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Sintoma, fantasia e objeto a na experiência analítica1

 

Flávia Lana Garcia de Oliveira
Graduada em Psicologia pela UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Residência e Especialização em Psicologia Clínica Institucional pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE-UERJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Mestrado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Membro adjunto do ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: flavialanago@gmail.com


Resumo

O artigo tenta aprofundar a íntima relação entre fantasia e sintoma na clínica psicanalítica. Baliza seu desenvolvimento nas chaves de leitura fornecidas por Jacques-Alain Miller. Orienta-se principalmente pela afirmação, encontrada na 11ª lição de seu curso Coisas de fineza em psicanálise, de que Lacan retomou o conceito freudiano de fantasia para elegê-lo como o lugar em que se entrecruzam a linguagem e o gozo. Além de demonstrar como esse entrecruzamento se estabelece no legado de Lacan, no que se refere aos dois primeiros tempos de seu ensino, o artigo tematiza se também é possível evidenciar o comparecimento dessa interseção entre o sentido e a satisfação nas teorizações freudianas sobre a fantasia.

Palavras-chave: fantasia, sintoma, linguagem, gozo, objeto a.

 

 

Introdução

Sabemos que a importância concedida à dimensão fantasística contida na fala das histéricas foi um passo lapidar para a criação da psicanálise. Freud bem cedo se deparou, no tratamento da histeria, com uma espetacular frequência de narrativas de sedução, de uma forçosa submissão ao desejo do Outro. Se, a princípio, a frequente escuta desses relatos o levou a insistir na veracidade factual do trauma da sedução sofrida na infância de suas pacientes, logo ele começa a inferir que a verdade que preside a realidade humana é psíquica (Freud, 1897). Essa é a condição de possibilidade para a apreensão do valor traumático da sexualidade na constituição subjetiva e, com isso, da função estruturante da fantasia nas neuroses.

Desse modo, enquanto a psicologia e a medicina tendem a abordar as manifestações sintomáticas como disfunções a serem reparadas, a psicanálise promove uma escuta atenta à posição fantasística que as sustenta. Na orientação psicanalítica, a psicopatologia não se configura pelos signos norteadores do diagnóstico de uma doença orgânica, mas sim, pela estrutura psíquica que organiza a relação de cada sujeito com o mundo. A esse respeito, o psicanalista Klotz (2009) aponta que a chamada medicina científica almeja se despojar de todo trabalho interpretativo em jogo na hipótese diagnóstica da doença se valendo do apelo sistemático a uma abordagem mais direta, objetivante e igualitária que vem sendo viabilizada pelo aparato tecnológico disponível através de exames de imagem e outros recursos laboratoriais. Na contramão dessa tendência contemporânea de esvaziar ao máximo a dimensão subjetiva, a psicanálise sustenta que a tentativa de extirpar o sintoma como uma desordem a ser abolida é uma operação fadada ao fracasso, pois esbarra na impossibilidade de suprimir a implicação fantasística que o ancora.

A seguir, empreenderemos uma tentativa de aprofundar essa íntima relação entre fantasia e sintoma na clínica psicanalítica. Nosso recorte teórico-conceitual contemplará alguns textos freudianos, bem como as contribuições de Lacan, sobretudo no que se refere aos dois primeiros tempos de seu ensino. O desenvolvimento do texto será balizado pelas chaves de leitura fornecidas por Miller (2011), cuja principal indicação encontra-se na 11ª lição de seu curso Coisas de fineza em psicanálise em sua afirmativa de que Lacan retomou o conceito de fantasia de Freud para elegê-lo como o lugar em que se entrecruzam a linguagem e o gozo. Além de demonstrar como esse entrecruzamento se estabelece no legado de Lacan, pretendemos tematizar se também é possível evidenciar o comparecimento dessa interseção entre o sentido e a satisfação nas teorizações de Freud sobre a fantasia.

 

1- O conceito de fantasia em Freud: um pequeno percurso

a) A noção de próton pseudos – a fantasia como ficção:

A apreensão do caráter ficcional da fantasia já figurava no “Projeto para uma psicologia científica”, quando Freud (1895[1950]) aborda seu estatuto à luz da denominada primeira mentira histérica – próton pseudos –, ilustrando-o a partir de um fragmento clínico. O sintoma apresentado pela paciente Emma consistia na evitação de entrar sozinha nas lojas por temer os risos que sua roupa poderia suscitar. A agorafobia eclodiu a partir de uma primeira cena relatada pela jovem como motivo de seu adoecimento, na qual, então com doze anos, fugiu de uma loja ao perceber que dois vendedores riam de sua roupa. Um deles havia atraído Emma sexualmente. A análise com Freud promoveu o franqueamento das ideias recalcadas, possibilitando uma rearticulação dos enlaces associativos. A primeira cena evocou a lembrança de uma segunda cena, mais longínqua, datada de seus oito anos de idade, quando Emma havia sido molestada pelo dono de uma confeitaria. O riso dos vendedores atualizava o sorriso do proprietário da confeitaria que assediou sua região genital através de seu vestido.

Freud enfatiza a temporalidade retroativa (Nachträglich) estruturante das neuroses, denominando como Ideia A as lembranças excessivamente intensas e compulsivas, ainda que absurdas, e que mascaram a chamada Ideia B, aquela que se encontra recalcada. Somente com o desvelamento da Ideia B, a incongruência entre a Ideia A e sua aparente conexão com o sintoma histérico são esclarecidas. A Ideia A é uma ideia sintomática, isto é, uma formação simbólica que se alia à Ideia B pelo elo associativo. Apenas mediante o estabelecimento desse elo, portanto só depois, o acontecimento primeiro adquire seu potencial traumático.

