a ausência fálica e a pulsão de morte, transformar angústia em desejo.
"Contudo, frente às duas espécies de pulsão, o Eu não se mantém nada imparcial. Por meio do seu trabalho de identificação e sublimação, ele ajuda as pulsões de morte a controlarem a libido no Id. Entretanto, nesse processo, ele acaba por se expor ao perigo de se tornar ele mesmo objeto das pulsões de morte e perecer. Assim, para poder prestar sua ajuda às pulsões de morte, ele teve de se preencher de libido, passando a ser ele próprio um representante de Eros, que agora quer amar e ser amado" (Freud, 1923, p.63).

Nesta segunda concepção, sublimar não mais é oposição à erotização. Pelo contrário, passa a considera a própria pulsão sexual, trazendo-a de volta do recalque, dessa maneira suspenso, como matéria essencial para a sublimação. Dessa forma, reutiliza a pulsão, pelo retorno do recalcado, na produção criativa de novos objetos que possam oferecer satisfação. Rompendo com as fixações originárias e se livrando das idealizações, sublimar é retornar às origens míticas do psiquismo e permitir novas formas de erotismo e de gozo.

"Enquanto 'ato de ruptura' a sublimação seria então uma 'sublime ação' e um ato sublime, mediante os quais e a partir do desamparo e da feminilidade outras possibilidades de erotização seriam possíveis. A criação se faria então pelo ato, que romperia com as fixações e idealizações presentes ao circuito pulsional" (Birman, 2002, p. 123).

Diante dessa necessidade de dar conta do desamparo que remete à não satisfação e à impossibilidade de responder à demanda do Outro mesmo dependendo dele, e não havendo a possibilidade de se livrar das pulsões, a sublimação trabalha no sentido de criar obras, que no contexto dos laços sociais, são valorizadas. Freud (1930) em "O mal estar na cultura" ressalta a importância da sublimação para o desenvolvimento da civilização, visto que ela possibilita as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas.

Considerando este aspecto social, podemos pensar que essas obras humanas, por serem criações respaldadas no erotismo e na sexualidade, atrairiam admiradores. Neste sentido, a produção musical seria atraente a ouvidos e corpos que se tornam engajados na sua criação ou contemplação pelo seu componente transformador de pulsão de morte em pulsão sexual.

Kehl (2002), em "Sobre ética e psicanálise", ressalta que a sublimação é um modo pelo qual o sujeito cria um objeto que represente seu desejo, para si mesmo e para o Outro, sendo este desejante singular. Portanto, o trabalho da sublimação é destinado ao Outro como representante do desejo do sujeito, buscando reconhecimento e recompensa narcísica, sendo a dimensão cultural e social da sublimação.

Mas, o que há nos sons que os tornam potencialmente "matéria-prima" dessas obras (pensando na música como obra feita de sons e silêncios)? O que há na música que a coloca diante das possibilidades sublimatórias? O que nela é valorizado e nos remete a esse tipo de transformação de energia e pulsão, ainda com possibilidade de estabelecimento de laço social?

É deste ponto que podemos avançar, principalmente com as contribuições de conceitos da teoria lacaniana (como o de objeto a, dos três registros e de Outro). É justamente o que antecede o sujeito e a sua própria necessidade sublimatória que esclarece o fato de a música ser produto e obra artística do homem. Abordar o que há de musical na constituição do sujeito talvez ajude explicar tais questionamentos.
 

3- A formação do sujeito: a música constituinte

Elementos sonoros fazem parte do universo da criança antes mesmo de seu nascimento e, como sabemos, têm um papel fundamental no seu desenvolvimento biopsicossocial. Ateremo-nos aqui ao aspecto psíquico, que nos leva a pensar na constituição do infans como sujeito propriamente dito e, ainda, aos tais elementos sonoros que compõem o cenário e mediam esse processo de vir a ser. Segundo Catão (2009), traços da sonoridade do meio intrauterino permanecem na memória da criança, sendo que os sons do corpo da mãe e as inflexões próprias de sua voz têm um papel organizador, sinalizando, desde já, o desejo do Outro como um "não-eu" do mundo externo.

