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O homem e Ⱥ mulher na operação com o semblante

 

Ana Maria Medeiros da Costa
Psicanalista
Pós-doutora pela Universidade de Paris XIII (Paris, França)
Docente da UERJ e coordenadora da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência (Rio de Janeiro, Brasil)
Autora dos livros: “Clinicando” (APPOA, 2008); “Sonhos” (Jorge Zahar, 2006), “Tatuagem e marcas corporais” e “Atualizações do sagrado” (Casa do Psicólogo, 2003)
E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com

 

Flavia Bonfim
Psicóloga, Psicanalista
Mestre em Pesquisa e clínica em psicanálise / UERJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Docente do curso de Pós-graduação de Psicanálise e Saúde Mental / UNILASALLE (Niterói, Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: flaviabonfimpsi@yahoo.com.br

 


Resumo

No Seminário 18, Lacan formaliza que o discurso é um semblante, sendo ele uma maneira de organizar o gozo. O semblante é um efeito, quer no plano da imagem, quer no plano do significante, que busca dar conta do lado insuportável da disjunção entre homens e mulheres. Ou seja, um recurso para operar com a ausência de relação sexual. Essa disjunção deriva do fato do homem, que ele nomeia como touthhomme, encontrar seu lugar na relação sexual por meio do significante fálico. A mulher, sem um recurso simbólico para fundamentar seu ser, só pode ocupá-lo na qualidade de uma mulher – o que vem demarcar que ela é não-toda referida à função fálica. Isso nos permite pensar, então, esse seminário como uma “preparação”, uma “escritura”, que Lacan realiza para chegar até as fórmulas da sexuação no Seminário 20.

Palavras-chave: semblante, relação sexuada, real, função fálica.

 

O semblante – nem falso, nem verdadeiro

Lacan (1971), ao esclarecer sobre o que quer demarcar com o termo “semblante” no enunciado do título do Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante, nos propõe primeiramente que não quer dizer “semblante de discurso”, pois isso remeteria à posição lógico-positivista. Nesta, um significado é submetido à prova para que se decida por um “sim” ou “não”, sendo aquilo que não pode ser enquadrado nesta prova definido como não querendo dizer nada.

Levando em consideração a experiência analítica, mais precisamente a interpretação, a posição do positivismo lógico é insustentável. Não podemos submeter a interpretação a esta prova. Sua verdade só é atestada no a posteriori, visto que ela “Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida” (Lacan, 1971, p. 13). Mais ainda, Lacan se encarrega de nos precisar que não existe semblante de discurso, não existe metalinguagem para julgá-lo, do mesmo modo que não existe Outro do Outro, verdade sobre a verdade. Tudo que é discurso é semblante. No discurso não se edifica nada, diz Lacan, que não tenha o significante na base e o status deste é idêntico ao do semblante. O significante é um semblante.

Desdobrando o tema, Lacan (1971) nos envia aos desenvolvimentos obtidos pela lógica de Aristóteles, no que ela enfatiza a função hipotética de atribuir valor de verdadeiro ou falso à articulação de uma hipótese. Ele também comenta impressionado que ninguém – até o ponto que ele saiba – tenha se utilizado do recurso expresso na forma hipotética na acepção negativa. Discutindo esse ponto, assinala que o juízo de atribuição não prejulga a existência, ao passo que a negação implica na existência do que é negado.

Logo, “de um discurso que não fosse do semblante” afirma que o discurso é do semblante. Tudo que é discurso não pode se mostrar, senão pelo semblante. “Um discurso é uma maneira de organizar o gozo, de colocá-lo em circulação” (Brodsky, 2008b, p. 173). Para regular e distribuir o gozo – o que é impossível, convém dizer – recursos simbólicos e imaginários são aplicados, sendo nisto que um discurso é sempre semblante. Diz Lacan que “o gozo só se interpela, só se evoca, só se saprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência” (1972-73, p. 124).

Para abordarmos a dimensão do semblante no ensino lacaniano, devemos recusar a oposição entre falso e verdadeiro. O semblante, especialmente na língua francesa, comporta a ideia do falso, do simulacro, do fingimento. Como exemplo, tomemos as expressões em francês “faire semblant de” e “ne faire semblante de rien”, que respectivamente  traduzem-se por “fingir” e “ fingir ignorância ou indiferença”. Para Lacan, porém, “A verdade não é o contrário do semblante” (1971, p. 25). Segundo Laura Rubião (2006), Lacan, ao propor o semblante enquanto aquilo que intercepta o registro do simbólico e do real, nos permite entender que ele revela algo da verdade do ser, sua falta-a-ser. Há de se dizer, contudo, que a verdade não é toda, absoluta, só podendo apenas ser semi-dita.

