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Corpo e Consciência em Nietzsche

 

Ildenilson Meireles
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Sao Carlos / UFSCar (São Paulo, Brasil)
Pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná /PUC-PR (Paraná, Brasil)
Professor no departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros / UNIMONTES(Minas Gerais, Brasil)
Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em História Social da UNIMONTES e no Mestrado Interinstitucional em Teoria Psicanalítica UFRJ/UNIMONTES (Brasil)
E-mail: meirelesildenilson@gmail.com



Resumo

O artigo discute a tese de Nietzsche segundo a qual a consciência se revela como o aspecto mais superficial dos processos que envolvem o corpo, ao contrário do status concedido a ela pela filosofia moderna como instância pura responsável pelo conhecimento e pela verdade. O pano de fundo da superação da dicotomia corpo/consciência em Nietzsche é balizado, em nossa argumentação, pela noção de fisiopsicologia. O Nietzsche-psicólogo aprofunda sua convicção de que a vida perde tanto o seu sentido transcendente, única via possível de sentido para o homem, quanto o seu sentido de autoconservação. O que deve interessar aos psicólogos, segundo a letra de Nietzsche, parece ser justamente esse fenômeno de anarquia ou decadência dos impulsos que encontra no seu oposto, a hierarquia ou precedência (Rangordnung) – no sentido de um ordenamento dos impulsos –, a possibilidade de restituição da grande saúde do corpo e da cultura.

Palavras-chave: fisiopsicologia, perspectivismo, corpo, consciência, Nietzsche.

 

Introdução

A imbricação corpo/consciência na filosofia de Nietzsche é o que se pode denominar de “fisiopsicologia”, aspecto sob o qual é possível compreender a superação da dicotomia corpo e consciência e alcançar inteligibilidade sobre os processos complexos que fazem da consciência nada mais que um efeito dos processos fisiológicos, e não, como se pensou a partir de Descartes, lugar originário do conhecimento e da verdade.  Assim, nossa argumentação tomará por base a noção nietzscheana de fisiopsicologia1 para sustentar que não se pode isolar “consciência” de processos físico-corporais em virtude do caráter dinâmico desses processos que justamente se traduzem, no final e de modo simplificado, na forma da consciência. O nosso intuito é destacar a tese de Nietzsche segundo a qual a consciência, considerada nos termos da filosofia moderna como uma instância pura responsável pelo reconhecimento da verdade, se revela como o aspecto mais superficial dos processos que envolvem um organismo. O que alimenta essa tese de Nietzsche é o fato de que a concepção que separa corpo e consciência cumpre o efeito perverso de “desnaturalização” do homem, ou seja, considera um aspecto humano, demasiado humano e surgido da necessidade e do jogo de forças travado no interior do corpo como algo de origem pura, em Deus, no Ser, ou como algo “dado” a priori na mente.  A consequência mais imprudente dessa tese essencialista é que não se pode conceber uma consciência a priori ou pura sem, com isso, empobrecer as potencialidades do corpo chegando ao limite da negação deste como uma espécie de entrave ao conhecimento verdadeiro.