Sabemos que a criança se organiza psiquicamente a partir do Outro que, por se constituir na condição de linguagem, dá sentido ao que é experimentado e sentido por ela, humanizando-a, fazendo convite para a entrada na ordem simbólica. O Outro é, portanto, estruturante. A teoria lacaniana acrescentou a voz e o olhar aos objetos pulsionais, sendo a voz aqui destacada pela sua natureza sonora, por ser um modo fundamental de presença do Outro e de mediação com o mesmo. A voz, através de sua musicalidade, ou seja, de seu ritmo, melodia, modulações e entonações, é a manifestação do desejo e do gozo do Outro. Ela chama, invoca o bebê, que se interessa pela prosódia e pelos traços melódicos presentes na voz.

Para Didier-Weill (1997a), "a música é um dos caminhos possíveis para compreender a relação mais primordial do sujeito com o Outro" (p.240). Nesse tempo primordial o sujeito recebe uma base antes de receber a palavra, de forma anterior à mediação do imaginário e do simbólico no real. Essa base precede à própria constituição psíquica. O apelo que existe na música não requer um eu que já esteja lá, mas, um sujeito que ainda não está lá, suscetível de advir. A música da voz materna transmite o significante originário, faz traço.

Didier-Weill (1997b) chama de "Nota Azul" aquela que veicula o sujeito no sentido e na presença, e que é:

"[...] simbolizante no sentido em que nos abre para o efeito de todos os outros significantes, como se fosse sua senha: efetivamente, sob o impacto da Nota Azul, o mundo começa a falar conosco, as coisas, a ter sentido: os significantes da cadeia ICS, de mudos que eram, despertam e começam, assim causados pela Nota Azul, a nos contar casos" (Didier-Weill, 1997b, p.61).


Segundo Vorcaro (2002), lembrando algumas contribuições de Charles Melman, a linguagem maternante, que é o jeito peculiar e exclusivo da comunicação entre a mãe e seu bebê, serve de matriz simbolizante para que a palavra germine. Nessa linguagem diferenciada, a mãe, com sua voz de entonação melodiosa, deixa declarado seu desejo e seu gozo. A criança é banhada por essa musicalidade que por ora ainda não é verbo, que ainda não tem um significante associado. Assim, inicia o circuito da pulsão invocante, no chamamento da criança, que posteriormente passa a “chamar” e a “se fazer chamar”, na trajetória lógica da sua constituição psíquica.

O bebê tem uma percepção das vivências do seu corpo e, para entender o mundo que o rodeia, faz uso das expressões do rosto da mãe sincronizadas com sua fala. Catão (2009) nos diz que a mãe, através de sua fala implicada de desejo, nomeia, organiza e oferta sentido ao mundo da criança. Assim, traduz a realidade e empresta seu funcionamento psíquico, constituindo-se como um espelho sonoro. Este é o primeiro tempo do circuito da pulsão invocante, o “ser chamado”. Neste momento de alienação a mãe supõe a existência do bebê como um sujeito, antecipando a sua constituição psíquica, e com isso se vê identificada com ele, depositando nele seu olhar e sua ocupação, na tentativa de encobrir a sua própria castração.

Depois deste enlaçamento alienador necessário, cabe à mãe possibilitar a separação, instaurando o segundo tempo do circuito, o “chamar”. Segundo Vivès (2009) o grito do bebê, que é inicialmente apenas uma expressão vocal de sofrimento diante da privação materna, recebe uma resposta do Outro. Dessa forma o sujeito ganha significação a partir do significante que entra no real e inaugura a função simbólica. O grito, transformado em demanda e em experiência de satisfação, implicará em sua percepção enquanto sujeito, pois ele se escuta, separado e dividido do Outro. É através de um traço acústico que isso acontece, e o bebê só se tornará falante se conseguir se ouvir através da voz do Outro, ou seja, é a voz do Outro que introduz a criança à palavra. Essa é a entrada do significante no real, o traço unário. O grito, depois de interpretado, entra na formação do significante e faz a voz cair como objeto perdido, velando sua dimensão real.

Acompanhando o que Catão (2009) abordou sobre os tempos da pulsão invocante, observamos que, no terceiro tempo, a criança busca “se fazer chamar”, de forma ativa, na tentativa de se lançar, se insinuar e provocar o gozo no Outro. Desta forma, ela descobre que a satisfação não pode ser completa, que há sempre um resto vazio que move uma busca constante do objeto eternamente faltante. Este resto é o que Lacan define como objeto a em seu Seminário 11 (1964). Esse impossível de ser alcançado é o que ele, ali, chama de real, que será o núcleo do inconsciente estruturado como linguagem.

