Introdução
Na rotina diária junto aos tribunais de justiça, onde vivenciamos a articulação permanente entre o direito e a psicanálise, nota-se um significativo aumento nas demandas e petições, perpassando a formalidade do processo e revelando o que entendemos como um pedido velado de reorganização na esfera pessoal ou social. Esse pedido é dirigido a algo ou a alguém que encarna muito bem a figura do juiz como representante da lei no ordenamento jurídico. A lei, sabemos, visa à manutenção dos acordos sociais, atuando sobre as relações em sociedade, a fim de que as normas sejam atendidas; busca tornar possível a coexistência entre os homens e se caracteriza por sua universalidade. Essas constatações, somadas a nosso trabalho com a clínica psicanalítica, motivaram a ideia desenvolvida neste artigo, em que, a partir de princípios e conceitos fundamentais do direito e da psicanálise, buscamos extrair ideias norteadoras para a prática profissional que envolve esses dois campos do saber.
Sabemos que, se há necessidade de lei, é porque desde o começo da civilização impôs-se ao ser humano a necessidade de algo que regulasse sua relação com os outros homens e com a natureza. O estabelecimento das relações sociais exigiu do homem subtrair uma fatia do seu ser de gozo, nem sempre fácil, para que se constituísse como ser de cultura. Nas sociedades civilizadas, o direito é o saber que se encarrega dessa função reguladora. Em busca dela, as demandas judiciais aportam nas comarcas e tribunais, chegando, por indicação do magistrado, à equipe multidisciplinar que o assiste. A psicanálise, desde seus primórdios, interagiu com o direito, com particular interesse na condição humana, no desenvolvimento da civilização e na origem das instituições sociais e culturais. Desde Freud, se constitui como um saber especialmente interessado na vida do homem na civilização, no que coube ao homem ceder em prol da vida comum, e dos efeitos que isso produziu.
Pretendemos, aqui, abordar a atualidade das relações entre o direito e a psicanálise e suas aplicações práticas, acreditando na possibilidade de encontrar, naquilo que é universal no ordenamento jurídico, espaço para a escuta da singularidade do sujeito que busca na esfera judicial algo que intervenha como ordenação subjetiva a partir de sua demanda. Nesse enfoque, investigamos a importância da lei do pai como estruturante - tanto da subjetividade, como do ordenamento jurídico e social. A função paterna encontra-se na origem dos fundamentos normativos do direito, já que este e suas leis representam, em nossa cultura, o saber que se encarrega do controle das relações humanas e são, antes de tudo, uma operação de discurso, fundada na autoridade paterna. Isto corrobora nossa hipótese de que, tanto no ordenamento jurídico quanto na estruturação do sujeito, a função do pai opera como representante da lei. O homem como ser social está fadado, desde sempre, a interagir com seus semelhantes, construindo relações, estabelecendo laços sociais que necessitam de regulação, de normas que garantam tanto a convivência com seus pares, quanto a convivência com tudo aquilo que comporta e compõe a vida na civilização. Assim, pareceu-nos interessante discutir as articulações entre direito e psicanálise a partir de pontos em que tanto um saber quanto o outro são chamados a se pronunciar: o sofrimento humano e a responsabilidade perante o desejo.
Pai primevo e metáfora paterna: a lei do pai em Freud e Lacan
Jacques Lacan apresenta formulações teóricas que lançam luz sobre o texto freudiano, de maneira inovadora e original. Assim, é que se sucede em relação à leitura que empreende do complexo de Édipo formulado por Freud. Esta leitura não deixa de sofrer influências do estruturalismo, seja pelo viés da linguística de Ferdinand Saussure, seja pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Lacan, assim, repensa o Édipo como mito fundador da cultura, como função simbólica:
“É precisamente isso que é expresso por esse mito necessário ao pensamento de Freud que é o mito de Édipo. [...] É necessário que ele forneça a origem da lei sob essa forma mítica. Para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada pelo pai, é preciso haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente ligadas – o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai” (Lacan, 1957-58, p. 152).