O pressuposto fisiológico

Comecemos pela questão geral da fisiologia. À época de Nietzsche, segunda metade do século XIX, já eram bastante difundidas as concepções acerca dos processos que envolvem os organismos, principalmente por meio da Biologia. A questão fundamental girava em torno da noção de “evolução”, noção desencadeada pela teoria de Darwin sobre a seleção natural, que Nietzsche tomou conhecimento a partir da leitura de autores que se opunham a Darwin ou modificaram sua teoria. É o caso, por exemplo, de Karl Ludwig Rütimeyer, Wilhelm Roux e William Henry Rolph2, autores muito frequentados por Nietzsche e dos quais ele soube tomar de empréstimo vários elementos teóricos para formular sua doutrina da Vontade de poder. O que interessa a Nietzsche no contexto dessa discussão não é propriamente o problema da evolução do organismo, preocupação propriamente científica, mas buscar as condições de surgimento e desenvolvimento da moral e da consciência a partir das análises dos naturalistas, ou seja, sua preocupação era predominantemente filosófica. É a partir da leitura desses autores que Nietzsche articula suas teses acerca da origem e desenvolvimento da consciência no registro de uma “naturalização” da mesma, isto é, no registro de uma fisiopsicologia. Nietzsche usa pelo menos dois sentidos para o termo fisiológico: um que diz respeito ao sentido propriamente biológico, herdado da ciência de sua época e que aponta para as funções orgânicas em geral; outro que diz respeito ao caráter agonístico da luta dos impulsos por crescimento e aumento da potência. É certo que Nietzsche baliza com os dois sentidos, mas há predominância do segundo sobre o primeiro sentido do termo, como veremos mais adiante, em função de algumas alterações feitas pelo filósofo nas teses naturalistas. Isso porque, mesmo levando muito a sério seus estudos científicos, sua busca de orientação em conceitos firmados na ciência, o que interessa a Nietzsche são menos os resultados alcançados pela ciência do que o rigor do método experimental aplicado às questões filosóficas. No fundo, o que interessa ao filósofo alemão não é outra coisa senão recuperar, no terreno da filosofia, o sentido positivo do corpo a partir de um expediente muito mais convincente do que aquele que o despreza como algo inferior à alma ou à consciência. É nesse sentido de uma valoração metafísico-cristã que cristalizou a ideia de que o corpo é de valor inferior à alma, ou que os processos que envolvem as disposições físico-corporais devem ser desprezados em função de processos mais elevados, mais nobres, e por isso de valor superior ou inestimável, que Nietzsche formula sua crítica corrosiva à tradição filosófica moderna que cultua a consciência como instância pura, metafísica ou transcendental, e que, além disso, concede a ela, como instância privilegiada na ordem das faculdades da razão, o poder de acesso ao verdadeiro conhecimento. Portanto, já podemos antecipar, separar a consciência do corpo para conceder a ela todo o privilégio de “descobrir” a verdade e deixar o corpo relegado ao plano do “incerto”, do “impuro”, do “negativo”, não passa, para Nietzsche, de uma estratégia moral do instinto de conservação do tipo fraco, impotente, atrofiado, diagnosticado, fisiologicamente, como “doente”.


O corpo como grande razão

Para Nietzsche, tanto o problema do conhecimento quanto o problema da moral podem ser colocados de dois pontos de vista: a grande e a pequena razão. A grande razão pode ser caracterizada como sendo o lócus das disposições físico-corporais, sua complexidade, suas configurações, sua hierarquia. A pequena razão, ao contrário, pode ser caracterizada como sendo aquilo que se denominou na filosofia moderna de “estrutura formal de conhecimento” (razão pura, sujeito puro, eu, consciência pura). Na pequena razão se situa o plano de uma interpretação a partir de instrumentos lógico-conceituais cuja pretensão à universalização de suas operações aventa para si a condição de “fundamento” da totalidade de condições da vida. Aqui reside um aspecto importante da crítica de Nietzsche. O plano da razão é aquele recoberto pela perspectiva da consciência, do ato da própria razão de tomar consciência da realidade de seus objetos (sua exterioridade) e tornar consciente para si mesma o movimento pelo qual ela, a razão, conhece algo (sua interioridade). Portanto, a consciência, como sabemos, tem um duplo sentido: apreensão dos objetos externos à razão na medida em que o ato de conhecer da razão implica justamente tomar consciência dos seus objetos (ou pelo menos saber que eles não são passíveis de conhecimento); articulação da razão consigo mesma na medida em que é preciso considerar que não se está no erro e que o sujeito racional pode, a partir da autoconsciência, determinar a validade objetiva de seus procedimentos e assegurar a consciência racional como instância única de onde se podem retirar os princípios do conhecimento.