A angústia que leva Emma a erigir um sintoma fóbico não é experimentada na cena em que é assediada pelo dono de loja. A significação deste evento como traumático ocorre a posteriori. Foi necessária a escansão temporal para que o trauma se inscrevesse como tal. Apenas com a entrada na puberdade, no intervalo entre as duas cenas, a jovem se confronta com novas formas de satisfação a partir do despertar da sexualidade, se deparando, assim, com a divisão psíquica na relação com seu desejo, o que ressignifica suas experiências anteriores.

No caso de Emma, o significante roupa é o elemento nodal que emerge na consciência. As derivações intermediárias que compareceram em seu relato – o riso dos vendedores por conta de sua roupa e a excitação sexual experimentada por um dos vendedores – são falsas conexões que entremeiam o processo associativo. O próton pseudos parece designar, para Freud, esses meandros associativos que cercam o núcleo recalcado e que de alguma forma desviam a escuta se esta não estiver atenta aos deslizamentos que esses significantes podem sofrer ao longo do trabalho clínico.

Os sintomas neuróticos, assim como as psicopatologias da vida cotidiana, convidam Freud a se debruçar sobre essas emergências da verdade através do sentido, logo dependente das tramas representativas. O inconsciente se configura justamente como saber extraído a partir do deciframento das cadeias associativas. Esta é a única forma do sujeito dizer a verdade acerca de sua casuística, já que a realidade da castração comporta uma falta irredutível à representação que só é contornável no nível de uma Vorstellung mentirosa. As narrativas histéricas, justamente por tratarem-se do que foi traumático no encontro com o desejo do Outro, não podem ser consideradas como inverdades, mas como ficções que estruturam sua verdade singular. Miller (2011) retoma a expressão próton pseudos para destacar que a própria verdade tem uma estrutura de ficção. Daí sua recorrente alusão à expressão “verdade mentirosa” cunhada por Lacan (1972) no final de seu ensino. Sendo assim, o processo de histericização, de abertura à elucubração e de construção de saber que caracteriza um tempo da experiência de análise aponta para a importância da fala e da linguagem na produção de sentido a partir das contingências, o que possibilita restabelecer uma continuidade do discurso rompida pelo inconsciente.

No avanço de sua problematização acerca do primado do sentido na operação analítica, Miller também sublinha que, embora a análise constitua-se como um espaço privilegiado de construção dos sentidos fantasísticos e do surgimento da enunciação a partir do que é enunciado – daí a suposição ao analista no lugar da verdade fundante do laço transferencial –, ela não consiste no triunfo da ficção. A ficção é justamente posta à prova na sua impotência em resolver a opacidade do real. Miller (Ibid., p. 121) assinala que “o próton pseudos é o próprio analista”, no que concerne ao fato de que, desde os primórdios da psicanálise, recorreu-se ao sentido para fazer passar o inconsciente real para o simbólico. Ele acentua a anterioridade do inconsciente real e a condição secundária do próprio método da associação livre, lembrando a observação de Lacan de que a invenção da psicanálise se embasou primordialmente na autoanálise de Freud, pelo Um-sozinho, prescindindo da atenção, residindo na própria percepção freudiana da ex-sistência de seu inconsciente real.

 

b) O lugar do objeto parcial e das fixações libidinais na fantasia e na formação dos sintomas:

Freud (1917[1916-17]) esclarece o papel da fantasia na formação dos sintomas a partir da demarcação topográfica do aparelho psíquico segundo os efeitos das restrições necessárias à entrada do sujeito no laço social. A dinâmica desta tópica resulta do conflito entre o processo primário e o processo secundário. O processo primário, que é regido pelo princípio do prazer, caracteriza o sistema inconsciente. A obtenção autoerótica da satisfação com o objeto parcial e a evitação de desprazer são as principais metas visadas por este modo de funcionamento, inclusive com a tentativa de descarga pela via alucinatória diante da ausência do objeto na realidade (Freud, 1911). O fracasso do mecanismo primário de satisfação leva então à inscrição do princípio da realidade como organizador do processo secundário, o qual promove o adiamento das vias diretas de descarga pulsional em prol da atividade do pensamento, do juízo, da memória e da atenção, com o intuito de promover satisfações mais bem sucedidas no âmbito da realidade. Este segundo processo abarca os sistemas pré-consciente e consciente, sendo responsável pela censura, pelo teste de realidade, pelas funções egoicas, pela motricidade e pela ligação das energias. O inconsciente é fundado pelo recalque da sexualidade infantil devido à sua incompatibilidade com as exigências da cultura. Em contrapartida, os sistemas pré-consciente-consciente representam o mundo externo, se interpondo como um obstáculo que impede que certas satisfações se realizem.

A fantasia revela a estreita relação do sujeito com os objetos parciais. No entanto, esta relação só se institui retroativamente – nos termos freudianos, regressivamente – com a instauração dos processos secundários após o recalque do complexo de Édipo. Freud (1911, p. 85) afirma que “a repressão permanece todo-poderosa no âmbito da fantasia”, isto é, por conseguir inibir o mecanismo de funcionamento primário. A estrutura da fantasia imprime a continuidade do autoerotismo, localizando objetos, tendências que a libido só pôde abandonar parcialmente em função do recalque2. Essas fixações libidinais são oriundas “das atividades e experiências da sexualidade infantil, nas tendências parciais abandonadas, nos objetos da infância que foram abandonados” (Freud, 1917 [1916-17], p. 363).

