Um dos sintomas mais evidentes da modernidade é a violência. Ainda que sempre tenha existido, observamos hoje seu significativo aumento e sua apresentação em novas roupagens. Em tempos passados, a violência e seus efeitos estavam confinados a limites definidos: às guerras, aos conflitos de poder, às revoluções ideológicas, aos saques, à pirataria ou ao simples banditismo. Atualmente, as fronteiras foram quebradas e surgiu um mundo interligado, global. O imperialismo militar foi substituído pelo império cultural e econômico. As pessoas assistem aos mesmos filmes, veem propagandas dos mesmos produtos e querem comportar-se de forma semelhante. As armas de guerra do corpo a corpo cedem lugar aos controles de um artefato robótico de longo alcance, que matam seres humanos no outro lado do mundo com um simples apertar de botão. As antigas ideologias são substituídas por uma visão padronizada do mundo ou se confundem nos corações e nas mentes.
A violência segue esse destino. Incrementa-se, prolifera, multiplica-se, joga por terra qualquer parâmetro lógico e estatístico. Já não podemos localizá-la; está em toda parte. E mesmo quando não se realiza, está presente como uma ameaça em nossa existência. O poder abrangente da violência se manifesta não apenas nas terríveis tragédias cotidianas que, por repetidas vezes, parecem coisa do dia a dia, mas na maneira como passamos, a partir delas, a interpretar o mundo. Todo gesto pode levar a uma violência, o “outro” se transforma em inimigo potencial. A todo o momento, procuramos encontrar um ponto que nos assegure de que não seremos os próximos a serem atingidos por ela. Desprovida de todo cálculo, das molduras ideológicas, ela irrompe sem plano, sem sentido explícito e derruba a crença de que ainda guardamos alguma racionalidade.
E como todo o inesperado, a violência dissemina ansiedade, temores, desespero e, principalmente, gera mais violência. Como uma ciranda. Afinal como combater um inimigo que está em todo lugar? Uma estratégia seria tentar personalizá-la. Então, passamos da angústia ao medo. Tanto melhor, ela agora está encarnada em alguém... Assim vai sendo traçada a vida das cidades. Às vezes não tanto, às vezes não pouco. Alguns pontos das cidades, porém, acabam por se tornar o palco maior onde ela se encena: as favelas. Nesses locais, ela é tão real que parece ter corpo. E tem: o corpo dos jovens. Ali nada de botões ou satélites que enviam bombas, nada de drones, não se trata de uma guerra asséptica. Ao contrário, ela é travada entre os próximos, os vizinhos. Em alguns lugares é tão constante que chega a ser própria do lugar: “lugar violento”. Nas favelas, a violência não segue seu destino; é como se fosse “o” destino.
E é nas favelas onde se travam as maiores guerras entre jovens, guerra das quais eles são, em um momento, vítimas, e em outro, agressores. Na sua grande maioria, as lutas, sejam quais forem seus motivos, são travadas entre grupos, as conhecidas “gangues”. Levados pelo tráfico, pela conquista de território ― ali, sim, bem demarcado ―, pelo prestígio, pela menina, os jovens nas gangues se enfrentam diuturnamente. Conforme pesquisas, em algumas favelas de nosso país morrem mais jovens, envolvidos com gangues, por ano, do que nos países em guerra.
Mas de que falamos quando afirmamos existirem “guerras entre jovens agrupados em gangues”? Várias são as hipóteses levantadas, para explicar essa “guerra” que transforma os jovens moradores de favelas em soldados, num exército sem Estado, e faz de suas “pátrias” um lugar aparentemente sem lei. Esse movimento é a guerra, tal qual a descrevem alguns jovens: “guerra é isto, você dar tiro nos cara que são do outro lado”2. Portanto, qualquer passo descuidado pode significar a morte. Quando perguntados como essa “guerra” começou, a maioria desses jovens não sabe dizer, “acho que foi sempre assim, eles querendo matar a gente e nós também”.3
Sociologia das gangues
Inúmeras pesquisas sociológicas e antropológicas4 têm sido empreendidas no sentido de responder a questão sobre o crescimento desse “fenômeno” que se tornou a “guerra de gangues” entre jovens moradores de favelas. Essas pesquisas tentam delimitar um universo no qual cada vez mais se mata pela manutenção dos territórios de venda de drogas, como também por quaisquer motivos que ameacem o status de jovens em busca da afirmação de sua virilidade: a namorada, o objeto cobiçado, o orgulho.
Para a antropóloga Alba Zaluar5, para se entender esse universo “o fio da meada deve ser substituído pelos padrões de uma complicada tessitura de discursos que se entrecruzam e se alimentem mutuamente” (Zaluar, 1994, p. 9). Ela destaca que um dos nós da questão é o enfraquecimento dos laços de lealdade e dependência entre pais e filhos, padrinhos e afilhados, que “não foi compensado pelo aparecimento de um novo mapa para guiar os caminhos dos jovens” (Zaluar, 2000, p. 92). A autora afirma que o adolescente, ao procurar uma referência, encontra cada vez mais uma figura que ostenta os atributos do poder que não admite oposição — a arma na cintura —, assim como os objetos cobiçados do consumo — “o carro, a roupa de grife, o brilho do pó” (Zaluar, 2000, p. 93). Ou seja, os jovens recebem com facilidade a influência de valores que os impele a uma busca desenfreada do prazer e do poder.
Por outro lado, fracassam as redes de socialização. Nas escolas, a evasão aumentou nos últimos anos, especialmente nas classes mais pobres. Por conseguinte, para jovens sem formação, o mundo do trabalho se apresenta desinteressante e de pouco retorno financeiro, frente à vida lucrativa (ainda que perigosa e curta) de bandido. O trabalhador formal é visto por eles como um explorado, um “otário”, que trabalha cada vez mais para ganhar cada vez menos, o que representa a negação do que é ser um homem. Zaluar lança a pergunta: “como fazê-los admirar e tomar por modelo o pai que se curva a esta árdua rotina, à exploração e ao autoritarismo?” (Zaluar, 2000, p. 149). Os heróis agora são outros. Os malandros de outrora, que tinham a “manha” de levar o outro na conversa, foram sendo substituídos por jovens armados e a briga do corpo a corpo foi trocada pela arma na cintura.