Na grande razão, ao contrário, se situa um plano de interpretação que considera, antes de tudo, a perspectiva enquanto modo de abordagem das condições da vida. A noção de perspectiva ocupa aqui um lugar importante por funcionar como operador teórico que desconcerta a interpretação segundo a qual a razão é o único elemento capaz de conhecer e que todo conhecimento produzido aí tem a garantia da veracidade. O perspectivismo, como considera Nietzsche, não é outra coisa senão a compreensão de que todas as nossas avaliações são limitadas e sempre fadadas ao fracasso, mesmo quando se pretendem universalizantes. O perspectivismo, portanto, é uma teoria do conhecimento que leva em conta o fato de que todo conhecimento é fruto de avaliações que, por sua vez, são fruto de interpretações fisiológicas. Diz Nietzsche: “Em verdade, a interpretação mesma é um meio de se tornar senhor sobre algo (o processo orgânico pressupõe ininterruptamente o interpretar” (KSA XII, 2[148])3,. Sob esse aspecto é importante destacar que a tese perspectivista de Nietzsche leva em conta que toda perspectiva se caracteriza por sua falibilidade, sua limitação e seu erro4. A própria noção de interpretação já orienta essa concepção. Não se pode pretender a Verdade quando se interpreta; não se podem pretender valores universais quando se avalia; não se pode pretender conhecimento verdadeiro quando o que determina nosso conhecimento não é um órgão específico para conhecer, mas avaliações provenientes do jogo de forças perpetrado pelos impulsos. Ora, se toda avaliação é limitada, se toda interpretação é perspectiva, se toda perspectiva se assenta no erro, como levar a sério o fato de que a razão opera sempre com conceitos universais (res cogitans, res extensa, res infinita)? Como aceitar o argumento cartesiano de que a razão, unicamente ela, e não o corpo, constitui o núcleo de onde são derivadas as verdades metafísicas e os princípios do conhecimento científico? Como admitir, com Kant, que a natureza se regula, toda ela, por meio de nossas faculdades a priori e que o Entendimento puro tem o papel de legislar por meio de conceitos que expressam necessidade e universalidade? Como comprar, senão dogmaticamente, a ideia de que a consciência ocupa, nas filosofias de Descartes e Kant, lugar privilegiado de instância pura cuja natureza é a determinação da validade objetiva do nosso conhecimento (das ideias metafísicas em Descartes, dos objetos fenomênicos em Kant)? O argumento de Nietzsche é que parece ser impossível uma demonstração da existência de uma unidade substancial uma vez que essa tentativa de fixação de um eu não é senão ilusão gramatical, na medida em que é a redução de uma multiplicidade de afetos, sentimentos, pensamentos num conceito que se pretende puro.


O “eu” como ficção


É em relação a essa dimensão alcançada pela noção moderna de sujeito que se situa a crítica de Nietzsche.  Esse alcance da noção moderna de sujeito coloca um dos problemas centrais da genealogia nietzscheana na medida em que esta considera o “eu” como invenção (Erfindung) e não como algo “dado”, fixo, como uma substância, como aparece na filosofia cartesiana, ou como consciência originária da apercepção transcendental, como aparece na filosofia crítica de Kant. Um dos argumentos de Nietzsche contra o privilégio dado ao eu enquanto condição a priori de todo acontecer é que suas faculdades não só não estariam postas como sendo capazes de fornecer os princípios do conhecimento, no sentido de que haveria um impulso natural ao conhecimento, mas essa estrutura subjetiva teria sido forjada, “falseada” como instrumento a serviço de um preconceito moral:

“Gradualmente foi se elevando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. De fato, para explicar como surgiram as mais remotas afirmações metafísicas de um filósofo é bom (e sábio) se perguntar antes de tudo: a que moral isto (ele) quer chegar? Portanto não creio que um “impulso ao conhecimento” seja o pai da filosofia, mas sim que um outro impulso, nesse ponto e em outros, tenha se utilizado do conhecimento (e do desconhecimento!) como um simples instrumento” (JGB/BM, § 6).