Lacan prossegue nesta discussão tomando como viés a relação entre homem e mulher na operação com o semblante. Este é, portanto – como o título sugere – o eixo crucial da temática proposta neste ensaio, no qual tentaremos extrair as implicações dessa articulação para o ensino lacaniano. Antes, porém, de entramos neste ponto, vale a pena destacar em que contexto Lacan inicia esta temática. De acordo com Brodsky (2008 b), as aulas que compõem hoje o que chamamos de Seminário 18, foram interrompidas pela viagem de dois meses de Lacan ao Japão. Como efeito desta jornada, temos o texto “Lituraterra” (em: Outros Escritos), sendo a lição VII do De um discurso que não fosse semblante um comentário sobre esse artigo. Esta viagem marcou o encontro de Lacan com a escrita japonesa e permitiu a ele um efeito perceptivo singular à medida que seu avião percorria a estepe siberiana. Isso, todavia, não foi sem consequências e forneceu ao seminário uma nova ênfase, a saber: a articulação entre escritura e semblante. Uma articulação, contudo, tensa, podendo ser melhor ilustrada pela discussão a respeito da relação entre homem e mulher.

 

O movimento da clínica

A noção de semblante chega ao ensino lacaniano, assim como toda formulação que ele introduz, não como uma perspectiva que revoga as contribuições anteriores, mas se inscreve em um processo que redimensiona o seu aparato teórico-clínico. Acredito que levar em conta em que momento Lacan pôde formulá-la nos permite manejar melhor as proposições que ele nos coloca, neste caso, a articulação mencionada anteriormente entre significante e semblante. Nesse sentido, convém realizar algumas pontuações.

Até o Seminário 10: a angústia, Lacan trabalhou primordialmente com a noção de significante com o objetivo de evitar a proliferação imaginária assumida pelas teorizações dos pós-freudianos e acabou por deixar em segundo plano pontos que também havia necessidade de serem tratados, tais como: o corpo, o pulsional e o real.  Conforme indica Miller (2011), Lacan quis com isso enfatizar que os conceitos propostos por Freud só encontram seu estatuto no simbólico. Foi, então, a passagem do imaginário, nível do eu, para o registro simbólico, nível do sujeito. No segundo momento de sua clínica, acompanhamos, contudo, o desenvolvimento das construções a respeito do real em jogo na experiência subjetiva. No que se refere ao tema da posição masculina e feminina, é no último ensino do Lacan que se localiza o momento de avanço na abordagem da feminilidade por meio da introdução das fórmulas da sexuação e do “não-todo fálico” do lado das mulheres.

Costa (1998) propõe que essa passagem no ensino lacaniano é a lógica de toda entrada na psicanálise – o movimento da clínica. Com Freud, vimos inicialmente ser depositado sua confiança na interpretação, ao passo que o encontro com o esgotamento do significante levou-o a propor o “Além do princípio do prazer” para abordar o que denominamos gozo. No ensino lacaniano, podemos observar semelhante movimento em seu ensino na passagem da ênfase do simbólico em direção ao real. É nesse sentido, que Miller pondera:

“O último ensino de Lacan consiste em dar-se conta de que a ordem simbólica, da qual em seu primeiro ensino ele fazia a mola e a estrutura da experiência analítica daquilo que Freud chamava de psiquismo, essa ordem simbólica é do registro da ficção. Em outros termos: o significante é semblante” (Miller, 2011, p. 165).


No registro da ficção temos, sobretudo, o falo. Grande esforço lacaniano foi necessário para situar o falo como significante, retomando a “querela do falo” instauradas pelos pós-freudianos. Atravessados por uma racionalidade biológica de identificar o falo ao pênis, os discípulos de Freud impuseram um desvio a obra do mesmo, identificando e criticando uma posição falocêntrica na teoria freudiana. Lacan, em seu “retorno a Freud”, estabelece o falo como o único significante estruturador da sexualidade, tanto do homem, como da mulher – o que implica em apontar para a inexistência do Outro sexo ao nível inconsciente. Nesse sentido, o falo é uma estrutura de ficção, um recurso puramente simbólico, que tem a complicada missão de unir sexualidade e linguagem. Se o falo se insere na psicanálise como o significante que organiza o campo sexual, podemos com Lacan, então, extrair sua dimensão de semblante na ordem sexual. Ou seja, o falo é também um semblante.