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Esse pai aparece em seu vazio, como operador da lei. Trata-se de uma lei simbólica que intervém como instância interditora com efeitos sobre a estruturação do sujeito, já que barra a plena satisfação pulsional, permitindo o estabelecimento da vida em grupos regulada socialmente e dando um destino à pulsão orientada pela referência simbólica. Lacan (1954-55) salienta a importância de que se apreenda a dimensão, na vida de cada um de nós, da função simbólica:
“A ordem humana se caracteriza pelo seguinte – a função simbólica intervém em todos os momentos e em todos os níveis de sua existência. [...] está tudo ligado. Para conceber o que se passa no âmbito próprio à ordem humana, é preciso que partamos da ideia de que esta ordem constitui uma totalidade. A totalidade na ordem simbólica denomina-se universo. A ordem simbólica é dada primeiro em seu caráter universal” (Lacan, 1954-55, p. 44).
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Como seres de linguagem, adentramos nessa ordem simbólica antes mesmo que a reconheçamos, já que ela antecede a nossa existência. Chegamos ao mundo já fazendo parte de uma linhagem familiar e cultural, que nos imprime sua marca, nos nomeia e nos faz portadores e transmissores de uma história: “As falas fundadoras que envolvem o sujeito são tudo aquilo que o constitui, os pais, os vizinhos, a estrutura inteira da comunidade, e que não só o constituiu como símbolo, mas o constituiu em seu ser” (Lacan, 1954-55, p. 31).
Ao transmitir seu nome ao filho e impedir sua fusão com a mãe, o pai exerce uma função simbólica de transmissor de uma lei que o precede e da qual é o portador. Lacan (1938), ao analisar o papel primordial que a família desempenha na transmissão da cultura, observa:
“A família prevalece na educação precoce, no recalque das pulsões e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna. Através disso, ela rege os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, a organização das emoções [...] ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo funcionamento ultrapassa os limites da consciência” (Lacan, 1938, p. 30).
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O que a psicanálise postula desde Freud é que a família, além de exercer as funções sociais que dela se espera, ligadas ao cuidado, à educação e à preservação da vida, também exerce o papel privilegiado de transmissão de cultura. Nossa cultura, como representante dos laços de parentesco, é um lugar de transmissão da lei, transmissão que, assim como comporta efeitos conscientes, se passa eminentemente de forma inconsciente. Daí seu caráter essencialmente simbólico, já que é o símbolo que nos permite prescindir daquilo mesmo que representa. O pai, em nossa cultura, é o representante dessa transmissão, o que Lacan (1957-58) acentua ao afirmar que “o pai entra em jogo, isto é certo, como portador da lei, como proibidor do objeto que é a mãe. Isso, como sabemos, é fundamental”(p. 193).
Essa é a lei que se encontra nos fundamentos da cultura, operando o recalque das pulsões. O recalque atua no psiquismo impedindo determinados conteúdos inconscientes de chegarem à consciência; assim é que os desejos arcaicos da criança, relativos às suas pulsões sexuais e agressivas, são interditados pelo pai, impedindo mãe e filho de fixarem seu desejo um no outro. Ao serem recalcadas, as pulsões, que em seu caráter de insistência exigem sempre satisfação, aparecem ao sujeito como uma necessidade sempre urgente de encontrar a ilusão de completude um dia perdida. Freud (1929-30), em “O mal-estar na civilização”, discorre longamente sobre a renúncia pulsional que cabe a cada sujeito fazer como condição de acesso ao mundo cultural, à civilização: “É impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto. Esta frustração cultural domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos” (p. 118). A vida em sociedade impôs ao homem a necessidade de abdicar da liberdade individual em prol dos preceitos que passaram a pautar a vida grupal:
“A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. [...] O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar numa comunidade – contribuíram com um sacrifício de seus instintos” (Freud, 1929-30, p. 116).