Esse texto de Nietzsche parece ser bastante claro acerca daquilo que motiva a busca do conhecimento: não um impulso natural ao conhecimento, o que exigiria um órgão próprio para conhecer uma verdade em si, mas intenções morais, interpretações fisiológicas, avaliações morais, perspectivas morais para fins de autoconservação (no caso dos fisiologicamente debilitados, os doentes) e de aumento da potência (no caso dos fisiologicamente saudáveis). O impulso ao conhecimento aparece na passagem acima como efeito de outro impulso, o impulso a avaliações morais, a perspectivas vitais de crescimento ou de degenerescência, de expansão da vida ou de autoconservação. Aqui reside um aspecto importante: quando Nietzsche toma o corpo como fio condutor das nossas estimativas de valor sobre a vida, sejam elas epistemológicas, morais ou estéticas, ele considera o corpo como o lugar onde as perspectivas se desenvolvem e se decidem. Fisiologicamente falando, em sentido nietzschiano, um corpo doente é aquele no qual a luta entre as forças se caracteriza pela desagregação, pela ausência de centro e de coordenação, pela perspectiva da conservação como única perspectiva válida (o conhecimento da Verdade, o Bem como valor supremo, o Belo-em-si como ideal). Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche apresenta elementos substanciais de como os “melhoradores” da humanidade (Sócrates e Platão, cristianismo, Kant, Moral da compaixão) tornaram possível o adoecimento do animal-homem. Isso significa, em última instância, que o adoecimento diz respeito a um processo de enfraquecimento viabilizado pela dor, pelo sofrimento, pela privação: “Fisiologicamente falando: o único meio de enfraquecer a besta em meio à luta contra ela pode ser adoecê-la” (GD/CI “os ‘melhoradores’ da humanidade” § 2). Um corpo saudável, aquele que nutre a “grande saúde”, ao contrário, é aquele no qual a luta entre as forças compõe uma hierarquia, ou seja, há sempre aí um impulso (um conjunto de impulsos) que domina outros impulsos no sentido de dar uma direção ou certa finalidade às ações no sentido do aumento de potência. Ou seja, para Nietzsche, as coisas se decidem em termos de conservação e de aumento de potência. Quanto mais ordenados forem os impulsos, quanto mais houver conquista do senso de direção e de autodomínio, mais um corpo tende a aumentar sua potência.

Portanto, podemos adiantar que não é somente a dicotomia corpo e alma promovida pela razão que é rejeitada por Nietzsche, mas a razão mesma, enquanto órgão de conhecimento que se desloca do âmbito do corpo para se tornar “instância pura” de conhecimento, que é objeto da crítica. Em função dessa separação inicial, toda dicotomia forjada no âmbito da razão acarretará uma prevalência do elemento passível de ser recoberto pela consciência. A recusa da metafísica pelas determinações físico-corporais e de suas condições enquanto âmbito impróprio a toda possibilidade de conhecimento verdadeiro levará Nietzsche a retomar, contra os adoradores do “eu”, aquilo que constitui, segundo ele, o eterno jogo do vir-a-ser de afetos que desenham, numa ordem hierárquica temporária, isto que denominamos corpo. Na primeira parte de Assim falou Zaratustra, há um texto que se chama “Dos desprezadores do corpo”. Este texto apresenta justamente a ideia segundo a qual a consciência, a pequena razão, é somente um “brinquedo” da grande razão: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um só pastor. Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, a qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão” (ZA/Za I, Dos desprezadores do corpo).



Corpo e perspectivismo


A disputa de Nietzsche com as filosofias da consciência não se dá no nível de uma mera inversão dos pólos corpo e alma no sentido da importância ou do valor. Ou seja, Nietzsche não pretende inverter os pólos e atribuir ao corpo o valor que se atribuía à consciência mantendo a dicotomia. Trata-se de uma ampliação da noção de corpo com o argumento de que nele se dá uma indeterminação quantitativa das forças que abre espaço para a consideração interpretativa também indeterminada, cuja riqueza se dá justamente pela ampliação das perspectivas interpretativas instaurada pela luta entre os impulsos. Além disso, uma indeterminação qualitativa na medida em que é preciso levar em conta que aquilo que chega à consciência não passa de um efeito muito pálido de todo o processo de interpretação desencadeado pelos impulsos. Por isso, os aspectos mais ricos e mais fecundos de nossas interpretações e avaliações encontram-se nos bastidores da pequena razão, isto é, no corpo. A questão é menos inverter a relação entre os pólos corpo e alma do que dissolver essa relação com a eliminação da “velha alma” dos filósofos. A grande razão, o corpo, não exclui a consciência, mas a engloba na medida em que ela é um efeito da luta entre os impulsos.