 

A dimensão da “aparência”

Em torno da discussão a respeito da relação entre homem e mulher, Lacan (1971) demarca que é comum dizer que aquilo que Freud mostrou foi o caráter latente da “sexualidade” em tudo que se dá no nível do discurso. Lacan, porém, interroga o termo sexualidade e nos diz que ela designa o que se estuda na biologia: o cromossomo e sua combinação genética XY e XX, as gônadas sexuais masculinas e femininas. Assim, nos indica que o termo que melhor situa o que está em jogo na posição entre homem e mulher é a noção de “relação sexual”.

Para entendermos sobre como os sujeitos se distribuem entre um lado ou outro na vida adulta quanto a seu sexo, diz Lacan (1971) que devemos levar em conta que o que define o homem é a sua relação com a mulher, sendo o contrário também recíproco. O menino apreende que na fase adulta trata-se de “parecer” homem, sendo isto o que constitui a relação com a mulher. Sobre esse ponto, Lacan, já no escrito“A significação do falo” (1958), tinha apontado que as relações sexuadas, por se reportarem ao significante fálico, giraram em torno de um ser e de um ter, mas, sobretudo de um “parecer”. Por ter sido o instinto abolido no sujeito (o que lhe garantiria certo saber sobre o sexual e sobre o comportamento macho ou fêmea), restará ao humano servir-se de manifestações típicas ou idealizadas do comportamento de cada sexo, ou seja, um parecer homem ou mulher.

No Seminário 18, para tocar na dimensão da “aparência” no campo sexual, Lacan articula com a questão da exibição no reino animal. Ele comenta que, na maior parte das vezes, o macho é o agente da exibição, mas a fêmea não se encontra ausente, já que ela é o alvo desse mostrar-se. Só há copulação porque há exibição. Lacan acrescenta que o comportamento sexual humano também comporta a referência à exibição, consistindo numa certa manutenção desse semblante animal. A diferença, porém, é que o semblante no nível humano está vinculado a um discurso. Os homens e as mulheres falam, sendo o mundo do discurso que os determina em suas posições sexuadas.

Exemplificando, Brodsky (2008b) escreve que masculinidade e feminilidade são posições que o sujeito encontra no Outro em forma de semblantes. Os semblantes que ele encontra no discurso do Outro lhe são necessários para aparelhar seu modo de gozar e fornecem formas de satisfazer a pulsão. É do campo do Outro, por exemplo, que o sujeito tem indicado a maneira de formar casais por meio do casamento monogâmico e heterossexual. Hoje, entretanto, assistimos à tentativa de se estabelecer o casamento homossexual, demonstrando que tais semblantes não são fixos e se inserem num contexto social e cultural. Mas, ainda que os semblantes resistam, desgastem-se ou novos sejam estabelecidos, não deixam de ser aparatos para rodear o real, o impossível de escrever.

Homem e mulher não são posições subjetivas, mas sexuadas, ou seja, não dependem da identificação com o semblante e, de tal maneira, não podem se escrever. Lacan (1971) propõe que a identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas o menino considerar que existem mulheres e a menina, que existem homens. Então, Lacan nos propõe um surpreendente enunciado: “para os homens, a menina é o falo, e é isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o falo, e ele é também o que as castra” (1971, p. 33). O falo é, nesse sentido, o real do gozo sexual enquanto destacado como tal.

Lacan delimita que: “O falo é, muito propriamente, o gozo sexual como coordenado com um semblante, como solidário a um semblante.” (1971, p. 33). O semblante, contudo, sempre envelopa o vazio e pretende fazer acreditar na existência de algo que não há. O semblante ainda que se esforce por ocultar, o que oculta é nada. “A função essencial do semblante – ao menos do semblante fálico – é, pelo que não há, algo que dissimula e tapa o que não há” (Brodsky, 2008a, p. 156).