A fantasia, diz Freud (1911), é a “moeda neurótica”, um destino dado a esses investimentos objetais, com a finalidade de se esquivar da ferida narcísica imposta pela socialização. As neuroses atestam que o funcionamento autoerótico é retido fantasisticamente no inconsciente e assim obtém descarga a despeito de sua inadaptação aos interesses coletivos e à sobrevivência. Freud (1917[1916-17]) assinala que a retração da libido para a fantasia é um estádio intermediário no caminho da formação dos sintomas. A produção do sintoma ocorre quando a regressão da libido realimenta uma fantasia de satisfação da sexualidade infantil e “a catexia de energia das fantasias é de tal modo aumentada, que elas começam a estabelecer exigências e desenvolvem uma pressão no sentido de se tornarem realizadas” (Ibid., p. 375). No sintoma, a libido retira-se para os pontos de fixação libidinal no campo do objeto externo, a fim de encontrar aberto o caminho que conduz às satisfações recalcadas no âmbito dos objetos da fantasia. Portanto, através do sintoma o sujeito permanece em um modo de satisfação fantasístico como uma satisfação substitutiva da pulsão sexual por meio da criação de um novo método de satisfazer a libido que se sirva dos deslizamentos no campo semântico.

Miller (2002) apresenta o sintoma e a fantasia como duas dimensões clínicas que precisam ser distinguidas. Para este autor, a oposição entre sintoma e fantasia equipara-se à oposição entre significante e objeto. Embora haja a implicação do objeto no sintoma, segundo Miller, o que prevalece em sua estrutura é a articulação significante, a fala exaustiva sobre o desprazer vivenciado no sintoma é o que marca a entrada em análise. Já na fantasia há o prevalecimento do objeto e a aglutinação de um prazer muito mais difícil de ser compartilhado no espaço analítico. Mais adiante, buscaremos demonstrar como a conceituação do objeto a em Lacan contempla essas ligações libidinais primitivas do sujeito com o Outro como resíduo que escapa ao recalque, isto é, à intervenção da metáfora paterna.

 

c) Uma criança é espancada: o paradigma analítico da fantasia

Em “Uma criança é espancada”, Freud (1919) circunscreve o tema da fantasia fundamental a partir da frase que intitula o artigo. O tema do espancamento mostrou-se recorrente em seus pacientes, sobretudo as do sexo feminino. Embora Freud aponte a obscuridade da fantasia em termos teóricos, ele indica neste texto algumas de suas principais particularidades. Primeiramente, ela refere-se a uma situação imaginária intensamente investida e que provoca considerável satisfação autoerótica comparável ao prazer masturbatório. Ao mesmo tempo, gera vergonha e culpa quando admitida, o que não ocorre sem resistência e hesitação. Tal satisfação remete à fixação primária, a um “traço perverso” que persiste como resíduo ou cicatriz do complexo de Édipo.

Além disso, Freud demonstra que a fantasia tem afinidade com a estrutura da linguagem, pois emerge no discurso do analisando a partir de uma organização sintática e gramatical passível de transformações no que tange ao autor, ao objeto, ao conteúdo e ao significado. Ao se dedicar à descrição de como isso ocorre nas fantasias de espancamento, ele observou seu desdobramento em três tempos: no primeiro, configurava-se como Meu pai está batendo na criança que eu odeio. Freud observa que, não por mero acaso, a outra criança costumava ser invariavelmente um irmão ou uma irmã. Esta forma mais arcaica inaugura a intervenção paterna, demonstrando a tentativa da criança de resgatar a onipotência narcísica perdida pela chegada de outra criança. A nova criança que se torna rival será a criança espancada na fantasia, a quem o pai nega seu amor. Por isso, a frase pode ser reescrita como Ele (o meu pai) só ama a mim, e não à outra criança, pois está batendo nela.

No segundo tempo, a fantasia transforma-se em Estou sendo espancada pelo meu pai. Nesse momento do relato, a criança espancada coincide com o analisando/autor, o que leva Freud a tomar esse tempo como o da emergência do masoquismo. Já o adulto que bate permanece o mesmo do primeiro tempo. Trata-se de uma cena que nunca conseguiu tornar-se consciente como uma rememoração, mas sim como uma construção própria à análise, qualificada por Freud como necessária. A fantasia não deve ser abordada apenas como um devaneio inconfessável, mas antes como uma construção, numa passagem da cena imagética à estrutura simbólica que é impossível de ocorrer completamente, pois é irredutível ao simbólico. Segundo Miller (2002), a fantasia fundamental corresponde ao recalque originário, ou seja, não é um conteúdo ou coisa que não se possa dizer, mas sim o índice de que haverá recalque, de que sempre haverá mais um significante que pode advir:

“Em geral, a fantasia não se oferece ao movimento da interpretação, e é uma questão de direção da cura, de trabalho próprio do analista, obter a sua revelação. Daí que possamos definir a fantasia fundamental como aquilo que se apresenta na experiência como não-tocado, não-atingido diretamente pelo significante” (Miller, 2002, p. 111).