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Em Freud, encontramos, tanto em Édipo, como no pai totêmico, mitos que nos dão a dimensão da renúncia pulsional que a civilização impõe ao sujeito e que têm como produto o acesso à ordem da cultura e a um certo mal-estar, o qual retorna no sujeito como insatisfação, como um sem-sentido presente nos sintomas que o afetam. Ao tomar parte na civilização, o sujeito tem para sempre perdida a sensação de conjunção completa com seu primeiro objeto de satisfação, a mãe. Esta lhe dava a ilusão de unidade, ilusão que, ao ser perdida, faz dele um sujeito marcado pela falta desse objeto primordial e de todos os substitutos dessa completude imaginária que ele representa, os quais durante sua vida irá buscar e não encontra: “A palavra civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos” (Freud, 1929-30, p. 109).
O pai que intervém no complexo de Édipo, interditando a mãe ao filho e o filho à mãe, é um pai regulador, que, promovendo a introdução do sujeito na cultura, opera o recalque das pulsões, exercendo, então, uma função cultural.
A lei do pai e a metáfora paterna em Lacan
O complexo de Édipo, como ensina Lacan (1957-58), tem uma função essencial de normatização: “O pai intervém em diversos planos. Antes de tudo, interdita a mãe. Esse é o fundamento, o princípio do complexo de Édipo, é aí que o pai se liga à lei primordial da proibição do incesto. É o pai que fica encarregado de representar essa proibição” (p.174).Em seus desdobramentos teóricos, Lacan elevará o pai à categoria de uma função. O pai que opera no Édipo como lei, desde Freud, não se confunde com o pai biológico. Temos então, em Lacan, o pai como uma função, lugar a ser referenciado pela mãe, aquele a quem a mãe faz referência em seu discurso. A essa função do pai ele acrescenta o termo “metáfora paterna”: “De que se trata na metáfora paterna? Há, propriamente, no que foi constituído por uma simbolização primordial entre a criança e a mãe, a colocação substitutiva do pai como símbolo, ou significante, no lugar da mãe” (Lacan, 1957-58, p. 186).
Lacan passa a pensar o pai como uma metáfora, formalizando o Édipo freudiano. Esse é um tempo extremamente fecundo de sua produção teórica. Ao mesmo tempo em que ministra seu Seminário 5, sobre as formações do inconsciente, produz textos como “A significação do falo” (1958a) e “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958b), entre outros. Suas elaborações sobre função paterna, metáfora paterna e Nome-do-Pai estão intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento dos três registros psíquicos essenciais da realidade humana: imaginário, simbólico e real. O imaginário como a instância em que está situado o eu, lugar das identificações primárias. O simbólico como o registro que reveste o campo da linguagem, dos significantes, sem o qual não haveria cultura, lugar do Outro, tido na teoria lacaniana como tesouro dos significantes, lugar da linguagem e da própria cultura. Por fim, o real como o que resiste a toda significação, o impossível, que não pode ser simbolizado.
À leitura atenta do texto freudiano, Lacan aliava as considerações teóricas de Ferdinand Saussure e Roman Jacobson, linguistas que, à época, revolucionavam o campo do saber a que pertenciam. Ambos marcaram sensivelmente as elaborações teóricas de Lacan dos anos 1950-60, ocasião em que, amparado no estruturalismo, formula conceitos que continuará a desenvolver e reformular ao longo dos anos. A partir de seu “Discurso de Roma”, Lacan (1953) enfatiza a função da palavra como portadora de sentido e da linguagem como uma estrutura que preexiste ao advento do sujeito e a esse determina: “Eis o homem, portanto, incluído no discurso que desde antes de sua vinda ao mundo determina seu papel no drama que dará sentido à sua fala” (Lacan, 1953, p. 159).
Para a psicanálise freudiana, o discurso do sujeito é sempre endereçado a um outro e encontramos seu sentido inconsciente nas falhas que produz – lapsos, esquecimentos, sonhos – utilizando, para tal, mecanismos de substituição de seu conteúdo inconsciente que permitam seu aparecimento no cotidiano de cada um. Freud desvelou que o que há por trás dos sintomas de toda ordem e que trazem sofrimento ao homem se ligava ao desejo; desejo que busca sua satisfação, mas que está sempre alhures; desejo que ao ser recalcado, mas não suprimido, divide o sujeito. Este, dividido entre o saber consciente e inconsciente é inserido no mundo cultural à custa de uma subtração do gozo pulsional e referido a uma falta que o constitui como sujeito de desejo, pelo acesso à ordem simbólica que governa a vida em sociedade. A essa falta simbólica a psicanálise nomeia castração. Essa castração é o resultado do efetivo exercício da função paterna, quando o pai aparece como possibilidade de substituir a mãe no amor do filho, separando um do outro, permitindo à criança a apreensão de sua imagem como diferenciada.