A mulher é para o homem a “hora da verdade”, como afirma Lacan (Ibid.), pois é por meio dela que se saberá se o falo está apto a significar o homem em seu estatuto de todo-homem, na medida em que ele é escravo do semblante que sustenta. É para a mulher que a formação do homem (seu “parecer homem”) é feita para responder, mantendo o status do semblante. Sendo assim, Lacan argumenta ser provavelmente mais fácil para o homem enfrentar um rival do que enfrentar a mulher, pois ela vem lhe apresentar uma verdade – a de que existe semblante na relação entre o homem e a mulher; a de que é no registro da “aparência de ser” que a relação entre os sexos se organiza. Verdade que causa horror, sendo a partir dela que se representa tudo o que foi enunciado sobre o inconsciente. A mulher, por outro lado, tem maior liberdade com o semblante. Isso, porque, como assinala Dominique Laurent (2009), a mulher, em psicanálise, é um ser castrado, mas que, por sua vez, faz algo com essa falta, fazendo crê que há algo ali onde não tem. Além disso, sua posição sexual aponta para a equivalência entre o gozo e o semblante: “Porque não há um nome de gozo que não seja em ultima instância um semblante” (Laurent, 2009, p. 222). Lacan complementa:

“[...] porque ela é a presença desse algo que ela sabe, ou seja, que, se gozo e semblante se equivalem numa dimensão do discurso, nem por isso deixam de ser distintos no teste que a mulher representa para o homem, teste de verdade, pura e simplesmente, a única que pode dar lugar ao semblante como tal” (Lacan, 1971, p. 34).


Quanto à maior liberdade da mulher com o semblante, é digno de nota situarmos como ela pode vir a se servir dele ao se fazer desejar por um homem. Primeiro, lembremos da mascarada apontada por Joan Rivière (1929), ao afirmar que não há diferença entre feminilidade genuína e mascarada. Ou seja, diante de um buraco ao nível simbólico, a feminilidade surge como uma “máscara” que recobre o vazio de nomeação. Maria Josefina Fuentes (2004) argumenta que a mulher, sem um significante para representá-la, acaba se refugiando numa máscara para ser desejada por um homem, mostrando-se como aquilo que lhe falta. Assim, a psicanalista afirma: “para ser objeto de um homem, uma mulher o será na condição de semblante.” (Fuentes, 2004, p. 53). Disso, tiramos como consequência que, nas mulheres, a instância do semblante é acentuada tendo em vista seu lugar no casal sexual de fazer desejar, que implica em se moldar às condições de desejo do homem. O semblante, por ser uma máscara, pode ter várias faces, mas o impressionante é que a face fálica se apresente como próprio da mascarada feminina. Em contrapartida, conclui Fuentes: “quanto mais uma mulher crê no seu semblante, fazendo dele um verdadeiro refúgio para a feminilidade, mais ela sacrifica nela o que há de feminino. Eis o desafio para mulher, já que mascarar-se é a condição para ser desejada por um homem” (2004, p. 55).

Márcia Zucchi nos apresenta o semblante “como um efeito, quer no plano da imagem, quer no plano significante que indica um real impossível de aceder” (2008, p. 87). Toda aparelhagem engendrada no semblante busca dar conta do real – enquanto o que resiste no sexual – visto que não é possível nomeá-lo.  O semblante tenta articular um sentido, uma aparência, ali onde não há sentido, onde é puro real.

 

A ausência da relação sexual

Precisamente, podemos dizer que o semblante é da ordem da tentativa de encontrar recursos para lidar com o lado insuportável da disjunção entre homens e mulheres, com o lado insuportável da ausência de relação sexual. No dizer lacaniano: “a relação sexual falta no campo da verdade, posto que o discurso que a instaura provém apenas do semblante, por só abrir caminhos para gozos que parodiam – essa é a palavra adequada – aquele que é efeito, mas que permanece alheio” (Lacan, 1971, p. 139).

Mesmo não havendo relação sexual, a “relação sexuada” não funciona, nos diz Lacan (1971), sem um terceiro termo: o falo. Um terceiro termo, porém, que, para a mulher se reportar, ela precisa se vincular a um homem. Isso se mostra nítido no triângulo apresentado por Lacan, que se segue ao final deste parágrafo. Um triângulo aberto que não se pode fechar. Brodsky (2008b) considera tratar-se de um esquema elementar, que indica que caso o homem se dirija ao falo, ele não chega à mulher, e caso a mulher se dirija ao falo, ela nunca chega ao homem. Sendo assim, Costa (2008) coloca que a possibilidade do sujeito realizar o encontro do Outro sexo (para homens e mulheres) implica em atualizar o encontro com o falo e o vazio inerente a sua dimensão significante (logo, dimensão de semblante).