Lacan (1957-58) especula sobre a existência de um chicote imaginário com o qual se bate na criança, imprimindo metaforicamente a barra do significante de forma radical. O material do chicote aqui representa o significante falo como signo da relação com o desejo do Outro inscrito no segundo tempo do complexo de Édipo, quando o pai, como agente imaginário da ameaça da castração, introduz a separação do objeto incestuoso, barrando o sujeito do conluio imaginário da relação mãe-criança. Considerando esta inflexão apresentada por Freud, podemos inferir que o componente masoquístico da fantasia envolve o corpo do sujeito em uma cena de sofrimento prazeroso e implica a submissão ao desejo do Outro.

Em sua última versão – Uma criança é espancada ou Bate-se em uma criança (Ein Kind wird geschlagen) – o sujeito está presente como espectador. Dessa forma, o componente sádico é acentuado junto à presença de excitação sexual masturbatória. O adulto que bate e a criança espancada são substituídos por equivalentes. O analisando/autor aparece apenas no lugar de quem olha, não coincidindo mais com a criança espancada. Entram em jogo as reversões possíveis na gramática pulsional: olhar - ser olhado, bater - ser batido. Miller (2002) defende mais uma vez a heterogeneidade das dimensões clínicas do sintoma e da fantasia se apoiando na afirmação de Freud (1919, p. 230) de que “essas fantasias subsistem à parte do resto do conteúdo de uma neurose e não encontram lugar adequado na sua estrutura”. O elemento fantasístico não está em harmonia com o restante da neurose. A fantasia fundamental encontra-se apartada do resto da estrutura neurótica, portanto, de alguma forma deixa em evidência que nem tudo pertence à seara do sentido. Em Freud (1920), a postulação da pulsão de morte manifesta na compulsão à repetição permite vislumbrar que a análise do sintoma esbarra com um excesso pulsional indomável e chega a um limite ininterpretável que incide no tratamento, por exemplo, sob a superegoica necessidade interna de punição e a inacessibilidade narcísica. Esses impasses que ganham maior relevância no debate freudiano a partir da década de 1920 ressaltam o laço primordial entre a morte e a sexualidade no inconsciente, apontando sua vertente pulsional – denominada como o isso – não equivalente ao representável.

 

2- As formalizações lacanianas:

a) A onipotência do simbólico no primeiro tempo do ensino de Lacan: o Nome-do-Pai e o significante falo

Apoiado na antropologia e incorporando de modo bastante singular a linguística saussuriana, Lacan converte o mito edipiano e o complexo de castração a questões de estrutura. Seu “retorno a Freud” a partir dos anos 1950 emerge no contexto de reação crítica à visada adaptativa da psicanálise propagada pela Egopsychology. A restituição da primazia concedida ao simbólico na organização subjetiva permite pensar os elementos da estrutura edipiana como operadores da linguagem que localizam o sujeito nos destinos da sexuação.

Miller (2009) enfatiza que, no período que compreende todas as exposições de Lacan até o Seminário 6, há uma maciça absorção do imaginário pelo simbólico, em um processo de extensa significantização da constituição do psiquismo. Um pólo de gozo heterogêneo ao campo simbólico é apresentado com a apresentação do conceito de das Ding. No entanto, essa passagem é relativizada com a postulação do objeto a, o qual impõe a subordinação do gozo à linguagem. Pretendemos aprofundar os desdobramentos que perpassam esta primeira fase do ensino de Lacan. Essa operação é situada por Miller como a primeira virada do ensino lacaniano, na medida em que toma a obra de Freud pelo avesso, tendo precedido o que ele denomina uma segunda virada, que ocorre a partir do Seminário 20, e que passou a subordinar a linguagem ao gozo.

Na leitura lacaniana, a função paterna é alçada à categoria do significante Nome-do-Pai, o qual é designado como o eixo da estruturação psíquica e definido pela produção de um sujeito mortificado, aspirante a um gozo inatingível. De acordo com Coelho dos Santos e Lopes (2013), o pai desempenha a função de assegurar a ordem simbólica na constituição subjetiva e no laço social pelo fato de que a primazia do simbólico vigente na cultura da época permitia equivaler o Nome-do-Pai e os significantes da tradição, preservando, desse modo, a relação do sujeito com o campo da enunciação.

Lacan (1957-58) mostra que, na relação com a mãe, – o Outro originário – a criança experimenta o falo imaginário (-φ) como o desejo materno. A afinidade existente entre o significante paterno e o complexo de castração conduz à separação da criança de um modo de gozo vinculado à sua posição edipiana como falta-a-ser da mãe. A metáfora paterna fornece retroativamente sentido e valor fálico ao sujeito. É responsável pela metaforização do desejo da mãe e pela localização do gozo nos enlaces da lógica fálica. Daí resulta a emergência de um sujeito barrado ($), intimado a sair da posição de objeto fálico, que é recalcada na estrutura neurótica, para assumir uma posição sexuada no interior da dialética entre ter e não ter o falo.