Em torno dessa operação de substituição de um termo por outro, mantendo uma similaridade, Lacan constrói sua teoria da metáfora paterna como uma substituição significante, o que lhe permitirá formalizar teoricamente o que ocorre na constituição subjetiva quando, pelo acesso à ordem simbólica, o sujeito aparece em sua estrutura de divisão. Temos aqui uma operação significante, cujo operador é o pai e o resultado é o falo, significante da falta. O pai, vinculado ao Outro da cultura: “Por outro lado, o que o pai proíbe? Ele proíbe a mãe. Como objeto, ela é dele, não é do filho. [...] O pai efetivamente frustra o filho da posse da mãe. O que permite ao pai, num momento posterior, se fazer preferir em lugar da mãe” (Lacan, 1957-58, p. 178).
O pai como metáfora aparece em substituição a um primeiro significante, o significante materno. Num primeiro tempo do desenvolvimento infantil, sob a égide do imaginário, a criança se vê capturada pela imagem da mãe, não se distinguindo como um corpo integrado, separado dela. O pai intervém e incide sobre a relação estabelecida primordialmente entre a mãe e a criança, fazendo-se preferir a ela. A criança se vê desde o início dependente do desejo materno, de uma mãe que vem, que vai, que pode estar ora presente, ora ausente. Lacan (1957-58) indica que essa ocasião, constituída por uma simbolização primordial entre a mãe e a criança, abre para a criança a “dimensão do que a mãe pode desejar de diferente” (p. 188). É quando passa a haver para a criança a possibilidade de substituir a posição imaginária de ser o objeto de desejo da mãe, o falo, por uma posição de ser desejante. Na medida em que isso se faz possível, na medida em que o pai se torna um objeto preferível à mãe, é que se pode estabelecer a identificação final ao pai.
Lacan (1957-58) mostra algo fundamental na teoria e nos consequentes desdobramentos clínicos, que é a questão da presença ou ausência do pai. A respeito do pai, observa que não devemos nos ater a nenhum efeito particular. O pai estar presente ou ausente fisicamente não prova nada: “falar de sua carência na família não é falar de sua carência no complexo” (p. 174). E ainda: “podemos dizer que é perfeitamente possível, concebível, exequível, palpável pela experiência, que o pai esteja presente mesmo quando não está” (p. 173). O que a experiência clínica nos atesta, desde sempre, é que Édipos podem se constituir satisfatoriamente, mesmo quando o pai não esteve presente, uma vez que falar de Édipo é já incluir o pai, mas o pai como função e, segundo Lacan, função significante:
“Digo exatamente, o pai é um significante que substitui um outro significante. Nisso está o pilar, o pilar essencial, o pilar único da intervenção do pai no complexo de Édipo. E, não sendo nesse nível que vocês procuram as carências paternas, não irão encontrá-las em outro lugar” (Lacan, 1957-58, p. 180).
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Essa teorização tem incidências clínicas extremamente importantes, já que, à época em que Lacan as formulava, o pai era analisado em sua presença ou ausência concreta, física, disso decorrendo uma infinidade de especulações sobre seu papel na família e na educação dos filhos. A neurose ou a psicose, todos os sintomas do sujeito são deduzidos das ações do pai. Ora, esse tipo de análise perdura ainda hoje, atribuindo-se, à carência paterna, a responsabilidade pela saúde ou pela debilidade dos sujeitos.