Figura 1 – Fonte: Lacan, 1971, p. 132.

Situemos, porém, que ao mesmo tempo em que é o falo quem faz a “relação sexuada” funcionar, é também ele que põe obstáculo à relação sexual. Discutindo esse ponto, Lacan chama a atenção para a função do falo, enquanto aquilo que “torna insustentável, doravante a bipolaridade sexual, e insustentável de uma forma que literalmente volatiliza o que acontece com o que se pode escrever desta relação” (1971, p. 62). O falo, enquanto semblante, é o que ordena tudo o que gera impasse ao gozo sexual no homem e na mulher. Sobre a relação sexual, Lacan fez questão de demarcar no Seminário 18 que ela não se inscreve; só existindo relação sintomática entre os sexos. Nesse sentido, Caldas escreve:

“[...] estes parceiros [...] jamais se encontrarão na forma mítica de amor fusional e complementar no qual suas significações operem como equivalentes. Lacan resume esta tese dizendo que “não há relação sexual” [...] Por “relação” entendemos aqui a proporcionalidade, a correspondência, a reciprocidade, enfim uma harmonia. Isso não quer dizer que parceiros não possam se encontrar e até sustentar um laço amoroso procurando, ao infinito, soluções para esse impossível” (Caldas, 2008, p. 383).

 

A lógica da sexuação

Lacan (1971) nos indica que qualquer relação só subsiste a partir do escrito. Em seus termos: “O essencial da relação é uma aplicação, a aplicado sobre b: ag b” (Ibid., p. 60). O que acontece no caso da relação sexual? Não conseguimos escrevê-la, nos diz Lacan. Não há inscrição da relação sexual, pois ela fracassa ao ser enunciada na linguagem. Esta não realiza uma inscrição efetiva que coloque em relação os dois pólos, os dois termos – homem e mulher.  Não podemos atribuir ao homem e à mulher, por exemplo, uma noção de equivalência: “um homem para uma mulher”.  Para que algo seja inscritível é necessário, considera Lacan, que possa produzir-se uma escrita da função, F(x). Ou seja, para a relação se inscrever, deveria haver uma variável do homem em relação à mulher e da mulher em relação ao homem.

Nesse sentido, o ensino lacaniano nos introduz no campo da lógica na medida em que esta “porta a marca do impasse sexual” (Lacan, 1971, p. 133). Ou seja, conforme nos indica Genéviève Morel, “toda lógica é uma formalização do impossível” (1997, p 98). A função “F” da qual Lacan faz referência é o falo e o “x” é o sujeito. Ele denomina a função de φx. O interesse lacaniano é então precisar como homens e mulheres se distribuem a partir do modo como se escrevem com a variável nesta função, como a objetam, a cumprem, a satisfazem ou a negam.

Brodsky (2008b) observa que a tentativa de Lacan está em fornecer uma lógica à relação entre homens e mulheres e, nesse sentido, tentar escrever essa relação para assinalar o que não pode ser escrito, pois é por meio da escrita que se demonstra a impossibilidade. A orientação lacaniana indica que, para encontrar uma impossibilidade, faz-se necessário passar do registro da palavra e da linguagem para o da escritura. No campo da palavra, toda combinatória é possível, qualquer palavra pode dizer qualquer coisa. A fecundidade da linguagem em seus processos de metáfora e metonímia é um exemplo disso, mas da letra se obtém o impossível.

É, portanto, com a lógica, operada por meio de letras e evitando, assim, as palavras (tal como a proposição aristotélica: todos, alguns e nenhum) que são passíveis de ambiguidades, que Lacan começará, no Seminário 18, a dispor de quantificadores para operar com as diferenciações quanto ao posicionamento masculino e feminino em relação a função φx. Retomando a proposição de Aristóteles, Lacan (1971) lembra-nos que se trata que uma lógica atributiva, expressa pelo: Todo a é b, algum c é a, logo, c é b. O conhecido silogismo aristotélico se enuncia a partir do “Todos homens são mortais”, por meio dequatro formas lógicas:

  1. Universal afirmativa (tipo A): Todo o A é B - Todos os homens são mortais.
  2. Universal negativa (tipo E): Nenhum A é B - Nenhum homem é mortal.
  3. Particular afirmativa (tipo I): Algum A é B - Alguns homens são mortais.
  4. Particular negativa (tipo O): Algum A não é B - Alguns homens não são mortais.