Para encarnar esse operador da lei simbólica, é preciso que ao pai seja atribuída a posse imaginária do objeto fálico. Essa é a condição que o habilita a intervir como o agente regulador da economia do desejo. O significante Nome-do-Pai inscreve simbolicamente a falta do Outro na lógica fálica, transportando o objeto fálico para o plano significante que organiza todas as significações humanas. Nessa ótica do ensino de Lacan, para se estruturar na linguagem, o sujeito paga um preço da ordem do gozo, mediante o qual atinge outras possibilidades de satisfação no pacto civilizatório presidido pela diferença entre os sexos e pela hierarquia geracional. Isto é expresso pela passagem do falo imaginário (-φ) ao falo simbolicamente potencializado e impossível de ser negativizado, como Φ. O estatuto significante do falo implica que ele não se reduz apenas ao pênis negado (-φ), mas marca a própria operação que possibilita que todas as coisas se tornem significantes. A este respeito, Lacan (1966[1960]) destaca que a função de falta de significante desempenhada pelo falo é simbolizável pela inerência de um (-1) no conjunto dos significantes, como um traço que se traça por seu círculo, sem, no entanto, poder ser incluído nele. Portanto, é impronunciável. Sua origem é imaginária, relativa à imagem especular e ao investimento narcísico no pênis. Esta vertente só é superada na saída do Édipo, quando a imagem do pênis é negativizada, e, concomitantemente, sua função simbólica da castração é posta em primeiro plano. Segundo Miller (2009, p. 179-180), o falo “não é um significante abstrato, não é uma letra, não é um signo convencional, é um signo natural, elevado, porém, à qualidade de símbolo”. Através do falo, o sujeito se relaciona com a vida, ao preço de arrancá-lo de suas origens nos próprios impulsos vitais que caracterizam a pulsão, portanto, suas propriedades naturais são esvaziadas, isto é, sublimadas. Lacan (1957-58) o denomina como um simulacro, isto é, um objeto substituto através do qual o desejo se apresenta.

Por serem índices da falta, os objetos a se tornam seus substitutos e só podem engendrar esta função relativamente à castração. O estatuto do falo como significante fundamental implica o sacrifício de algo de real, uma “libra de carne” da vida é metaforizada, esta parte de si mesmo que o domina imaginariamente e da qual o sujeito precisa ser privado para que possa ascender à função de significante (Lacan, 1966[1960]). Segundo Lacan (Ibid., p. 841), no domínio do complexo de castração, “é preciso que o gozo seja recusado para que possa ser atingido na escala invertida da Lei e do desejo”. O sujeito advindo do simbólico é barrado em seu gozo com o vivo, o qual se encontra sob a chancela do significante. O pai, na psicanálise lacaniana, representa o Outro simbólico, da linguagem, para além do outro imaginário. Daí a definição princeps deste primeiro tempo de seu ensino que designa o inconsciente como discurso do Outro, de modo que as formações do inconsciente são concebidas como formações passíveis de decifração. É nesse sentido que, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan (1966[1953], p. 270), acentua o sintoma em sua vertente de mensagem ao afirmar que ele “se resolve por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada”.

Na experiência analítica, o analista é convidado a ocupar o lugar desse Outro suposto saber do inconsciente daquele que o procura demandando o sentido de seu sintoma. A interpretação desvela sua relação com os significantes originários da constelação familiar que o constituiu e os entraves na estruturação do desejo. Essa orientação preconiza os efeitos de verdade extraídos pela ficção construída em análise decorrente da articulação significante. O acento recai sobre o sentido, não havendo uma consideração específica sobre o que escapa ao simbólico. A fantasia – expressa por Lacan através do matema $a – constitui a principal resposta do sujeito ao desejo, na medida em que a lacuna significante imposta pelo Outro lhe é vertiginosa. Trata-se, para Lacan (1957-58, p. 421), do “imaginário aprisionado num certo uso do significante”. A fantasia dá suporte ao desejo, na medida em que este fixa seu objeto, o qual, longe de ser natural – pois envolve o circuito pulsional e não o instinto – é sempre constituída por uma certa posição do sujeito em relação ao Outro (Lacan, 1957-58). Portanto, possui uma dupla função: de um lado, é um artifício de defesa que tampona a falta do Outro, de outro, é o índice estrutural da posição frente ao desejo, uma resposta que permite ao sujeito sustentar-se como desejante pela fixação em um funcionamento libidinal inconsciente.

Lacan (1958-59) aponta a função de véu desempenhada pela fantasia frente ao real do desamparo. Trata-se de uma experiência de natureza imaginária, estruturada pelas formas narcísicas, na qual, ao mesmo tempo, mantém-se a relação do significante falo, uma vez que seus elementos imaginários só ganham função na relação com a castração. É o suporte construído pelo sujeito na medida em que ele se apaga pela ação da linguagem: tenta agregar consistência onde a inconsistência se instaurou na estrutura. O a é composto pelo resto das demandas que representam a falta para o sujeito, recobrindo o lugar vazio do significante. Partindo desse resíduo da relação primordial com o Outro materno, o sujeito toma-se como a, como falo imaginário. Assim, a estrutura fantasística mantém o falo com o estatuto de (-φ). Aqui, o estatuto do objeto a é o desse objeto imaginário que tenta restaurar a imagem narcísica perdida, suportando no imaginário a relação de corte que o sujeito precisa assimilar em sua estruturação no simbólico.