Como já foi dito, o retorno de Lacan à Freud foi marcado por uma profunda elaboração na qual os três registros da realidade humana - imaginário, simbólico e real– serviram para discriminar os diversos aspectos da função paterna. Neste momento do seu ensino, Lacan situa o registro simbólico como hegemônico em relação aos outros dois. É por isso que ele pode afirmar que não é na realidade efetiva do pai, naquilo que ele é ou não capaz de fazer concretamente, que devemos buscar sua eficiência, mas sim no desempenho de uma função simbólica que represente, ao filho e à mãe, que a essência da vida cabe a cada um buscar (1957-58). Essa função, que em nossa sociedade é desempenhada pelo pai, pode ser exercida por outro que não o pai concreto, o pai encarnado, mas por quem represente para mãe e filho que o desejo está alhures, alguém que desempenhe a função de remeter o desejo da mãe para outro lugar que não o filho, que desloque esse desejo para outra cena, para outro desejo que não o desejo do filho.
O pai, no exercício dessa função, aparece para a criança como aquele que detém um saber sobre a questão do desejo da mãe, passando a desempenhar uma função essencial em sua ordenação subjetiva ao regular o gozo pulsional – oferecendo uma via pulsional possível diante do impossível do gozo. A criança vê, então, que o desejo da mãe comporta algo que vai além dela, em outra direção que não ela, se desloca para outro objeto. Esse objeto chama-se falo: “[...] A relação do filho com o falo se estabelece na medida em que o falo é o objeto do desejo da mãe” (Lacan, 1957-58, p. 190).O pai intervém no complexo como o que priva a mãe de seu objeto de desejo, objeto fálico. O que temos de mais original na leitura teórica e clínica que Lacan faz do Édipo nesse seu momento teórico é que o pai que intervém como privador exerce sua castração privando primeiramente a mãe, e não o filho. O falo é o objeto representante desse desejo, dessa falta que é instituída no ser pela operação paterna de separação. É o objeto que circulará entre pai-mãe-filho. Lacan elucida:
“O falo é esclarecido por sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau, etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos. Pois o falo é um significante. [...] Que o falo seja um significante impõe que seja no lugar do Outro que o sujeito tem acesso a ele” (Lacan, 1957-58, p.699-700).
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Ao postular que o falo é o significante do desejo do Outro, aquilo que incide sobre a falta do Outro, atenta para o fato de que é em busca desse desejo que a criança vai, primeiramente na mãe, e em seguida no pai: “Quando falamos do complexo de Édipo, [...] acentuei o fato de que a primeira pessoa a ser castrada na dialética intersubjetiva é a mãe. É aí que se encontra, desde o começo, a posição da castração [...] a castração é inevitavelmente encontrada no Outro” (Lacan, 1957-58, p. 361).
E é a relação da mãe com outro discurso, o do pai, que caracteriza a entrada do pai na dialética edipiana. Ao retomar o Édipo freudiano, Lacan o ordena numa sequência de três tempos, integrando o Édipo à constituição do sujeito de desejo e situando a falta no centro da experiência humana. Vejamos, então, as elaborações que Lacan destaca quanto aos tempos do complexo de Édipo e às posições ocupadas pela tríade pai-mãe-filho em cada um desses tempos.
Num primeiro tempo, o que a criança busca é satisfazer o desejo da mãe. Ser tudo para ela. Para tal, deseja ser o falo da mãe, identificando-se com o que imagina poder desejar a mãe. Lacan (1957-58) vai nos dizer que nesse momento “o sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo da mãe” (p. 198). Especularmente porque, nesse tempo de seu desenvolvimento, a criança se percebe confundida com a mãe, como se fossem uma só pessoa, não existindo mediação entre elas. Nessa relação dual, de complementaridade a criança se identifica imaginariamente com o objeto de desejo da mãe, o falo. Ser o falo para a mãe, ser o que imagina faltar à mãe, eis a questão aí colocada.
Num segundo tempo, o pai aparece como aquele que efetivamente priva a mãe. Instante em que impedindo a mãe de ser toda para o filho, abre aos dois – mãe e filho – a possibilidade de “simbolizar, dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se objeto” (p. 191). Privando a mãe, retirando-a da posição de detentora do que falta ao filho, o pai assegura a posição da lei como exterior a ela; a lei como simbólica se encontra no Outro da linguagem e da cultura. Lacan (1957-58) postula que é a partir dessa proibição que o pai se manifesta como Outro: “É na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se torna, pura e simplesmente, objeto do desejo da mãe” (p. 209).