Outro catalisador para a adesão desses jovens ao mundo do crime apontado pela citada autora é a busca do enriquecimento rápido, não como consequência da fome ou miséria absoluta, mas como resultado da necessidade de consumo. Para ela, esses jovens, por meio dos crimes, procuram encontrar uma forma de acesso aos objetos de “marca”, ao que chamam de “luxo dos ricos”. Todavia, esses objetos, tão logo adquiridos, deixam de ter valor de uso e passam a servir como elemento de troca. Essa procura acaba conduzindo-os a um circulo vicioso, já que “o jovem ‘derrama’ o que ganha logo, e como não quer ver o seu bolso vazio, é um eterno insatisfeito, obrigado a repetir o ato criminoso ad infinitum para preencher constantemente o bolso” (Zaluar, 1994, p. 89).
O consumo, em especial das drogas, é, na maioria dos casos, apontado por Zaluar como o que leva os jovens ao envolvimento num circuito de dívidas de sangue. Nesse momento, muitos deles encontram nas quadrilhas uma forma de proteção; o primeiro passo para uma “engrenagem que não controlam” (Zaluar, 1994, p. 81). Desde então, eles devem estar constantemente armados, pois esperam sucumbir em qualquer esquina, levando-os a um envolvimento cada vez maior com esses grupos. A autora aponta esse movimento como uma “estranha solução”: os jovens precisam das quadrilhas para se defender, mas, paradoxalmente, é a permanência nelas a razão maior das ameaças onipresentes.
Essa junção de decadência de valores e busca pelo consumo são dois ingredientes destacados pela antropóloga para a entrada dos jovens num círculo mortífero. A quadrilha, afirma Zaluar, aparece como um espaço onde os jovens tendem a se agrupar a partir de valores próprios, da construção de símbolos particulares e de uma identidade forte. Isolam-se, assim, do mundo dos adultos e de sua classe social. A autora conclui que existem dois sistemas de socialização concorrentes agindo simultaneamente na formação dos jovens: o dos trabalhadores e o dos bandidos.
Ela ainda destaca que nesse sistema formado pelas “quadrilhas”, as regras são rígidas e cobradas como uma obediência ao “chefe”. Zaluar divide em dois o grupo desses participantes: teleguiados e chefes6. O chefe, também chamado de “cabeça”, é aquele que conquista o respeito e o medo dos outros e, por isto mesmo, provoca ciúmes e hostilidade nos seus comandados. Para qualquer um ocupar esse lugar, é preciso, primeiro, provar “disposição”, ou seja, que se é dono de sua própria vontade.
Zaluar distingue as quadrilhas dos bandos “fora da lei”7, nos quais existe “um programa de defesa ou restauração da ordem tradicional, das coisas tal como deveriam ser” (Zaluar, 2000, p. 166). Nesse sentido, ela afirma que os jovens das quadrilhas não são reformistas, nem revolucionários. Não lutam por relações mais justas entre ricos e pobres, fortes e fracos. E também não se pode dizer que se trata de uma guerra civil entre pessoas de classe sociais diferentes, e, muito menos, de uma clara guerra entre polícia e bandidos ou de alguma forma de vingança social. Para a autora, trata-se de um circuito de trocas (de tiros) implacável nas suas regras de reciprocidades, em que desaparecem as distinções entre inocente/culpado; justo/injusto; trabalhador/bandido. Ela assevera que se trata de uma “banalização da morte”, uma vez que, nesses grupos, “o ato de matar uma pessoa não é julgado a priori como um crime, segundo a concepção universal da justiça. A avaliação moral desse ato simplesmente depende de quem foi morto e em que circunstância isso ocorreu” (Zaluar, 2000, p. 143).
Já para a socióloga Glória Diógenes, em Cartografias da cultura e da violência (1998), a manifestação da violência entre participantes das gangues é uma solução encontrada pelos jovens para se fazer incluir, para sair da zona de sombra às quais estão relegados. Ela parte da hipótese de que “essa experiência é um modo de inclusão social às avessas, cujo passaporte é a violência, e a marca cultural é o território” (Diógenes, 1998, p. 32).
Diógenes afirma que alguns agrupamentos juvenis, para diferenciarem-se, se autodenominam “gangues”, e assim ressaltam o envolvimento em brigas, nos “enxames”8 e nos enfrentamentos com a polícia. Ela enfatiza que essa denominação mescla dois referentes: o interno, do próprio grupo, que tem o intuito de dar visibilidade ao caráter violento de suas ações; e o externo, apregoado pelo esquema de segurança pública e pelos meios de comunicação, para os quais essa nomeação traz a marca do desviante, do delinquente.
Para a socióloga, a gangue aparece, então, como uma resposta à exclusão social, isto é, ela possibilita aos “proscritos da cidade” (Diógenes, 1998, p. 30) o direito de se fazer ver, de sair da invisibilidade9, de provocar impacto. Nesse sentido, o confronto violento entre as gangues é considerado como a forma encontrada pelos jovens da periferia de oficializar sua existência. Diógenes dá como exemplo o “duelo”, que possibilita colocar às claras quem mais “se destaca”. Trata-se de “ato tipicamente mágico pelo qual o grupo ignorado torna-se visível” (Diógenes, 1998, p. 31).
Como Zaluar, Diógenes também não aposta no fantasma do desemprego como causa para o jovem sentir-se excluído. Segundo ela, se o trabalho sempre representou um referente para as sociedades, para esses jovens ele é esvaziado de significado, “uma fantasmagoria” (Diógenes, 1998, p. 44). Desta forma, no lugar da premissa de que o “trabalho dignifica o homem”, para eles, “o trabalho não compensa”. O trabalho, para esses jovens, não tem função de pertencimento ou de reconhecimento no coletivo do grupo, e contrapõe-se ao tempo da gangue, um tempo sempre livre, destinado a inventar o que fazer. A ociosidade é, então, o referente.