A fantasia vela a realidade da castração. Através desse anteparo, o sujeito aspira manter o Outro completo, disfarçando o fato de que, para que o Outro deseje, é preciso que algo lhe falte, pois o desejo é sempre desejo de um objeto perdido. É no ponto em que o sujeito vai ascender ao nível do inconsciente que emerge a fantasia. Lacan também enfatiza o fato de que $a constitui para o neurótico uma espécie de identificação defensiva que jaz no inconsciente. Como Freud bem observou na formulação do próton pseudos, por meio da fantasia, o neurótico mente, obturando a realidade inominável da castração. Coelho dos Santos e Lopes (2013) ressaltam, a partir das contribuições de Miller, que o registro imaginário é o berço das conceituações posteriores de Lacan sobre o objeto a. Neste primeiro momento, o objeto estava situado na relação do sujeito com os pequenos outros, de modo que o impasse à realização do sujeito, isto é, à soberania do registro simbólico, se situava no eixo a-a’. O objeto como obstáculo-imagem se caracterizava por impedir a assunção subjetiva devido à inerente defasagem entre a imagem refletida e a imagem real, já que algo sempre escapa à especularização. Sendo assim, o que escapa ao simbólico, neste momento, é atrelado ao registro do imaginário. A estrutura da fantasia encontra-se aqui fortemente vinculada ao lugar inercial, à tela imaginária representada pelo estádio do espelho (Miller, 2002). No entanto, por estar referido à castração, este objeto está ligado ao vazio que causa o desejo. A seguir, vamos nos dedicar a uma apresentação incipiente das consequências das novas formulações de Lacan a partir do Seminário 10 para os conceitos de fantasia e sintoma. 

 

b) A conceitualização do objeto a como objeto real: a contingência do corpo na inscrição significante

A introdução do objeto a e da fantasia põe em evidência a impossibilidade do processo de significantização encobrir toda a dimensão humana, já que esses dois conceitos se articulam através da referência ao gozo como objeto. O objeto a acena para a irredutibilidade do sujeito à articulação significante (Coelho dos Santos e Lopes, 2013). Lacan (1962-63) o designa por sua função de resto, como uma reserva libidinal que sobrevive à prova do encontro com o significante puro, à divisão do campo do Outro e que comparece como um núcleo de gozo satisfeito de modo autístico. Para abordá-lo, faz alusão aos objetos pulsionais, como o seio, as fezes, o olhar e a voz, os quais fixam o sujeito na fantasia – o que nos remete ao que Freud (1919) denominou com o “traço de perversão” constituinte da fantasia em decorrência de sua afinidade com as pulsões parciais. Portanto, evoca a necessidade de pensar que o sujeito do significante é um sujeito encarnado em um corpo de forma singular e contingencial. Diz Lacan:

“Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo. Esse é um ponto essencial a lembrar, uma vez que um dos campos criadores da negação consiste em apelar para alguma coisa, para algum substituto. O desejo sempre continua, em última instância a ser desejo do corpo, desejo do corpo do Outro, nada além de desejo de seu corpo” (1962-63, p. 237).

Desde o início de seu ensino, Lacan (1956-57) ressalta que, embora na vertente pós-freudiana o objeto figure como central, o que de fato interessa à psicanálise é a falta de objeto, uma vez que ela é a própria mola da relação do sujeito com o mundo. O objeto a “presentifica uma relação essencial com a separação como tal” (Lacan, 1962-63, p. 235). Surgido do processo de separação, adquire valor em relação à falta no Outro. Ao mesmo tempo em que demarca o vazio em torno do qual a pulsão se satisfaz, a função de a se refere ao objeto pré-genital, não falicizado, não inscrito na significação fálica, a da castração, ocupando o lugar negativo de (-φ), como objeto mais-de-gozar (Lacan, 1969).

Coelho dos Santos e Lopes (2013) observam que o objeto a resulta de uma separação relativa à desaparição do órgão fálico no orgasmo e não de uma interdição. Desse modo, é anterior à simbolização do desejo pela via fálica. A postulação desse conceito põe em questão a função do pai e a exclusão do gozo supostamente agenciada por ele, o que culminou na formulação do conceito de das Ding, no Seminário 7, onde o alcance do gozo é posto radicalmente no campo do impossível. Uma mudança de paradigma desloca a concepção de um gozo impossível para um gozo acessível em pequenos fragmentos nos objetos condensadores do gozo e resistentes à metaforização. A função do pai passa a incidir sobre a localização do gozo no objeto a. Portanto, a operação paterna introduzida no Seminário 10 não produz mais um sujeito desconectado do gozo. Segundo as autoras (Ibid., p. 159) “a passagem do Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai responde à questão sobre de que modo o inconsciente pode começar a ser pensado como lugar de interseção entre a linguagem e o corpo”. O Édipo recebe o estatuto de elucubração de saber sobre a separação interpretada como castração operada pelo pai. Ocorre, assim, a passagem da universalidade do mito edípico para os mitos particulares que, assim como o Édipo, introduzem para o sujeito uma significação acerca da perda de gozo e seu direcionamento ao Outro. Com essa mudança de ênfase, a castração é generalizada sob as formas de separação entre o sujeito e o Outro e o falo também decai como valor universal primário, fornecedor da garantia da cadeia significante (Coelho dos Santos e Lopes, 2013). Trata-se da apresentação de uma perspectiva que não reduz a função do simbólico à ação de uma identificação, mas valoriza a sua possibilidade de criação do novo, de algo que não existia antes e que diz respeito à satisfação pulsional e dá suporte à causa do desejo.

Para Lacan (1962-63), a experiência da angústia sinaliza o real enquanto presentificação do objeto a. A ausência da falta perturba o desejo e se torna angustiante. A angústia atualiza o gozo próprio aos processos pulsionais inconscientes primários, sendo indicador da destituição subjetiva, prova de que o sujeito aí é um objeto causa do desejo do Outro. Esse resto de gozo se traduz na experiência da angústia, que se antecipa ao sujeito no ponto em que ele não é ainda e instala para o sujeito a necessidade de separação com o objeto para que depois ele possa vir a ter relação com a falta, com o desejo do Outro.