Vemos então que nos primeiros momentos da relação, conforme Catão (2009), a mãe faz do bebê seu único objeto de gozo. Identificada com ele desenvolve um jeito particular de comunicação, com o qual expressa seu alto grau de sensibilidade e enuncia a criança como causa de seu desejo, antecipa-a enquanto sujeito e nomeia sua demanda. Após este tempo de alienação a mãe se posiciona diante de um terceiro que encarna a função paterna e permite a produção do significante da metáfora paterna. Assim, ela se distancia do bebê e instaura o tempo lógico da separação. A simbolização da alternância entre a presença e a ausência da mãe permite à criança advir como sujeito desejante. A operação simbólica de separação permite a entrada da criança no plano discursivo da linguagem.

Para Didier-Weill (1997a), o ritmo da musicalidade da voz materna funda uma alternância significante que faz referência ao registro simbólico. A alternância da voz, som e silêncio, é significante por sua característica faltante. A criança só poderá ocupar o lugar de desejado e de ideal se reconhecer a falta na mãe, se for envolvido pelos objetos a da mesma, dentre eles a voz. Essa descontinuidade indica, além de presença e ausência da mãe, a ausência na presença da mesma, o que institui uma série de representantes e significantes. De acordo com Jerusalinsky (2011), a mãe faz um intervalo na sua fala supondo que o bebê, enquanto sujeito, tem desejo e tem algo a dizer, sustentando, assim, uma alteridade que produz laço.

Vivès (2009) nomeia de ponto surdo esse lugar intrapsíquico de onde o sujeito conquistará sua própria voz. É preciso que cesse e falte a voz do Outro, ou que a criança se torne surda à voz desse Outro, para que possa advir como sujeito e dar-se voz. É na rejeição a essa voz do Outro primordial, no ensurdecer diante dela, que o sujeito pode responder ao apelo. O recalque originário torna inaudita a voz primordial. É, por esta via silenciada, que o sujeito se constitui.

Para Vivès (2012) a voz é o primeiro objeto perdido, quando deixa velar sua dimensão real pela formação do significante. Ela se torna portadora de um resto de gozo absoluto quando livre do domínio da significação. A voz, como objeto a, perde sua materialidade sonora, pois esta fica velada pela significação e isso é o que permite ao sujeito advir. Vorcaro (2002) ressalta que, além da sustentação da significância do funcionamento da fala, uma outra escala também é importante. Esta diz respeito ao canto da fala, sendo a música da língua materna imprimida na fala, fazendo lembrar o desejo que foi reprimido. Assim, o sujeito empresta sua voz ao desejo, que, ao menos assim, pode ser escutado e manifestado.

Essa voz, que transcende o evento sonoro, inclui subjetividade. A prosódia da fala, ou seja, sua musicalidade e entonação, destaca seu valor não linguístico e expele a dimensão de sentido, ressaltando o componente emocional que vai além do puro enunciado e revela elementos inconscientes do mesmo. Lacan chama essa prosódia que subverte o padrão da língua, de alíngua. O inconsciente, organizado como linguagem pela cadeia significante, sofre o recalque feito pela barreira da língua, e isso impede que tome a palavra o que lá habita. O desejo fica impedido de ser apreendido ou articulado por ela. "A prosódia é a tradução acústica da enunciação. Ela diz mais do que o conteúdo do texto (enunciado) do que o ser falante gostaria de ter dito, isto é, ela é portadora dos elementos mais inconscientes da situação" (Catão, 2009. p. 132).

Segundo Didier-Weill (1997b), o sujeito se submete à ordem simbólica que funciona como uma máscara para a pulsão de morte, inaugurando uma dimensão inaudita do inconsciente, indicando que para além das palavras há algo a se escutar. A música e o poema transmitem algo desse inaudito, "a arte e a criação artística são parte de nosso recalcado" (Didier-Weill, 1997b, p. 42).

"Isso nos remete ao fato de que, como seres de Fala, não somos assimiláveis à nossa capacidade de escuta, não podemos dizer tudo o que ouvimos, algo morre a caminho, graças ao que, aliás, o que ouvimos permanece inesgotável. Se não fosse assim, haveria a possibilidade de considerar como uma garantia de verdade o fato de falar em Nome daquele que diz, ou meio-diz, a verdade" (Didier-Weill, 1997b, p.83).