Tais premissas são, segundo Diógenes, resultadas de um duplo movimento presente na cultura de massa: de um lado, o de inserção, coordenado por uma lógica universalizada, que dita e regula as maneiras de vestir, de usar os objetos do mercado e as redes de informação, conduzindo todos, fundamentalmente, a um processo identificador globalizado. De outro, o movimento de segregação provocado pela exclusão de uma grande maioria, à qual é negado o usufruto da premissa de que todos podem ter tudo. Os jovens, então, buscarão outras formas de inserção social nos espaços segregados. Isso os conduzirá a positivar outros referentes, tais como as gangues. Dessa forma, a criação de territórios e a prática do consumo criam para esses jovens um novo modo de produção de cidadania.
A autora afirma que a gangue se constitui como um “enxame” no momento da ação, nela nada é fixo, nada supõe sistematização, longevidade. Nem o território, pois, onde quer que o jovem esteja leva consigo sua marca; nem mesmo o chefe da gangue, que ela diferencia “dos cabeças” dos grupos de delinquentes, o chefe da gangue não precisa ter cabeça; ele não pensa, não fala. Notabiliza-se pela força física e pela coragem.
Tal quais outros autores10, Diógenes aponta como dificuldade a saída de um membro da gangue, que pode ser tomada como quebra dos princípios de fidelidade e honra acordados pelo grupo. Ela afirma que “a conquista da diferença e da visibilidade projetada através da gangue, de um grupo ignorado tornar-se reconhecido, faz valer um código, uma marca que, como as tatuagens e as cicatrizes fincadas no corpo, parecem irreversíveis” (Diógenes, 1998, p. 119).
Por essa via, pertencer a uma gangue irá provocar um efeito em cascata da violência: como os atos são praticados em nome do grupo, quando um jovem mata um membro de outra gangue, ele age em nome desse grupo. Essa disposição para responder pelo coletivo, que a autora nomeia de “solidariedade local” (Diógenes, 1998, p. 171), é o que dá coesão ao grupo. Dessa forma, os princípios de uma gangue constituem-se a partir de um código de honra, no qual a homogeneidade interna deve contrapor-se à ameaça do “estrangeiro”. Esse pacto entre os membros faz surgir a figura da “cruzeta”, designação dada àquele que ultrapassa as fronteiras estabelecidas ou quebra os pactos firmados. A “cruzetagem” coloca em risco a manutenção do grupo, o “todos por um”. Portanto, aquele que a pratica deve ser punido.
Para os participantes de uma gangue, o outro é sempre o inimigo. O outro traz a marca do uso recorrente da violência, enquanto que as experiências violentas vividas no interior das gangues permanecem invisíveis, carentes de significado. Essa constituição dos “entre si” de uma gangue pode também ser percebida na linguagem dos jovens: uma fala radicalmente homogênea, pautada na criação de códigos para os enturmados. De acordo com Diógenes (1998, p. 228), “ser das gangues torna-se um modo diferente de tentar tornar-se igual”. Como consequência, surgem “micros territórios” de normas, que apenas podem ser mediados pela delimitação violenta, o que significa dizer que existem, em lugar da lei, “a ilusão e o gozo mágico de tudo poder e tudo ser” (Diógenes, 1998, p. 231).
O estatuto das regras impostas nesses grupos é também destacado por Soares em seu livro Cabeça de porco, no qual afirma que não é que as regras não existam nas gangues; ao contrário, tudo é disciplinado: turnos de trabalho, hierarquia, divisão de tarefa, códigos de comportamentos; mas elas não são para conter a violência, em especial, entre as gangues rivais. Nesses casos, ele afirma, “na luta contra o ‘alemão’11, não existe limite: envolve tortura, humilhação, execuções degradantes e com sofrimento extremo” (Soares, 2005, p. 230).
Para Diógenes, a violência entre as gangues, embora provoque destruição, saques, roubos e até mesmo mortes, representa a expressão de setores que encontram nessas ações um modo de afirmar sua presença, mesmo que o preço seja a morte épica. Neste sentido, ela denomina a violência entre jovens de gangues “gratuita”, sem finalidade, em oposição à “violência instrumental” que se articula em torno de um objetivo; por exemplo, o produto de um roubo. A violência gratuita por si só é o acontecimento, sem meta definida. Seu objetivo não é transgredir a lei e, para Diógenes, se é que existe um objetivo central nos agrupamentos de gangues, ele pode ser identificado como a vontade de uma “conduta por excesso” (Diógenes, 1998, p. 165), cuja forma mais espetacular de expressão é a violência, estimulada pela própria sociedade.
Pode-se concluir que os estudos contemporâneos, tais como os realizados pelas duas antropólogas aqui citados, desvinculam a crença generalizada de que os atos de violência cometidos pelos adolescentes decorrem da situação de pobreza em que se encontram. Portanto, a pergunta sobre os crimes cometidos por jovens participantes de gangues se mantém aberta. Seguramente, outros fatores devem ser considerados quando indagamos o que visam esses atos. Destaca-se que essas análises esclarecem a relação entre os atos e a época atual, isto é, como eles portam algo que se relaciona com a pós-modernidade e com a situação social em que vivemos.
Se, por um lado, Diógenes aponta os atos como uma resposta ao abandono a que estão submetidos os jovens, por outro não deixa de destacar o paradoxo dessa solução, ao acrescentar que os jovens das gangues repetem com os de fora as mesmas atitudes a que são lançados. Ou, como ela esclarece: “a turma de jovens de outro bairro, que não seja o seu, é quase sempre denominada ‘pilantra’” (Diógenes, 1998, p. 171). Ao se referir a esse jogo com a expressão “a gangue é o outro”, Diógenes deixa entrever o que é apontado claramente por Zaluar: o efeito mortífero das lutas de gangues. Efeito esse que pode ser traduzido na expressão do sociólogo Cláudio Beato, frente à constatação de que as guerras travadas diuturnamente entre os jovens entrincheirados em suas gangues se dão entre os vizinhos, tal qual ele afirma “eles estão se matando!” (Beato, 2003).