A questão que gostaria de insistir aqui é de que a noção nietzscheana de perspectivismo, no sentido de uma teoria do conhecimento que se assenta na dinâmica dos impulsos, destitui o privilégio da consciência e da razão como instâncias puras para colocá-las no plano do devir dos afetos que compõem a grande razão, o corpo. A implicação dessa tese é que a consciência fica reduzida a um mero instrumento do corpo, um efeito da luta travada pelos impulsos que encontram, por sua vez, na consciência, uma “utilidade” para fins de conservação. Na medida em que a finalidade da vida passa a ser representada em termos de conservação, e não mais de aumento da potência, a consciência passa a ser considerada como algo privilegiado em relação ao corpo e determinante em relação ao conhecimento. Nesse sentido, a preferência de Nietzsche pela abordagem perspectiva se dá justamente em consonância com o plano em que se situa, isto é, a grande razão, o corpo como aquilo que avalia e interpreta. Essa tomada de posição de Nietzsche se coloca em confronto direto com a metafísica moderna na medida em que, com o privilégio do “sujeito”, todas as “funções” essências da vida passam a fazer parte de um núcleo meramente racional ou teórico. A intenção de Nietzsche é mostrar que as atividades destinadas ao “cogito” ou à “razão transcendental” não passam de mera reprodução das atividades fisiológicas e que pensar, antes de ser uma atividade natural da razão, é um afeto, uma exigência extraída da relação beligerante entre os impulsos, uma atividade natural, se for possível afirmar, do corpo. Com isso, Nietzsche pretendeu mostrar, desde A Gaia Ciência, que o plano da consciência não é senão uma derivação de estados “inconscientes”, cujo lugar de atuação é primeiramente o corpo, e que, por isso, a consciência não passa de órgão de simplificação para fins de fixação daqueles estados ou impulsos de ‘conservação’ de determinadas interpretações. Uma passagem da seção 354 desse livro é enigmática acerca disso. A seção é intitulada “Do gênio da espécie” e apresenta uma das mais belas análises sobre a gênese e o desenvolvimento da consciência. O argumento de Nietzsche nessa seção é de que “pensar” não é uma atividade restrita ao domínio da consciência e que esta constitui apenas a parte superficial da atividade do pensamento. Diz ele: “Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar, poderíamos igualmente ‘agir’ em todo sentido da palavra: e, não obstante, não disso precisaria nos ‘entrar na consciência’ (como se diz figuradamente). A vida inteira seria possível sem que,  por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento – também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isso soe para um filósofo mais velho. Para que então consciência, quando no essencial ela é supérflua?” (FW/GC, § 354). Toda a argumentação nessa seção é para sustentar que a consciência só mantém sua utilidade para fins de comunicação de determinados estados pela linguagem e que, além disso, a conservação de um determinado tipo de vida – a vida decadente – encontra na consciência sua garantia.


O corpo como luta entre impulsos


Vejamos en passant como se articulam os conceitos de força e vontade de poder no pensamento de Nietzsche, com o intuito de alimentar a nossa expectativa de compreender a questão que estamos perseguindo, o corpo como grande razão. Foi somente a partir do rompimento com o programa cultural do músico Richard Wagner em 1876, mesma época em que se distancia da concepção schopenhaueriana, que Nietzsche, falando agora uma linguagem própria, começa a formular suas próprias questões. Seu interesse pelas ciências naturais, especialmente a biologia e a física, lhe proporcionou, a partir de Humano demasiado Humano, elaborar as teses fundamentais de seu pensamento: eterno retorno, vontade de poder, além-do-homem e transvaloração de todos os valores. Todos esses conceitos estão numa relação direta com outro não menos importante, o conceito de força. De modo mais específico, o conceito que sustenta a concepção nietzscheana do corpo como fio condutor da nossa “vida psíquica” é o conceito “vontade de poder”.