Aristóteles, contudo, esbarra na particular negativa (o não-todo), pois para ele é uma existência que contraria o universal, o todo. Com Lacan, o não-todo serve para precisar a posição da mulher em relação à função fálica. Como já foi assinalado, o campo psicanalítico reconhece que a negativa cria a existência, logo o não-todo não é contrário ao todo, não exclui de modo algum função fálica, mas a ultrapassa.

Sobre isso, Morel esclarece que se trata de “uma espécie de artifício de escrita para fazer duas coisas diferentes com a mesma função” (1997, p. 97). Nesta perspectiva, há a escrita dos quantificadores: universal positiva (todos), universal negativa (nenhum), particular positiva (algum) e particular negativa (nenhum).Eis os quantificadores enunciados por Lacan: , , e  em seu quadro sobre as fórmulas quânticas da sexuação. Segue o quadro:


Figura 2 – Fonte: Lacan, 1972-73, p. 105.

As fórmulas da parte superior do quadro tratam propriamente das inscrições do lado masculino e do lado feminino, organizados a partir dos seguintes quantificadores:

Masculinidade:
→ existe um “x”, um sujeito, para quem a função φx não funciona, ou seja, existe um homem que se inscreve contra a castração.
→ para todo homem há a inscrição da função fálica, exceto por um sujeito pelo qual a função φx é negada. Isto que dizer que todo homem e o homem como um todo está submetido a castração. E todo sujeito “inscreve-se na função fálica para obviar a ausência de relação sexual” (Lacan, 1972, p. 458).

Feminilidade:
→ não existe mulher para quem a função fálica não funcione, não há mulher que não esteja sujeitada à castração.
→ para não-todo sujeito é correto afirmar que a função fálica funcione, ou seja, a mulher é não-toda referida à castração, de modo que nem tudo em uma mulher está submetido à lei do significante.

É em torno dessa diferenciação que o ensino lacaniano vem estabelecer de forma radical que a mulher é não-toda referida à função fálica. Lacan aponta que não se trata de propor que todo homem é fálico e que toda mulher não é. “Não-todo” é estar referenciado na função fálica, mas também é ultrapassá-la. O homem, ele chama de touthhomme. “Todo-homem” – o homem só pode sê-lo, propõe Lacan, por meio de um significante, que é o falo. “A mulhersó pode ocupar seu lugar na relação sexual, só pode sê-lo, na qualidade de uma mulher” (Lacan, 1971, p. 133). Dizer “A mulher” é impensável, afirma Lacan, e o mito de “Totem e tabu”aponta precisamente isto. O pai que possui “todas as mulheres” é o signo de uma impossibilidade. As noções de touthhomme e “uma mulher” já podem se encontradas no Seminário 18 e, nesse sentido, podemos pensá-lo como uma “preparação”, uma “escritura”, que Lacan realiza para chegar até as fórmulas da sexuação no Seminário 20: mais, ainda, no qual se encontra formalizado duas lógicas que regem a masculinidade e a feminilidade.

Essas duas lógicas revelam-se assim como dois modos de sujeitar-se à função fálica, pois tudo o que se refere à questão da posição sexual do sujeito gira em torno do gozo limitado pelo falo. Lacan (1972-73) diz ser esse o testemunho que obtemos da experiência analítica. Entretanto, esse mesmo gozo é o que impede o homem de relacionar-se com a mulher, visto seu caráter autístico de gozo. O homem goza com o órgão e a mulher, com o corpo. Portanto, a falta de reciprocidade e harmonia no campo amoroso deriva do modo disjunto pelo qual o homem e a mulher se dirigem um ao outro – no qual temos o amor como suplência da ausência de relação sexual. Ele supõe fazer Um onde é impossível por estrutura, sendo por isso ser tão comum escutarmos na clínica as acusações recíprocas entre homens e mulheres, no qual o enlace sintomático entre os parceiros revela ser cada qual meio de gozo do corpo para o outro.