O objeto a, portanto, precede o desejo, a lei e sua simbolização, pondo em primeiro plano o inconsciente formalizado por Freud como processo primário, o isso, a sede das pulsões, anterior às operações do narcisismo e do Édipo (Coelho dos Santos e Lopes, 2013). O inconsciente como processo primário antecede àquele que é definido por sua concatenação no campo do sentido, como discurso do Outro. Neste momento, o sujeito ainda está em vias de advir, encontra-se objetalizado no circuito pulsional, pois, conforme afirma Lacan (1964), no nível da pulsão, o sujeito é acéfalo. Com a postulação do inconsciente pulsional nesta mesma época, Lacan contempla a dimensão do corpo na incidência do significante sobre o vivo. Ele afirma que o inconsciente “é aquilo que se tranca uma vez que isso se abre segundo uma pulsação temporal” (Ibid., p. 136). Desse modo, o inconsciente estruturado como uma linguagem, como suposição de saber, é relativizado com a entrada em cena de uma concepção que o considera homólogo a uma zona erógena que se abre e se fecha, valorizando nessa abertura e nesse fechamento uma hiância que concerne ao fracasso da articulação significante e à causa do desejo como algo que escapa ao simbólico. Segundo Miller (1998), pode-se dizer que o objeto a é um oco através do qual se pode obter o circuito da pulsão. Por não possuir substância, ele constitui-se primordialmente como um vazio. Lembremos que Lacan (1964) indica o seguinte:

“A esse seio, na sua função de objeto, de objeto a causa do desejo, tal como eu trago sua noção – devemos dar uma função tal que pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da pulsão. A melhor fórmula nos parece esta – que a pulsão o contorna. Encontraremos sua aplicação a propósito de outros objetos. Contorna, devendo ser tomado aqui com a ambiguidade que lhe dá a língua portuguesa, ao mesmo tempo turn, borda em torno da qual se dá a volta, e trick, volta de uma escamoteação” (Lacan, 1964, p. 160).

A gramática da pulsão é feita de significantes recalcados decorrentes da ação da linguagem e da sexualidade sobre os orifícios corporais. Enquanto destacáveis do corpo, os objetos pulsionais podem ser intercambiáveis, entrarem em uma economia de troca com o Outro. Os representantes da pulsão indicam as demandas modalizadas pelas pulsões parciais. Miller (1998, p. 27) adverte que “o real do objeto pequeno a é vazio, localizado como oco-furo, que responde a um gozo perdido substituível por equivalentes que são semblantes”. Assim, ele ressalta que os objetos que são materializados em objeto a são semblantes. Os que são elencados por Freud e Lacan, como o seio, as fezes e o olhar, são os primeiros da história do bebê a preencher esse oco, provando que a pulsão encontra os semblantes necessários ao seu autoerotismo no campo do Outro. Todo esse circuito seja contingencial e singular, considerando-se que a invenção desses semblantes se dá no campo da cultura, onde são circunscritos possíveis modos de gozar para satisfazer a pulsão, o que leva Miller a sugerir o termo auto-hetero-erotismo para mostrar que a satisfação autoerótica recorre aos meios hetero, oriundos do Outro.

Lacan (1964) denomina o contorno pulsional do objeto a como um movimento circular por meio do qual o sujeito tem acesso à dimensão do grande Outro na pulsão. O objeto a diz respeito a esse algo do Outro que é transportado nos trilhamentos pulsionais ao campo do sujeito como um resto de indiferenciação. Miller (2009), numa apreensão lógica desse momento do ensino de Lacan, ressalta que o gozo é trabalhado em termos de fala e de linguagem, posto que a pulsão é definida como uma cadeia constituída pelos significantes orgânicos, emprestados do corpo. Assim, o gozo comparece por intermédio da ligação do significante aos objetos parciais. É o que sintetiza o matema da pulsão apresentado por Lacan (1966[1960]) no grafo do desejo $ D: aqui a pulsão é escrita como uma modalidade de relação do sujeito como a demanda.

O matema da fantasia $ a denota um ponto privilegiado de articulação entre o sujeito barrado, efeito da inconsistência do Outro, onde um significante (S1) assume o valor de representante do sujeito para outro significante (S2) com o objeto a, peça destacável do corpo convidada a suprir os vazios do sujeito e do Outro. Na fantasia, o sujeito aparece não apenas como significação fálica, nem como gozo perdido ou mortificado, mas também como objeto do gozo do Outro recuperado sob a forma de mais-de-gozar (a) (Coelho dos Santos e Lopes, 2013). Miller (2009) destaca que a fantasia é amboceptora por conectar o sujeito subordinado ao significante com o objeto condensador de gozo. A fantasia é comparada a uma espécie de molécula que reúne átomos de significância e de gozo que se tornam suscetíveis de transformação numa reação química na experiência analítica. Ou seja, refere-se a uma relação fundamental com o gozo modulada pela estrutura da linguagem que define a forma como a realidade é abordada pelo sujeito, segundo Lacan (1964), como uma “janela”. Miller (2009) contrapõe essa concepção do gozo encapsulado e alojado no objeto a na fantasia à forma como o gozo é expandido no último ensino de Lacan para a própria linguagem. Esse passo corresponderia, para Miller, a um novo avesso de Lacan, agora não mais em relação a Freud, mas em relação a ele mesmo. O aparelho de gozo não é mais restrito aos confins da fantasia: lalangue é o termo forjado por Lacan para capturar o real no significante ainda despojado de seu engendramento na estrutura da linguagem.