Tais proposições nos levam a tomar a via aberta por esses estudiosos para esclarecer, a partir da orientação da psicanálise, a relação entre as gangues e o aumento da violência e dos homicídios entre os jovens. Qual o laço estabelecido entre os participantes das gangues? Qual a função do “cabeça” na gangue? E, especialmente, o que leva esses jovens a querer o desaparecimento do seu semelhante? Desta forma, pode-se retomar a pergunta freudiana, presente no texto “Mal estar da civilização”(1930): Por que apunhalar o próximo?
Miller, em sua conferência Intuições milanesas, destaca que os sociólogos observam que a globalização é acompanhada de uma individualização, que “abala o modo de viver junto” (Miller, 2011, p. 14). Segundo afirma Miller, no momento atual, os sujeitos encontram-se dispersos e ao mesmo tempo impelidos a um dever social e a uma exigência subjetiva de invenção, fatos esses que evidenciam o declínio das organizações coletivas; cuja expressão máxima pode ser traduzida no slogan “living my own life – viver minha própria vida”. A partir dessa perspectiva, ele lança-nos a proposta de tomar as leituras empreendidas pela fenomenologia social para reconstituir a “máquina original da civilização contemporânea” (Miller, 2011, p. 14). Ou seja, propõe a elaboração de um saber sobre qual a maquinaria combinatória estaria nos bastidores da ação dos sujeitos da civilização atual.
Conforme ele destaca, para empreendermos a leitura da clínica contemporânea, devemos passar de uma maquinaria original, cujo cerne é o Nome-do-Pai, que respondia a lógica do “todo”; para o modelo do “não todo”, na qual florescem as patologias centradas na relação com a mãe e no narcisismo. Tomaremos, portanto essa orientação como guia de leitura dos fenômenos apresentados pelas autoras Zaluar e Diógenes. O que para nós significa que, embora as autoras tenham efetivamente encontrado uma coisa válida, ambas convergem para pôr em evidência uma dificuldade externa no que se refere à violência entre jovens moradores de favelas e envolvidos em gangues. Supor que o crime é apenas manifestação de um mal absoluto ou um fato puramente social, e acreditar que não se tem dele nada a dizer, lança cada um desses jovens, mais ainda, na exclusão. Para nós, trata-se, sobretudo, de ressaltar nesse exterior a causalidade psíquica; ou seja, quais as mudanças ocorridas na contemporaneidade que acabaram por modificar o estatuto dos grupos e, ainda, qual a relação pode-se encontrar entre essas mudanças e o aumento da violência e dos crimes perpetrados entre os grupos, cujas guerras de gangues podem ser tomadas como um de seus expoentes máximos?
O grupo freudiano: o amor ao pai como articulador do grupo
No texto “A psicologia das massas e análise do eu” (1921) Freud faz um minucioso estudo da lógica dos grupos, no qual busca esclarecer a origem da força que liga os indivíduos entre si e a função do líder. Parte de sua teoria da libido para afirmar que os laços que ligam um grupo de indivíduos entre si e com o líder são os laços de amor, isto é, Eros é o poder que sustenta a mente grupal; ele é o “que mantém unido tudo o que existe no mundo” (Freud, 1921, p. 117).
A ideia de Freud é a de que a princípio os sujeitos estão separados; o predomínio da vida pulsional faz com que não haja laço entre eles. E a função do Outro da cultura, da civilização, é a de forçar esses laços. Conforme afirma mais tarde, “a cultura tem que motivar tudo que coloca limites às pulsões” (Freud, 1930, p. 165). Trata-se, portanto de um artifício para manter unido o que a princípio está separado pela força pulsional de cada um dos participes da civilização. Essas suas acepções podem ser confirmadas na situação, por exemplo, de pânico. Diferentemente do que se pode pensar, o pânico no grupo não é ocasionado pelo medo, mas surge quando esse artifício se desfaz. É quando esses vínculos são rompidos que as diferenças surgem e, consequentemente, segue-se um “cada um por si”; um retorno ao narcisismo.
Freud destaca que esse amor que possibilita o vinculo de coesão no grupo ocorre a partir de uma dupla operação: os participantes do grupo se identificam verticalmente ao líder, que é tomado como um ideal comum e, a partir desse amor ao líder, eles identificam-se, horizontalmente, entre si. Conforme nota Freud, o grupo é resultado de: “certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e, consequentemente, se identificaram uns com os outros” (Freud, 1921, p. 147).
Portanto, o líder será o único a ser amado como uma pessoa isolada, superior a todos os outros. A explicação freudiana sobre o líder encontra sua conexão com o pai da horda primeva, “o grupo é uma revivência da horda primeva” (Freud, 1921, p. 156). De acordo com sua mitologia da civilização, o pai primevo é aquele que, via operação de castração, introduz uma regulação na vida dos filhos, afastando-os do objeto incestuoso (a mãe), o que os conduz à via do desejo. Por ser o único que pode ter acesso ao objeto desejado por todos, ele será o suporte dos ideais. Portanto, o pai encarna o lugar do “ao menos um” que não é submetido à castração, promovendo a renúncia pulsional e, consequentemente, localizando o gozo dos filhos. Dessa forma, Freud articula a função do pai com aquela que possibilita o laço do sujeito ao Outro; o pai simbólico transmite o nome e introduz os filhos numa linhagem. O que significa dizer que identificação e laço são dois lados da mesma moeda.