Assim, a chave da relação edípica se encontra no fato de o pai remeter a mãe a uma lei que não é dela, mas de outro, ao qual submete seu desejo – circunstância em que, para Lacan (1957-58), a palavra do pai tem efeito de lei. O pai aparece então como aquele que tem um direito e o exerce. Ele intervém na relação mãe-filho marcando a mãe com uma falta. E é o encontro com esse ponto de falta no Outro que permite à criança localizar, presentificar sua própria falta. O pai opera um deslocamento do ser o falo para ter o falo, quando a criança vê desmoronar a imagem que tem de ser o falo para a mãe, ser o objeto desejado pela mãe. Através dessa operação de deslocamento, em que o pai reconduz o falo a seu lugar de significante da falta, de um lugar de falta, escancarando esse universo da falta e intervindo como o que des-completa.
O terceiro tempo do Édipo seria aquele em que o pai deve dar conta de suas promessas, como aquele que tem o falo, que detém um saber sobre o desejo:
“Na medida em que a etapa do segundo tempo é atravessada, é preciso então, no terceiro tempo, que aquilo que o pai prometeu seja mantido. [...] É por intervir no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não que o é, que se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto desejado da mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai pode privar” (Lacan, 1957-58, p. 200).
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À medida que o pai aparece ao filho como capaz de ser desejado, é que se produz a identificação do filho com ele, abrindo a esse a possibilidade de também ser desejado. Ao se perguntar o que o Outro deseja, a criança é tocada por essa questão fundamental em sua estruturação subjetiva: a questão do desejo do Outro impõe necessariamente, a ela, lidar com o Outro com uma estrutura marcada pela falta. Esse momento diz respeito à simbolização da lei. O desejo do Outro – mãe –, para a criança, é atravessado pela lei do pai. Por intervenção do pai será obrigada a se reconhecer como não sendo o falo, podendo se deslocar do fascínio imaginário de completude e aparecer como sujeito desejante; é quando a regulação da dimensão pulsional, operada pela função paterna como representativa da lei, lhe permite encontrar modos de satisfação através de múltiplos objetos. Segundo Miller (1998), em Perspectivas do Seminário 5 de Lacan, é no terceiro tempo do Édipo que Lacan opera uma leitura das mais importantes quanto à questão do pai na psicanálise: “No segundo tempo, o pai intervém como privador, é o pai que diz ‘não’, que intervém através da fala da mãe, sobretudo como fala do pai com um estatuto simbólico. O pai que interessa a Lacan é o terceiro, o pai que tem e dá e que promete em relação ao futuro” (Miller, 1998, p. 50).
E o que promete o pai? A possibilidade de transpor essa etapa, de se identificar a ele, a esse pai que lhe acena com a esperança de, num depois, seguir em busca de seu desejo, desejo que o leve ao encontro daquilo que há de mais particular em seu ser. A inserção dessa lei paterna, que diz não, mas também apresenta possibilidades, que diz sim – desde que seja dentro da lei – vai permitir ao sujeito encontrar na malha identificatória um suporte para sua falta. Nesses três tempos, então, se instauraria a identificação com a instância paterna. Pai que se afirma como suporte da lei, mediado pela mãe, que se revela como o que tem o falo: “O pai se revela como aquele que tem. É a saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa identificação chama-se Ideal do Eu” (Lacan, 1957-58, p. 201).
A identificação ao pai, que desaloja a criança do intuito imaginário de ser objeto do desejo da mãe, possibilita a entrada no mundo simbólico, marcado pelo significante da lei que, ao fechar a possibilidade de uma satisfação absoluta entre a mãe e a criança, abre as vias próprias à vida na cultura, marcada pela oportunidade de uma satisfação regrada, conquistada na lida diária do sujeito que não cessa de buscar seu desejo. A intervenção proibidora do pai, que diz não, mas aponta o que pode, permite que o sujeito não se identifique como sendo o falo. O fato de não ser o falo, aquele que deteria o que poderia completar o Outro, propicia desejar tê-lo, quando o pai, ao significar sua lei, surge como o que tem o falo desejado, aparecendo à criança como um Ideal, como suporte das identificações: “O Ideal do eu exerce sua função sobre o desejo e a normatividade sexual. [...] É uma função que coloca o sujeito sobre o eixo do que deve fazer como homem ou como mulher. [...] O Ideal do eu é uma formação da qual o sujeito sai novo” (Miller, 1998, p. 75).