Afirmar que o conceito de fantasia conjuga elementos até então considerados fundamentalmente heterogêneos no ensino de Lacan implica em defini-la, do ponto de vista dos três registros lacanianos, como um possível enodamento do imaginário, do simbólico e do real. Do imaginário, por só poder ser representada como uma cena, pela produção de imagens. Por sua vez, a fantasia fundamental, desde Freud (1919), como vimos, revela-se como uma frase axiomática – Uma criança é espancada. Sua decantação na experiência analítica permite depreender reversões que se conformam como variações gramaticais: assim, também deriva do simbólico. O deslocamento da ênfase do imaginário para o simbólico permitiu a Lacan, mais adiante, tematizar a lógica da fantasia. Porém, Coelho dos Santos e Lopes (2013) advertem que a fantasia não se reduz a uma gramática aplicada aos objetos parciais, pois ela também implica o processo separação em jogo no complexo de castração. Por isso, a pulsão parcial é o equivalente dos efeitos da sexualidade no psiquismo.

A fantasia também comporta uma condição de gozo na pequena história representada – o que inclui o registro do real. O real da fantasia implica um resíduo imodificável, cuja mudança só pode ocorrer na relação do sujeito com essa impossibilidade. O final da análise consistiria na fratura da molécula fantasística, isto é, na disjunção entre o sentido e o gozo. O passe concebido como relato da travessia da fantasia em análise convida o sujeito a testemunhar sobre os ganhos de saber extraídos da construção fantasística, do modo como se alcançou uma distância do gozo encapsulado em a (Miller, 2009). A ruptura da fantasia seria correlata à emergência de uma verdade fora-do-gozo, portanto, de uma desconexão, um desenodamento entre significante e gozo. O sujeito é trazido de volta ao campo pulsional orientado pela diferença sexual, o objeto condensador de gozo modulado pela gramática das pulsões parciais cai.

Em razão disso, o fato de que o sintoma possua uma estrutura idêntica à da linguagem não implica que ele possa ser reabsorvido por completo na ordem significante (Miller, 1998). Definir o sintoma como uma mensagem a ser decifrada não abarca toda a sua dimensão. É fundamental pôr em relevo sua vertente de gozo e este foi o movimento de Freud a partir da postulação do conceito de pulsão de morte, ao se debruçar sobre os sintomas da neurose obsessiva. O sintoma como gozo refere-se registro do real, resiste ao deciframento, a própria produção de sentido o realimenta, pois nele reside a inércia no modo de gozar. No sintoma, há o fundo de gozo do objeto a. A esse respeito, Miller (1998, p. 29) afirma que “situamos como real o sintoma, aparato que localiza o real do objeto pequeno a, com seus semblantes”. Seguindo esta orientação, todas as formações do inconsciente devem ser retomadas na perspectiva desse entrecruzamento entre o significante e o gozo.


Notas:

  1. A produção deste artigo encontra-se inserida no contexto de minha pesquisa de doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos, e com o financiamento da CAPES.

  2. Desde seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905) elucidou o papel preponderante dos objetos parciais na dinâmica libidinal infantil, caracterizada pela perversão polimorfa. Os laços primordiais com o mundo externo representado pelos pais efetuam a erogeneização do corpo, introduzindo a criança no universo dos objetos parciais e das representações. A sexualidade infantil privilegia alguns objetos, certas zonas erógenas – oral, anal, fálica –, condicionando a criação de tendências de satisfação libidinal.


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Resumos

Symptom, fantasy and object a in the analytic experience

This paper is an attempt to deepen the profound relationship between symptom and fantasy in psychoanalytic practice. It is developed around the reading guidelines provided by Jacques - Alain Miller. This work is mainly guided by the statement, found in the 11th lesson of his course “Choses de finesse dans la psychanalyse” that Lacan resumed the Freudian concept of fantasy to point it out as the place in which language and jouissance intersect. In addition to demonstrating how this intersection is established in the legacy of Lacan, with regard to the first two chapters of his teaching, the article analyzes if it is also possible to demonstrate the participation of this intersection in between signification and satisfaction in Freudian theories about fantasy.

Keywords:fantasy, symptom, language, jouissance, object a.


Symptôme, phantasme et objet a dans l'expérience analytique


L'article essaie d'approfondir la relation intime entre le symptôme et le phantasme dans la pratique psychanalytique. Son développement se cadre dans les axes de lecture fournis par Jacques -Alain Miller. L’orientation principale est l’affirmation qui se situe dans la 11e leçon de son cours “Choses de finesse en psychanalyse” selon laquelle Lacan aurait repris le concept freudien de phantasme pour l'élire comme le lieu de croisement entre le language et la jouissance. En plus de démontrer comment ce croisement s’ établit dans l'héritage de Lacan, en ce qui concerne les deux premiers temps de son enseignement. L'article analyse s’ il est également possible de démontrer la présence de cette intersection entre le sens et la satisfaction dans les théories freudiennes sur le phantasme.

Mots-clés:
phantasme, symptôme, langage, jouissance, objet a.

Citacão/Citation: OLIVEIRA, F.L.G de. Sintoma, fantasia e objeto a na experiência analítica, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p21-67.

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
15/10/2013 / 10/15/2013.

Aceito/Accepted:
28/12/2013 / 12/28/2013.

Copyright:
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