Anos mais tarde, Lacan chamará esse denominador comum ― para a multidão de egos que se tornam iguais ― de S1: trata-se de uma identificação com base em um traço simbólico. Dessa leitura depreende-se a importância do líder como aquele que possibilita ao grupo a sensação de unidade. Ele, como representante do ideal, regula a relação e os corpos. Nessa perspectiva, o líder pode ser substituído por um desejo, uma tendência comum, uma ideia; enfim, pode ser qualquer objeto que possa “evocar o mesmo tipo de laços emocionais” (Freud, 1921, p. 127).
Porém, se, por um lado, o amor ao líder é que permite a coesão entre os semelhantes, operando como um fator socializador e reduzindo a violência dentro do grupo, por outro, ele exacerba essa violência contra os que estão fora do grupo. Freud exemplifica com a religião, que prega o amor a todos, contudo, é dura e inclemente com aqueles que a ela não pertencem. Em resumo, o grupo se funda a partir de um movimento recíproco, o amor entre si e o ódio ao outro, que Freud nomeará “narcisismo das pequenas diferenças” (Freud, 1921, p. 129). Esse mecanismo de coesão pode encontrar ecos em várias atitudes adotadas pelas gangues: na nomeação dos diferentes como “alemães”, na linguagem codificada dos “enturmados”, na construção de fronteiras entre os territórios e até mesmo na forma de se vestirem.
Para Freud, o grupo tem, portanto como característica fundamental a presença de um líder consistente, um operador externo a serviço de Eros que, a partir de uma operação de restrição, impõe um ideal e cria o meio homogêneo entre os irmãos. O amor dos filhos dirigido ao ideal paterno é o que possibilita essa ilusão de harmonia, que encontra seu fortalecimento na contraposição ao meio externo. Trata-se, portanto de uma lógica binária, própria dos bandos, na qual o ideal cria uma fronteira entre o externo e interno demarcando claramente a separação entre o amigo e o inimigo. Miller (2011) demarca que essa lógica corresponde a época de uma sociedade disciplinar, na qual há uma clara delimitação entre os dispositivos e aparelhos de repressão e a figura dos submetidos.
O aparelho conceitual freudiano é marcado por esta lógica, cujo pivô é o Nome-do-Pai, que distribui as posições do sujeito em relação a ele. É em contraposição a estes limites simbólicos, impostos pelo Outro, que o homem se posiciona. O que nos esclarece o papel desempenhado pela figura do “cruzeta”, tal qual nomeado por Diógenes. Trata-se daquele que testa as fronteiras do dentro e do fora e, dessa forma, denuncia o ideal de homogeneidade do grupo. Lacan (1950) nomeia de “bode expiatório”, essa figura que introduz um ponto de exterioridade e que vem dar, ainda mais, consistência ao grupo.
A leitura do lugar dado ao pai também possibilitou à psicanálise circunscrever o crime como uma tomada de posição frente a esse “Outro que existe”. Ou seja, as formas de transgressão, que sempre existiram, relacionam-se aos interditos impostos pelo ideal paterno. Entretanto, essa lógica é colocada em questão pelas leituras sociológicas, que assinalam que para alguns jovens o ato de matar não é tomado como crime, levando-as a nomeá-los de “conduta por excesso”. Trata-se, portanto de uma passagem do crime como um ato de transgressão, dirigido ao campo do Outro, para os crimes atuais nos quais o outro já não é visto como amigo ou inimigo, mas como uma coisa a ser descartada, uma “banalização da morte”, tal qual nomeado por Zaluar.
Miller (2011) demarca a passagem desse momento em que a sociedade organizava-se a partir de um articulador externo, o mito do pai, para o momento atual, a época da globalização, que já não vive sob o reinado do pai. Fato esse bastante destacado pelas sociólogas. Saímos de um mundo estruturado por uma lógica hierárquica, na qual as tradições e os ideais, encarnados na figura do pai, delimitavam as satisfações e as relações em proveito de benefícios futuros, para um mundo no qual a figura do pai deixa de ocupar a função de referência. O que significa dizer que atualmente “não existe um” que possa impor limites, que possa dizer “não” aos iguais, o que impossibilita a regulação coletiva do gozo. Trata-se de uma era em que “o Outro não existe” (Miller, 2011, p. 14).
Pluralização do Nome-do-Pai e crescimento do racismo
Miller (2011) utiliza-se da descrição do filósofo italiano Antônio Negri sobre as mudanças ocorridas no centro do poder para explicitar essa passagem de um tempo do “Outro que existe” para a era do “Outro que não existe”. Negri denomina o modelo social e político do mundo atual de “Império”, período no qual não existe nenhuma potência que possa ser tomada como um centro territorial de poder. Portanto, ela se contrapõe ao “Imperialismo”, no qual o centro do poder encontrava-se nas mãos das avançadas nações europeias. Segundo Negri, o “Império” caracteriza-se “fundamentalmente por uma ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites”, “nenhuma fronteira territorial confina seu reinado” (Negri e Hardt, 2006, p. 14). A psicanálise nomeia de “não todo” essa estrutura que não comporta o limite. Tal qual esclarece Miller, o “não todo” é “uma série sem limite e sem totalização” (2011, p. 11).
Dessa forma, torna-se difícil encontrarmos algo (uma pessoa, uma ideia) que possa tornar-se referência para os grupos. Segundo Miller: “esse processo de destotalização põe à prova todas as estruturas totalitárias” (2011, p. 11). Consequentemente, o lugar doravante ocupado pelo pai como o agente da castração, o representante simbólico legitimo da autoridade, pluraliza-se. Assim como os ideais ancorados na tradição (o trabalho, a escola) dão lugar à infinidade de objetos ofertados pelo mercado, tal qual demonstram as sociólogas supracitadas.
Diferentemente das instituições clássicas citadas por Freud, nas quais o pai sustentava o lugar da diferença, nas gangues, o lugar do líder pode ser ocupado por qualquer um; ao contrário, “o cabeça” é um entre os iguais, apenas mantido no poder pela força. Consequentemente, ele não introduz no grupo, por si só, um grau de diferença. Nessa vertente, as gangues demonstram que quando esse “Um”, que funda a série, pluraliza-se, quando já não sabemos mais o que ou quem funciona como “Um”, ocorre uma dissolução dos lugares, das categorias. Coelho dos Santos destaca uma homofonia esclarecedora entre as expressões francesas Nom-du-Père (Nome-do-Pai) e Nom-du-Pair (Nome-do-Par), para demonstrar o efeito dessa pluralização; o Nome-do-Pai passa a funcionar como um nome entre outros, ou seja, “papai é um entre nós” (Coelho dos Santos, 2001, p. 47).