A simbolização da lei do pai, ao permitir ao filho identificações posteriores, o constitui como sujeito de desejo. Ao inserir a falta, transmitindo a castração, torna possível a inscrição de uma singularidade. É com sua singularidade, e com sua divisão, que o sujeito toma parte na vida cultural, em que o espaço familiar figura como campo privilegiado às primeiras experiências de identificação, com a aquisição da língua materna, onde se aventura pelos desfiladeiros da demanda e do desejo. Se a família é o Outro da linguagem, o é também da lei que ela institui, limite e norte, interdição e autorização, referente simbólico da ordenação cultural. A família, primeiro Outro no qual o sujeito aliena sua demanda e seu desejo, institui uma ordenação subjetiva, pela operação de castração simbólica que produz. Essa castração atesta a presença de uma falta, de um vazio estrutural, que deixa um resto, um pequeno resto, uma herança familiar. A incidência da castração faz presente desejo e gozo e a inevitável responsabilidade de encontrar modos inventivos de lidar com o que não se deixa regular. O pai é o que interdita, mas não tudo. Se o pai hoje não é mais aquele Outro todo poderoso, isso necessariamente não decreta o seu fim. Os fins mudaram. E a função paterna segue como referência e ordenação subjetiva do sujeito, ordenando e possibilitando a vida na cultura, só que uma referência não-toda, que comporta as ficções e o real que lhe constituem.
Psicanálise e direito: articulações possíveis
Tanto o direito quanto a psicanálise, assim entendemos, encontram fundamento na estrutura da linguagem, retirando dela princípios norteadores. A nosso ver, é possível à psicanálise contribuir com uma leitura dos fenômenos jurídicos em que a subjetividade dos implicados nos processos judiciais tenha lugar. Pois, a oferta do campo jurídico se ocuparia desse mundo sem referências, já que a dimensão do direito comporta, através de seus operadores, um lugar de referencial simbólico. Ao dar tratamento ao fora-da-lei, o direito delimita o que não pode, mas para dizer o que pode,– desde que dentro da lei -momento em que opera ordenando a natureza pulsional humana. À medida que a civilização impetra aos indivíduos uma penosa renúncia pulsional em prol da vida comum, a exigência de leis que regulem e organizem a vida em sociedade se torna imperativa, desobrigando os homens do uso da força bruta. Sob a égide da ordem simbólica, passível de representação, a sociedade produziu instrumentos materiais e intelectuais em substituição à ancestral força braçal, o que alcançou sua representação maior, com igual ou superior potência e eficácia, na forma da lei. A força e o poder autorizados pelo direito, o qual é organizado como um corpo estruturado de normas, estão incontestavelmente radicados nas moções humanas, surgindo a cada momento que um perpetra sua vontade e subjuga o outro. O direito é a instância que passa a legislar sobre a vida em sociedade com a força simbólica da lei. Tal qual o pai, o direito representa e apresenta as interdições, marcando sujeitos e comunidades com uma renúncia pulsional que não é sem consequências para uns e outras.
A psicanálise nos adverte que o sujeito anda melhor na singularidade e se perde no plural. Se há lacunas, se há falta, nos convida à invenção de novos arranjos simbólicos, que levem em conta o que não se deixa regular. O direito nos indica que a pluralidade necessária na constituição dos estados de direito é sempre bem vinda, desde que não amorteça o singular. Suas lacunas podem ser um bom lugar para inserir uma calha por onde possa escoar a singularidade do sujeito, onde a presença da psicanálise, no acontecimento jurídico, em meio ao embaraço do sujeito diante da lei, encontra seu lugar. A função do pai, sua transmissão fundamental, continua sendo a de veicular uma falta, a castração. Propagar que se o Outro falha, se não há garantias, há invenção. A função por excelência de um pai é a de introduzir a possibilidade de o sujeito desfrutar pequenas satisfações, pedaços de real, que alimentam a luta pela vida.