É somente com a introdução desse novo projeto, “A vontade de poder. Ensaio de uma nova interpretação de todo acontecimento” (KSA XI, 39 [1]), que Nietzsche consegue apresentar uma alternativa à concepção mecanicista, predominante em sua época. Retomando o conceito de força da física e alterando substancialmente o sentido do conceito, o filósofo é levado a conceber um caráter intrínseco da força cuja dinâmica permite buscar sempre um alargamento do seu âmbito de atuação. “Força” (Kraft), agora em sentido propriamente nietzschiano, só pode ser dita no plural. Do mesmo modo que não se pode admitir uma força infinita, não se pode admitir uma força em-si, una e indivisível. A dinâmica das forças é um querer-tornar-se-mais-forte caracterizado pela busca incessante de mais poder (Macht). É justamente nesse querer-tornar-se-mais-forte próprio da força que Nietzsche encontra o mote decisivo para se distanciar definitivamente da concepção científica: “Esse conceito vitorioso de força, graças ao qual os nossos físicos criaram Deus e o mundo, tem necessidade de um complemento; é preciso atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade de poder” (KSA XI, 36 [31]). Vontade de poder é como Nietzsche chama esse querer-tornar-se-mais-forte da força. Em decorrência dessa nova concepção de força, identificada à vontade de poder, o mundo será concebido doravante como “[...] uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo [...]” (KSA XI, 38 [12]). Vontade de poder, stricto sensu, é a força caracterizada pelo impulso de domínio, pela luta ininterrupta por mais poder e dominação, pela superação de resistências. Considerada nesses termos gerais, a vontade de poder recobre todo o conjunto dos eventos naturais, humanos e culturais. No sentido propriamente humano, o corpo pode ser considerado como um acúmulo de força, como uma monstruosidade de força agindo sobre força. Tanto o aspecto biológico (a vida funcional, o organismo) quanto o aspecto social (um povo, uma cultura) e psicológico (o indivíduo) são recortados pela vontade de poder. Por isso Nietzsche pode ligar onde Descartes havia separado. Isso significa dizer, em última instância, que não estamos autorizados a separar corpo e consciência segundo o critério das formas puras e enquadrá-los no registro da diferença de natureza, isto é, uma empírica, outra pura. Afetos, sentimentos, pensamentos, representações, avaliações morais, conhecimento lógico-racional não passam de expressões da vontade de poder, do jogo de forças, da luta entre os impulsos travada nesse campo de batalhas denominado corpo. Além disso, o modo como se organizam os vários órgãos com suas funções “fisiológicas” determinadas nada mais é do que resultado do processo de luta desencadeada pela necessidade de ampliação de domínio das forças, cada uma querendo sempre mais poder e dominação sobre a outra que resiste. Esses dois planos, o dos afetos, pensamentos, avaliações e o das funções dos órgãos, constituem o que Nietzsche denomina “fisio-psicologia”. Num fragmento póstumo escrito no verão-outono de 1884, Nietzsche dá uma pista importante acerca da pluralidade do corpo: “o homem como multiplicidade: a fisiologia nada mais faz que indicar um maravilhoso comércio entre essa multiplicidade e o arranjo das partes sob e em um todo. Mas seria falso, disso, inferir necessariamente um Estado com um monarca absoluto (a unidade do sujeito)” (KSA XI, 27 [8]). O corpo como grande razão, como considera Nietzsche, é justamente essa complexidade de forças atuando umas sobre as outras sem um pressuposto subjetivo, uma razão pura, uma consciência, um ser uno e imutável e sem uma vontade livre. Trata-se de uma pluralidade de sensações, afetos, pensamentos, sentimentos, que vem quando ‘eles’ querem, e não quando “eu” quero. Portanto, não se pode separar, em Nietzsche, corpo e consciência. Não há a consciência como instância pura a priori de onde decorre todo o poder de conhecer ou julgar independente do que acontece no bas fond da própria consciência. Ao contrário, a consciência, como órgão centralizador, só faz sentido como produto de um certo tipo de avaliação já perpetrada pela interpretação dos impulsos. No limite, pode-se considerar a consciência e seus correlatos como sendo todos de origem “impura”, como tendo surgidos da luta entre as forças desencadeada pela vontade de poder.  A importância do conceito de vontade de poder para uma compreensão da relação corpo/consciência em Nietzsche está em que, identificada com a própria vida, a vontade de poder abre a possibilidade de uma nova consideração sobre a existência na medida em que a luta, o embate entre as forças aparece, por um lado, como dístico de tudo o que vive. Se apenas com o conceito de eterno retorno estávamos presos a uma repetição cíclica dos mesmos acontecimentos, agora, com o conceito de vontade de poder, escapamos, ainda que provisoriamente, do fardo da repetição, eliminamos o finalismo científico e nos aproximamos do caráter dinâmico da vida sustentado pela incessante luta que subjaz a tudo o que vive. Por outro lado, Nietzsche toma a vida como um caso particular da vontade de poder, estabelecendo assim que a luta por mais poder não é algo característico apenas do que vive, mas de tudo o que existe. Não mais a vida, somente, mas tudo é vontade de poder. Nos termos de Nietzsche, “Esse mundo é vontade de poder – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de poder – e nada além disso!” (KSA XI, 38 [12]). Ora, se tudo se reduz à vontade de poder, se a vida não é senão um caso particular dessa mesma vontade, tem-se de concluir necessariamente que “todas as coisas” estão subsumidas a uma mesma lógica, a uma mesma dinâmica cuja expressão máxima é o pluralismo, a luta incessante entre as forças e o perspectivismo. Com isso, o Nietzsche-psicólogo aprofunda sua convicção de que a vida perde tanto o sentido transcendente como a única via possível de sentido para o homem quanto o seu sentido de autoconservação. Transcendência e autoconservação são duas formas degeneradas de pensar, instintos dominantes somente naqueles homens nos quais a vontade de poder se atrofiou de tal modo que eles não conseguem mais viver sem um ideal ultramundano, um Deus, uma verdade, uma razão pura, uma consciência, um ego.

“Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como a relação entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença. Pois, desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa: mas há aqui uma notável diferença: Num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no segundo, ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos. Mas naquele outro caso, mais frequente, em que as crises fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes – e talvez os pensadores doentes predominem na história da filosofia –: que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doença? Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível” (FW/GC, Prefácio § 2).


Portanto, é sob a égide dessa estrutura complexa, “pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” (JGB/BM, § 19), que se coloca uma das questões mais fundamentais, em Nietzsche, acerca da relação corpo/consciência. Pelo texto citado acima, não é difícil deduzir em que estado se encontra para ele a Cultura, na medida em que suas determinações mais importantes foram balizadas pelas perspectivas universalizantes dos filósofos em geral. A “doença”, no sentido da décadence cultural, do amolecimento do homem, da “depressão” perpetrada pela moral cristã, não é outra coisa senão a expressão mais direta da falta de centro de gravidade e coordenação dos impulsos manifestos no homem moderno. O que deve interessar aos psicólogos, segundo a letra de Nietzsche, parece ser justamente esse fenômeno de anarquia ou decadência dos impulsos que encontra no seu oposto, a hierarquia ou precedência (Rangordnung) – no sentido de um ordenamento dos impulsos –, a possibilidade de restituição da grande saúde do corpo e da cultura.

 

Notas

  1. Acerca dessa noção em Nietzsche, acompanhamos a interpretação de WÖTLING, 2013, p. 122, segundo a qual é preciso “distinguir com cautela dois pontos de vista: a fisiologia concebida como explicação da verdade dos processos orgânicos e a fisiologia concebida como linguagem simbólica, como interpretação, isto é, necessariamente como falsificação, simplificação, assimilação, que busca dominar os fenômenos orgânicos, esse domínio sendo obtido, por fim, através da elaboração de uma representação desses fenômenos que são arrancados da esfera do misterioso e do absolutamente desconhecido. E é esse segundo ponto de vista, e apenas esse, que interessa a Nietzsche: é preciso entender sempre sua ‘fisiologia’ em relação ao paradigma fundamental da linguagem e da filologia, da qual ela constitui uma metáfora”.
  2. FREZZATTI JÚNIOR (2001; 2006) tem se dedicado a alguns aspectos da crítica de Nietzsche a Darwin, mas também a influência sofrida por Nietzsche de várias tendências do naturalismo, tais como Haeckel, Carl Naegeli, W. Roux, W. H. Rolph e C. L. Rütmeyer. Essa mesma senda interpretativa da relação de Nietzsche com o Naturalismo foi percorrida, talvez de modo inaugural, por RICHTER, 1911, além de trabalhos mais recentes por STIEGLER, 1998; 2001.
  3. O texto completo acerca do caráter interpretativo da vontade de poder se encontra no fragmento póstumo do Outono de 1885 – Outono de 1886, em KSA, 12[148]. Adotamos aqui a forma convencional para citação da obra de Nietzsche. No caso das obras publicadas ou preparadas para a publicação, indicaremos as inicias do título original/título da tradução brasileira, como, por exemplo, JGB/BM, que se refere ao texto de Para Além de Bem e Mal. Para os fragmetos póstumos utilizaremos a Kritischestudienausgabe (KSA), organizada por G. Colli e M. Montinari para as obras completas de Nitzsche, com indicação do volume em algarismo romano e número do fragmento conforme ordenação da edição.
  4. Se admitirmos que o erro, nos termos de Nietzsche, não constitui nenhuma objeção à razão e ao conhecimento, portanto que estaríamos o tempo todo atolados no erro, o projeto de uma filosofia crítica que toma a razão como “grandeza dada” estaria desde o início condenada ao fracasso. No entanto, foi justamente a sobreposição desse modo de compreensão que se tornou inconcusso no espírito da filosofia moderna e introduziu, no conhecimento, “a mentira da unidade, a mentira da materialidade, da substância, da duração” (GD/CI A razão na filosofia, § 2), a mentira, portanto, do sujeito puro cartesiano, da unidade da vontade de Schopenhauer, da coisa em si kantiana.