Tais efeitos de homogeneização podem ser sentidos também na fala dos jovens sobre a polícia. A polícia, representante do Estado nas favelas e, portanto, responsável por zelar pela ordem, cada vez mais é apontada pelos moradores das favelas como partícipe da violência, quando não a causadora. Ao entrar nas favelas, a polícia, segundo os jovens, não se distingue do bandido12. Assim, a maior violência acionada pela polícia, sob a ótica dos componentes das gangues ouvidos por Diógenes, “é não efetuar uma diferença, é assemelhar-se a toda uma dinâmica da violência ensejada e produzida pelas próprias gangues” (Diógenes, 1998, p. 206).
Os efeitos de homogeneização a que se encontram submetidos esses jovens, a um “todos iguais”, são claramente enumerados pelas autoras citadas. Nesse sentido, o nome usado por Diógenes para referir-se às gangues (1998, p. 28) nos parece o que melhor caracteriza essa lógica do “não todo”: um “enxame”. Ou seja, um amontoado de "uns sozinhos" que se agrupa sem um ponto de exterioridade que os unifique, fenômeno que Freud denomina “miséria psicológica”. É “cada um por si”. Eles compartilham apenas o necessário, que é reforçado pelo ataque exterior. Um tipo de laço frágil que a qualquer momento pode se romper, fazendo surgir a tendência pulsional mortífera que os leva a matar ou morrer.
Mas o que também merece nossa atenção nas várias argumentações comuns às duas autoras é a incidência dessa homogeneização sobre o estatuto da lei. Entre chefes e teleguiados, as regras perdem seu estatuto de lei, já que não têm a função de situar um limite na ação individual da relação com o Outro. O que se tem é a obediência cega, que não passa pelo consentimento e pelo reconhecimento da diferença. A obediência é produzida pela força. Ou seja, as ações desses jovens são procedimentos que visam apagar quaisquer diferenças.
Tal constatação nos leva a considerar que a pluralização do Outro não vem necessariamente acompanhada do caos, mas de uma ordem insensata do supereu, que pressiona os jovens a uma obediência até a morte, fato que abre caminho para a violência. Por essa vertente, o jovem, que inicialmente julga-se senhor de seu gozo, termina quase sempre caindo no lugar de vítima. Pode-se considerar, então, a relação existente entre a demissão do pai de sua função de transmissão de um desejo e o surgimento de grupos que funcionam sob a égide do que Lacan denomina, em seu Seminário Le non-dupes errent, “ordem de ferro”. Nele, Lacan destaca que, no mundo em que vivemos, a função do pai — Nome-do-Pai — sofreu um forte abalo. No lugar de um pai que nomeia as coisas, que instala uma rotina, ou seja, que transmite ao filho o sentido da vida e uma forma de convivência pacífica, o que temos é um desejo anônimo, que se apresenta sob a forma de ordens totalitárias e impõe uma ditadura de mais-de-gozar, que arrasta cada vez mais os sujeitos ao que ele nomeia de uma “degeneração catastrófica” (Lacan, 1974)13.
Trata-se da passagem de uma nomeação que se apoiava na dimensão do amor ao pai para o predomínio do social. Onde se espera encontrar o Nome-do-Pai, que articula o desejo à lei, encontramos o “anonimato do mundo” (Laia, 2007, p. 32), que tende a modificar o modo da violência apresentar-se ao manter disjuntos desejo e lei. Nesse sentido, a transmissão do Nome próprio, que a partir das diferenças impõe um limite ao gozo, dá lugar a um “nome comum”14, um nome que não identifica, não distingue e que, por conseguinte, requer que os sujeitos inventem novas formas de agrupamento, as chamadas “tribos monossintomáticas” (Soria, 2013) ou “micrototalidades” (Miller, 2001, p. 15). Trata-se de nichos que oferecem certo grau de estabilidade, de sistematicidade, de codificação, que permitem restituir certo padrão de ordenamento, mas à custa de uma obediência cega às regras impostas. Tal qual encontramos nas gangues, esses nichos mantém sua pseudocoesão a partir violência imposta à homogenização do modo de gozo de seus componentes.
Nesse universo, a violência prolifera e não é mais possivel dizer que ela visa a produção de cidadania. A grande maioria dessas ações não visa restabelecer a paz entre jovens ou fundar uma nova comunidade, mas sim a destruição total do diferente, tal qual destaca Soares. Nesse sentido, a alteridade do Outro, sempre radical, precisa ser eliminada; uma singular aplicação do “eu ou ele” — a máxima universal da pós-modernidade. A esses atos nomeamos racismo. O racismo se apresenta como intolerância ao gozo do Outro, à medida que é essencialmente aquele que subtrai o "meu gozo". Odeia-se a forma como o Outro goza. Mas esse atentado realizado contra o gozo supostamente nocivo do Outro, o que ele verdadeiramente visa é o mais íntimo do sujeito, o “êxtimo” (Miller, 2010, p. 31).
O problema destacado por Miller, em seu Seminário Extimidad (2010), no que se refere à extimidade é que o Outro é o Outro dentro de mim, portanto, o ódio é ao próprio gozo. Dessa forma, quando a violência surge em sua potência, é preciso eliminar toda e qualquer diferença, não apenas matar, mas acabar com o outro. Donde o crescente aumento de crimes de extermínio entre jovens de gangues. Sob a alegação de disputa de espaço, de drogas e de meninas, eles encontram no “apagar o outro” a única solução. Dessa forma, aos jovens moradores das favelas, habitantes do “lado de lá” da cidade, é destinado o papel de objetos depreciados. A triste notícia é que exterminar o outro não sossega essa angústia, por isso sempre mais um, mais um e outra vez mais um.