Partimos da proposição de que o direito surge como ficção jurídica em torno desse vazio que a estrutura simbólica comporta, como um esforço de constituir um todo. Postula-se o surgimento e o estabelecimento do ordenamento jurídico como estrutura diante dessa dimensão de um mundo sem referência e a necessidade regulatória do laço social diante da civilização. Identificamos na edificação do Estado uma estruturação erigida sob a função do pai, bem como na instituição e na arquitetura do ordenamento jurídico que, com suas normas, rege a vida social. Identificando que não há norma que dê conta de tudo regular, o próprio ordenamento jurídico atesta um furo no simbólico pela inexistência de uma norma última. A comprovada necessidade constante do direito de produzir novas normas para dar conta da vida na cultura culminou na postulação, por parte de seus estudiosos, da existência de lacunas em todo ordenamento jurídico. Diante dessa lacuna, com sua ordem pater, o direito se introduziu como uma referência simbólica, que com a psicanálise sabemos ser o lócus da linguagem, da ficção e segue operando a lei. É em torno dessas lacunas, do vazio de referências, que o direito opera suas normas, regulando e distribuindo o gozo pulsional, suportando os efeitos do impossível que a lacuna transmite.
Acreditamos que a psicanálise, ao se posicionar ao lado do direito na escuta do sofrimento que irrompe nos processos jurídicos, signos de um mal-estar e de um embaraço com a vida, possa favorecer o advento de modos singulares de enfrentamento das vicissitudes da vida e do gozo. O direito, então, pode ser compreendido como uma ficção simbólica, como uma resposta civilizatória para oferecer referência diante do irregulável. Diante do irregulável da pulsão de morte, do gozo, do real, tanto a psicanálise quanto o direito podem representar a aposta de que é exatamente nisso – no que não tem regulação – que encontramos no sujeito sua singular maneira de suportar o impossível que a lacuna transmite.
Referências Bibliográficas
FREUD, S.(1929-30) O mal-estar na civilização, em Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1974, vol. XXI, p. 81-171.
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Resumos
The role of the father: a dialogue between law and psychoanalysis
This article discusses the relevance of the relationship between psychoanalysis and law and its practical applications, taking for direction the drive the effects of father's role, both in subjective constitution and the legal system. We investigate the possibility of creating, in this universal system, a space for the singularity of the subject that often approaches justice looking for something to intervene as a subjective ranking. The law of the father, with its structuring role, is at the heart of the constitution of the subject and of the foundations of culture, operating a subtraction of instinctual enjoyment and returning under the effects of a malaise that affects both the body of the subject and the society.
Keywords: psychoanalisis, law of the father, castration law.
La fonction du père : un dialogue entre le droit et la psychanalyse
Cet article traite de l’actualité des relations entre le droit et la psychanalyse et ses applications pratiques, ayantcomme axe conducteur les effets du rôle du père, aussibiendans la constitution subjective, quedans le systèmejuridique. Nous avons étudié la possibilité de créer, dans la dimension universelle de cet ordre, un espace pour la singularité du sujet, qui, souvent, arrive aux portes de la justice à la recherche de quelque chose qui puísse intervenir comme un ordonnancement subjectif. La loi du père, avec son rôlestructurant, estaucoeur de la constitution du sujet et des fondements de la culture, et opère une soustraction de la juissancepulsionelle, en reapparessantsous les effetsd’un mal-êtrequiaffecte à la fois le corps du sujet et le corps sociale.
Mots-clés: psychanalyse, loi du père, loi de la castration.
Citacão/Citation:PEREIRA, S.A.; CHAVES, W.C. A função do pai: uma interlocução entre o direito e a psicanálise, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p37-50.
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 29/09/2013 / 09/29/2013.
Aceito/Accepted: 03/12/2013 / 12/03/2013.
Copyright: © 2013 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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