4- Considerações finais

O que há de musical na fala é porta-voz do desejo, o que pode nos indicar a razão do valor que a música adquire para cada um de nós. A entonação, o andamento e a intensidade da fala declaram o desejo implicado, mas não anunciado pela palavra. A música faz uso desses elementos para denunciar o desejo de forma ainda mais intensa. Segundo Didier-Weill (1997b), a emoção da música nos invade porque ela conjuga um estado de felicidade e uma nostalgia psíquica, relativas ao ato fundador do sujeito.

Se é do som, da voz "cantada" do Outro, que se inicia todo o circuito no qual o sujeito se constitui, voltar a ele, retomá-lo, transformá-lo, nos faz reviver o momento original em que se tinha a ilusão da plenitude. Tempo mítico em que predominava o gozo inaugural, da experiência primária de satisfação, sem as barreiras impostas pela palavra, pela ordem do simbólico que, ao mesmo tempo constitui e funda o aparelho psíquico, revelando o encontro faltoso sem solução. Assim, fica destacado o que de sonoro e, portanto, de musical, há na primeira fundamental e fundante relação que se tem com o Outro. Podemos, portanto, atentar ao papel de destaque que a sonoridade, ouvida e emitida, tem na própria constituição do sujeito. Isso certamente nos ajuda a refletir sobre a importância da obra musical, enquanto arte, enquanto algo valorizado socialmente e com a qual se vincula e se permite fazer laço.

A música pode ser então uma alternativa frente ao desamparo a que somos lançados, pode ser uma prazerosa possibilidade de "gritar" o que há de humano e de pertencente à origem, como um passeio que retorna ao real do sujeito, o que não se produz sem consequências. A palavra barra o que na música pode ser assumido e denunciado. Na relação com a música sentimos uma forma evocada de sincronia absoluta e plena, assim como a experimentada de forma alienante nos primórdios do advir do sujeito. As sonoridades musicalmente ouvidas não precisam de decodificação, nem mesmo podem ser traduzidas, pois não há palavras que as represente. Assim sendo, são reconhecidas de forma sincrônica, sem fazer parte da cadeia significante montada pelo aparato simbólico, acessando de forma direta o registro do Real. Emprestar voz para que grite o desejo de reencontro, barrado pelo recalque imposto pela interveniência do simbólico, é talvez uma importante função da música e um motivo do prazer experimentado nela.
No silêncio da música, ausência de som necessária para que haja uma sequência melódica e um desencadear andante da música, existe uma previsibilidade de retorno, pois o ritmo marcado pede um novo evento sonoro. A garantia de retorno da "presença" subentendida na música é confortante, é apaziguadora da tensão despertada pela ausência. Essa movimentação rítmica de ir e vir é estatuto do Outro e na música há uma revivência dessa alternância.

A obra musical diz sobre o desejo, sobre a Coisa que fica fora da rede de representações, sobre o objeto a faltante e almejado por quem a produz e, ainda, por quem a escolhe compartilhar, visto que a própria contemplação pode ser trabalho de sublimação. Essa arte, assim como as demais que envolvem a sublimação, é uma possibilidade de tornar audível e aceito pelo mundo o que de mais primordial e primitivo se tem do sujeito.
Segundo Kehl (2002) a pulsão de morte ultrapassa a dimensão de desejo e aponta para o vazio, pois é um resto pulsional não regulado pela rede de significantes e que pode ser enfrentado a partir da dimensão criativa do gozo, por um objeto inventado. A invenção musical utiliza como matéria prima o som remetido ao próprio objeto pulsional voz, que, como vimos, é essencial para a existência do próprio sujeito. Ela é intraduzível porque é pulsão não representável na rede de significantes, como a pulsão de morte, mas transformada em arte e sendo reinventada, pode novamente ser dividida com o Outro e reconhecida por ele.

Se, para que haja sujeito que faça laço diante da demanda de amor gerada pelo desamparo, é preciso haver desejo e pulsão não satisfeitos, se algo fica no real sem representação possível, se socialmente esses desejos precisam ser recalcados, na música eles podem ganhar ressonância, podem se tornar presentes, podem ser socialmente ouvidos, pois se tornam sublimatoriamente pulsão transformada, sendo algo da ordem do belo e atraente. Para Lacan (1959-60), "a sublimação eleva o objeto à dignidade da Coisa" (p.140). Não sendo ela, a Coisa, o objeto faz semblante de ser audível ao campo do Outro. Pela música, a Coisa, a eterna tentativa humana de reencontrar o objeto mítico da completude, o perdido e irrecuperável gozo, pode ser anunciada. Continua inatingível, mas marca presença, ganha significância; é a dignidade da Coisa.