De fato, deve-se considerar, como apontam as sociólogas Zaluar e Diógenes, a universalização do discurso da ciência e as técnicas do capitalismo como um caldo fértil para o favorecimento dessa violência, pois impõem um modo único de gozar, assim como a crença humanitária no “todos iguais” que não faz mais que exacerbar a segregação. Por isso é que os adeptos desses discursos desorientam-se ao perceber que as regras não erradicam o que se apresenta como não semelhante.
Tome-se como exemplo a impotência gerada nos técnicos de políticas públicas ao constatarem que, após a implantação de uma política, os níveis de homicídios não se reduziram à média esperada. O que gera maior desconforto não é o grande número de mortes, nem tampouco a forma como elas ocorrem, mas a falta de padrão. Importa que as mortes não excedam os limites estabelecidos pela técnica. O inaceitável são os desvios. Se, por um lado, tal pensamento demonstra a impossibilidade de erradicar a morte, por outro, ele sustenta uma crença de que é possível controlá-la.
Nesse sentido, falar de racismo, aqui tomado como manifestação da violência apenas a partir das causalidades econômicas e geopolíticas impede-nos de considerar o que do universal encontra seus limites no que não é universal, não entra na média, que chamamos de “mais-de-gozar”. Tampouco é de grande valia ― mesmo que seja considerado ― supor que a violência é apenas fruto de uma busca pelo reconhecimento; esse particular irredutível do gozo de cada um não procura e nem encontra reconhecimento.
Miller, no seminário supracitado, sublinha que dada a dificuldade de situar e mesmo de aceitar "êxtimo", esse estranho familiar freudiano, uma das estratégias encontrada pelo homem é a segregação, introduzir uma distância. Ou seja, posso reconhecer o outro desde que esteja longe de mim, ideia bastante presente nos dias atuais. Entretanto, o que Lacan nos ensina a partir da figura do "êxtimo" é que o sujeito não está governado desde seu exterior, mas do seu interior mesmo, o que joga por terra a tentativa de erradicar a violência apenas pela lógica do exterior/interior. Nessa vertente, entra-se no jogo da força, quando muito de polícia contra “ladrão”, o que sabemos não ser bem o caso.
Mas como suportar a diferença sem ter que apunhalar o próximo? Tal pergunta nos permite destacar que as mudanças ocorridas no estado atual da civilização contribuíram em larga escala para o aumento dos crimes. Todavia, o crime, sempre presente em nossa sociedade, afastou-se cada vez mais de sua vertente utilitária, tal qual Lacan já anunciara em seu relatório “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia” (1950), para apresentar-se como uma ação “gratuita”, ou nas palavras de Diógenes , em referência a Hanna Arendt, “uma banalização do mal”.
Nesse universo, no qual a aparente igualdade é tomada como regra e as diferenças são como peças de museu, que os jovens, em especial, acabam por encontrar nas gangues uma forma de tudo poder. Para isso, constituem suas identidades sobre a discriminação sistemática dos que não fazem parte da mesma turma. Grupos em que cada um é o espelho do outro e o de fora é o “alemão” ― o que sustenta essa diferença. Trata-se de uma sistemática segregação que se inicia com um pequeno traço diferencial, seguido de uma nomeação grupal, e depois a eliminação radical do outro. O racismo responde a essa lógica, a uma sistemática erradicação do modo de gozo do outro, a isso que faz obstáculo à ordem rígida do todos iguais.
Conforme Lacan demarcou em 1950, o advento da ciência faz um corte no mundo das tradições: o que antes era regido por uma crença coletiva, passa a ser uma escolha individual, deixando o homem sem uma bússola para guiar-se em direção a seu desejo. Os ideais não funcionam da mesma forma e explodem num mundo do "cada um por si", fato que contribui para o aumento da violência. Em contrapartida a essa pluralização de crenças, de ideais, ou seja, do Nome-do-Pai, surge do lado do sujeito um esforço para salvar o pai. Assim, a incredulidade atual une-se ao fundamentalismo mais extremo, muitas vezes na forma desses grupos denominados de gangues em que a violência pode alastrar-se a partir de imperativos do supereu.
Todavia, como pode o analista introduzir um equívoco na rigidez dessas nomeações, propiciando, por sua vez, uma trama simbólica mais ampla para que o sujeito possa realizar um novo enlaçamento prescindindo daquele da “lei de ferro”? Lacan, em sua conferência “Alocução sobre as psicoses da criança”, convida os analistas a responderem por sua função no campo social. Ao situar os problemas enfrentados pela psicanálise, ele destaca a segregação como o fator fundamental a considerar, por estar conectado à relação que existe entre o “avanço da ciência e o questionamento de todas as estruturas sociais que este tem aparelhado” (Lacan, 2003, p. 360). A resposta de Lacan ― não apenas ao problema da segregação, mas também ao da exclusão ― é a ética da psicanálise. Ética esta que ele define pelos modos de “frear o gozo” como aquele que nos mantém fechados no desprazer e no mal-estar.
Nesse sentido, quando o analista se dirige ao Outro social, o que ele deve buscar não é a massa, não é o coletivo, mas uma brecha nessa multidão por onde o sujeito possa retomar a palavra, a possibilidade de recuperar a enunciação singular, seu estilo próprio que o coletivo às vezes sufoca. O desejo do analista visa o contrário dessa identificação unificadora, cujas gangues podem ser seus expoentes máximos, o contrário do que dá consistência às massas.