Laure Naveau (2009) considera que Lacan durante todo seu ensino se destinou a reformular em termos lógicos o que se revelou na teoria freudiana com a noção de castração – pilar da experiência analítica. Ou seja, a “não relação sexual”. Se Freud não formula nesses termos, Lacan sustenta, contudo, que está escrito em várias partes de sua obra. Um exemplo evidente disso podemos obter com os comentários de Éric Laurent sobre os efeitos da obra de Freud. Segundo ele, o criador da psicanálise sempre conseguiu ter em seu horizonte a profunda dissimetria no que se refere à posição masculina e feminina. As formulações assimétricas sobre o Complexo de Édipo e de castração nos meninos e nas meninas denunciam a disparidade dos sexos e, por conseguinte, uma assimetria na vida amorosa (Laurent, 2007).

Isso é, sobretudo, retratado na parte inferior do quadro da sexuação. Nele, temos do lado do homem a relação entre $ e a, que implica em dizer que o homem se dirige a mulher enquanto causa de desejo, objeto a, semblante. Sendo impossível para ele gozar da mulher como tal, ele a toma como objeto parcial daquilo que seria o corpo do Outro (partes fetichizadas – olhar, voz, pele, pedaços de corpo). A mulher, por sua vez, se relaciona com o Outro – S (Ⱥ)enquanto aquilo que falta como significante no Outro; e, com φ, mediante o que o homem pode encarnar para ela, sem a necessidade se ocupar inteiramente com ele. Dizendo de outro modo, D. Laurent (2009) escreve que Ⱥ mulher tem relação com a inconsistência do Outro. Isto implica em dizer que ela não tem relação estrutural com o limite ao gozo estabelecido pelo falo, tal como reconhecemos no homem. Diante disso, Ⱥ  mulher tem a possibilidade de gozar dela mesma enquanto Outra a ela mesma. Isso, porém, não garante nenhum conhecimento e não lhe permite conferir nenhuma palavra sobre seu gozo; o que ela sabe é o fato de que experimenta esse gozo no corpo, tal como os místicos (Lacan, 1972-73). A mulher é enigma, é desconhecido, para ela mesma.

Essa disparidade na forma como cada qual se dirige ao parceiro sexual nos aponta que não há encontro possível entre eles e o que resta aos sujeitos são os semblantes para a difícil tarefa de engendrar-se na relação sexuada e tentar lidar com esse ponto de real. “O mal entendido da relação entre os sexos é o de um discurso infinito onde a contingência do encontro não cessa de se inscrever. Ali onde não há relação sexual, há esse semblante sexual do qual cada um goza” (Laurent, 2009, p. 223).


Referências bibliográficas

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Resumos:

Man and Woman at the operation with the semblance.

In Seminar 18, Lacan defines discourse as a semblance, it is a way of organizing the enjoyment. The semblance is an effect, that whether in the plane of image, or in the plane of the significance, seeks to cope with the unbearable side of the disjunction between men and women. Which is, a resource to operate in the absence of sexual relation. This disjunction stems from the fact that the man, who he names as touthhomme, finds his place in sexual intercourse through the phallic signifier. A woman without a symbolic resource to support her being, can only occupy it as a woman - which comes to define that she is not whole is relation to the phallic function . This allows us then to think this seminar as a "preparation" a "script" that Lacan creates to get to the formulas of sexuation in Seminar 20.

Keywords:
semblance, sexual relationship, real, phallic function.


L'homme et L’ Ⱥ femme dans l’ opération avec le semblant


Dans le Séminaire 18, Lacan a formalisé que le discours est un semblant, une façon d'organiser la jouissance. Le semblant est un effet dans le plan de l’image et du signifiant, que tente faire face sur l’insupportable de la disjonction entre les hommes et les femmes. C'est à dire, est une forme de faire face a l'absence du rapport sexuel. Cette disjonction provient du fait que l'homme, qu’il appelle touthhomme, trouver leur place dans le rapport sexuel a travers le signifiant phallique. La femme, sans une vie symbolique pour soutenir son être, ne peut pas occuper qu’une place comme une femme - ce qui vient délimiter que elle est pas-tout dans la fonction phallique. Cela nous permet, alors, penser ce séminaire comme une "préparation", une “écriture" que Lacan fait pour arriver les formules de la sexualisation dans le Séminaire 20.

Mots-clés: semblant, relation sexuelle, réel, fonction phallique.

 

Citacão/Citation: COSTA, A.M.M. da; BONFIM, F. O homem e Ⱥ  mulher na operação com o semblante, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p134-147.

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
05/12/2012 / 12/05/2013.

Aceito/Accepted:
16/01/2012 / 01/16/2014.

Copyright: © 2013 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.