A sublimação aponta para a satisfação não total, mas busca uma satisfação possível, com possibilidades de erotização e ruptura com as origens míticas, diante da inevitável falta não passível de preenchimento. A condição especial do material sonoro, pela notória importância desde os primórdios da constituição do sujeito, faz da criação da obra musical um grande recurso sublimatório, com potencialidade de inovação. Transforma o que se tinha de primário em nova invenção. Neste processo de ruptura o sonoro é um elemento constante e é objeto representante do desejo. Não sendo a Coisa, denuncia e grita, de uma forma reconhecida como bela, a sua falta e o vazio constituinte e angustiante. A música enquanto arte é criação e o sujeito é por ela criado. Didier-Weill (1997a) nos questiona, ao buscar compreensão sobre o encantamento causado pela música:

"Como conceber essa pressão de dizer ‘sim’ que a música ouviu? Será que ele vem de um ‘eu’ [je] do inconsciente que estava lá desde sempre, à espera de ser reconhecido, ou esse ‘eu’ do inconsciente, ao contrário, acaba de ser soberanamente, criado pela música?" (p.238).



O som nos chama e por ele também podemos chamar. A música nos comove e também por ela podemos comover. O elemento sonoro, constante por estar presente de forma anterior e posterior ao próprio sujeito, através das melodias e dos ritmos, denuncia nossos desejos e permite que surjam outras emoções. Com a arte musical podemos suspender parte do recalque, na medida certa para falar do desejo sem chegar ao desconforto, suportando o vazio e fazendo algo com ele. Esse movimento requer criatividade, deixando em segundo plano a questão do sentido da simbolização e priorizando a transferência com o impossível do real inominável. Aproxima-se, assim, da finalidade da própria experiência analítica, a mudança psíquica

 

Notas

  1. Este artigo integra um segmento específico da pesquisa de mestrado de Letícia Maria Soares Ferreira, no Instituto de Psicologia, no Programa de Pós-graduação em Psicologia Aplicada, da UFU, sob orientação do professor doutor João Luiz Leitão Paravidini.



Referências Bibliográficas

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Resumos

Music and emptiness: the constitution of the subject to sublimation

The search for understanding about what is moving in music, for those who create and those who contemplate it, is what motivates this article. The creative act of innovation is approached from the psychoanalytic concept of sublimation.  Moreover, when it emphasizes the sound elements, the process of constitution of the subject also makes way for this purpose. The song expresses the desire and denounces the void left by the thing, so if you can not say through words. It is untranslatable because it concerns the rest instinctual not representable by the network of signifiers . The authors treat the subject as a constituent of musicality and address as an opportunity to access the actual nameless . Thus , snared the character of the music sublimating his artistic character.

Keywords:psychoanalysis, music, sublimation, constitution of the subject.


La Musique et le vide: de la constitution du sujet à la sublimation

La recherche de la compréhension de ce qu’il y a d’émouvant dans la musique, autant pour ceux qui la créent que pour ceux qui la contemplent, est le but de cet article . L'acte créateur de l'innovation est approché à partir du concept psychanalytique de la sublimation . En outre, quand on met l'accent sur les éléments sonores, le processus de constitution du sujet est aussi une manière d’y arriver. La chanson exprime le désir et dénonce le vide laissé par la chose, par ce qui ne peut pas être mis en paroles. Elle est intraduisible parce qu'elle concerne le reste pulsionnel non représentable par le réseau de signifiants . Les auteurs traitent la musicalité en tant qu’élement constitutif du sujet et l'adresse comme une opportunité d'accéder au réel qui ne peut être nommé. Ainsi sont liés le caractère sublimant de la musique et son caractère artistique.

Mots-clés: la psychanalyse, musique, sublimation, constitution du sujet.

 

Citacão/Citation: PARAVIDINI, J.L.L.; NEVES, A.S.; FERREIRA, L.M.S. A música e o vazio: da constituição do sujeito à sublimação, em Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p161-172.

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
18/08/2013 / 08/18/2013.

Aceito/Accepted:
28/09/2013 / 09/28/2014.

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