Referências Bibliográficas

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NIETZSCHE, F. (1988) Sämtliche Werke. Kritischestudienausgabe (KSA) in 15 Einzelbänden. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.

NIETZSCHE, F. (1887) Além do Bem e do Mal (JGB/BM). Tradução de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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RICHTER, Claire. (1911) Nietzsche et les Théories biologiques contemporaines. Paris: Mercure de France,1911.

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STIGLER, B. (2001) Nietzsche et la biologie. Paris: P. U. F, 2001.

WOTLING, P. (1995) Nietzsche e o problema da civilização. Tradução de Vinicius de Andrade. São Paulo, Editora Barcarolla, 2013.

 

Resumos

Body and Consciousness in Nietzsche

The article discusses Nietzsche’s thesis that consciousness reveals itself as the most superficial aspect of the processes that involves the body, as opposed to the status granted to it by the modern philosophy as pure instance responsible for the knowledge and the truth. The background of overcoming of body/consciousness dichotomy in Nietzsche is marked, in our argumentation, by the notion of Physiopsychology. Nietzsche as a psychologist deepens his belief that life loses its transcendent sense, the only possible path of meaning for man, as well as his sense of self-preservation. What should be of interest to psychologists, according to Nietzsche’s writing, seems to be exactly this phenomenon of anarchy and decadence of impulses which finds in its opposite, the hierarchy or precedence (Rangordnung) – meaning an arrangement of impulses - the possibility of restituting the great health of body and culture.

Keywords: physiopsychology, perspectivism, body, consciousness, Nietzsche


Corps et Conscience chez Nietzsche

L'article discute la thèse de Nietzsche selon laquelle la conscience se révèle comme l'aspect le plus superficiel des processus impliquant le corps, contrairement à la situation qui lui est conférée par la philosophie moderne comme instance pure responsable de la connaissance et de la vérité. L’arrière plan du dépassage de la dichotomie corps / conscience chez Nietzsche est jalonné dans notre argumentation par la notion de physio-psychologie. Le Nietzsche-psychologue approfondit sa conviction que la vie perd autant le sens transcendant, la seule voie possible de sens pour l'homme, que son sens de l'autoconservation. Ce qui devrait être d'intérêt pour les psychologues, selon la lettre de Nietzsche, c’est justement ce phénomène d'anarchie ou décadence des impulsions qui se trouve á l’ opposé, la hiérarchie ou précédence (Rangordnung) – dans le sens d'une ordonnencement  d'impulsions – la possibilité de restitution de la grande santé du corps et de la culture.

Mots-clés: physio-psychologie, perspectivisme, corps, conscience, Nietzsche.

 

Citacão/Citation: MEIRELES, I. Corpo e consciência em Nietzsche, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p148-160.

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
05/12/2013 / 12/05/2013.

Aceito/Accepted:
04/02/2014 / 02/04/2014.

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