Lacan destaca que a consequência de propor – para todos – o mesmo gozo é a “criança generalizada”. A criança generalizada é o produto das variantes modernas da segregação, já que exclui o fato de que não há possibilidade de se ter tudo, dizer tudo, gozar de tudo, ou seja, não há possibilidade de segregar o indivisível, a morte. Opor-se à criança generalizada, como desmarcada por Lacan, significa oferecer novos dispositivos para alojar o gozo particular de cada um, de tal forma que esses jovens possam responsabilizar-se pela sua singularidade frente ao Outro, frente à sua comunidade. Contra a função idealizante e mortificante das catalogações da ordem pública, das ordens rígidas, a psicanálise pode dar relevo ao aspecto desarmônico vivo e real do sintoma a partir da construção de espaços que alojem o novo que cada um dos jovens pode trazer para o mundo.
Tais orientações possibilitam a construção de políticas nas quais os jovens possam encontrar uma saída frente à inconsistência do Outro sem ceder ao imperativo mortífero do supereu.
Notas
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- Artigo escrito a partir da tese: Tribos urbanas: os efeitos do abalo do Nome-do-pai no contexto da violência juvenil, junto ao Departamento de psicologia da UFMG, sob orientação do psicanalista Prof. Dr. Jésus Santiago, em 29\06\2013. Banca examinadora formada pelos psicanalistas e professores Dra. Tania Coelho dos Santos (UFRJ), Dr. Sergio Laia (FUMEC), Dra. Ana Lydia Santiago (UFMG) e Dra. Andrea Guerra (UFMG).
- Fala de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação na cidade de Belo Horizonte, durante entrevista de orientação psicanalítica, realizada por Ana Lydia Santiago, 2010.
- Fala de vários adolescentes participantes do Programa Fica Vivo (2003-2007).
- Cano e Soares, citados por Cerqueira e Lobão, dividem as abordagens sobre a causalidade do crime em cinco grupos: como uma patologia individual; como uma atividade racional de maximização do lucro; como resposta a um sistema social “perverso” ou “deficiente”; como consequência da desorganização social e como oportunidade. Para leitura mais detalhada, ver Imura & Silveira (2010).
- Cf. A máquina e a revolta (2000) e Condomínio do diabo (1994).
- Sérgio Adorno retoma essa proposta de Zaluar em seu livro A delinquência juvenil em São Paulo: mitos, imagens e fatos (Adorno, 2002).
- Termo usado por jovens, em especial nas favelas, para designar o inimigo.
- A tese de que o bandido é um herói justiceiro, como Robin Hood, é também contestada por Michel Misse em seu artigo “Cinco teses equivocadas sobre criminalidade urbana no Brasil”. (1995).
- Enxame: nome usado pelos jovens, cujo significado é a reunião dos participantes da galera ou gangue, geralmente para uma ação (Diógenes, 1998).
- A tese da criminalidade entre os jovens como resposta à invisibilidade é também o argumento trabalhado por Luís Eduardo Soares, especialmente nos livros Cabeça de porco (2005) e Meu casaco de general (2000).
- Zaluar (2000); Soares (2011).
- Nas palavras de um adolescente participante de oficina do Programa Fica Vivo/Cabana do Pai Tomás (BH): “quando a polícia entra na favela, a gente não sabe quem é polícia e quem é bandido”.
- No original: “Es bien extraño que aquí lo social tome un predominio de nudo, y que literalmente produzca la trama de tantas existencias; él detenta ese poder del ‘nombrar para’ al punto de que después de todo, se restituye con ello un orden, un orden que es de hierro; ¿qué designa esa huella como retorno del Nombre del Padre en lo Real, en tanto que precisamente el Nombre del Padre está verworfen, forcluido, rechazado?; y si a ese título designa esa forclusión de la que dije que es el principio de la locura misma, ¿acaso esse "nombrar para" no es el signo de una degeneración catastrófica?” (Lacan, Seminário Los incautos no yerran, aula 18 de março de 1974. Inédito).
- Destaca-se que as gangues se constituem e são reconhecidas a partir de uma nomeação que os próprios jovens retiram do ambiente em que vivem e revelam uma hostilidade a estes locais, tais como Pracinha dos cachorros (Cabana Pai Tomas/BH), Buraco quente, Cabeça de porco (Pedreira Padre Lopes/BH).
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Resumos
Gangs: the effects of destabilization of the Name of the Father in the context of youth violence |
This article intends to perform an analysis of the relationship between groups and new forms of violence, especially the ones that present themselves in the form of youth gangs. We will use the interpretation given by anthropologists and sociologists to the phenomenon known as "gang warfare " in order to update the Freudian text " Group psychology and the analysis of the Ego ." In this sense, we intend to demonstrate that the shaking of the Name of the Father has produced new forms of groups that are no longer organized according to a law that demands renunciations and ideals, but by "iron commands" that pukk young people into a pursuit of immediate pleasure that can eventually lead them towards death.
Keywords: psychoanalysis, youth gangs, violence, identification, whole and not whole.
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Les gangs: les effets de la déstabilisation du nom du père dans le contexte de la violence des jeunes |
Ce travail se propose de faire une lecture de la relation entre les groupes et les nouvelles formes de violence, en particulier celle qui se presente sous la forme de gang de jeunes. Nous utiliserons la lecture réalisée par les anthropologues et les sociologues sur ce phénomène connu comme de «guerre des gangs » pour mettre à jour le texte freudien «Psychologie des foules et analyse du moi”. En ce sens , nous avons l'intention de démontrer que la secousse du nom du père resulte en de nouvelles formes de groupes qui ne sont plus structurés par une loi exigeant des dérogations et des idéaux , mais a partir de “la loi d’airan” qui entraine les jeunes gens dans une poursuite du plaisir immédiat qui pourra éventuellement les conduire a la mort.
Mots-clés:psychanalyse, gangs de jeunes, violence, identification, tout et non tout. |
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Citacão/Citation: SANTIAGO, J.; FARIA, L.F. Gangues: os efeitos do abalo do Nome-do-Pai no contexto da violência juvenil, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 16, mai. a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus. doi: 10.17852/1809-709x.2019v8n16p15-36.
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 05/02/2012 / 02/05/2012.
Aceito/Accepted: 18/04/2012 / 04/18/2012.
Copyright: © 2013 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited. |