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O movimento do Fort-da na leitura de Jacques Lacan1

Fabíola Menezes de Araújo
Graduação em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil)
Doutora em Teoria Psicanalítica / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Mestrado em Filosofia / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: confabulando@yahoo.com.br

 


Resumo

A autora reconstrói o lugar e os usos que Lacan confere, no “Discurso de Roma” e ao longo da década de 1950, à concepção freudiana de Fort-da. Para encaminhar de maneira adequada sua reflexão, retorna ao contexto de “Além do Princípio do Prazer” no qual Freud (1920) primeiramente propõe esse movimento como capaz de fazer frente aos ditames da pulsão de morte. Para identificar o que será decisivo na elaboração lacaniana a respeito do funcionamento linguageiro em questão, a autora acompanha Lacan na cunhagem do conceito de linguagem assim como em sua proposta de diferenciar o “discurso do outro” do movimento do Fort-da. Note-se: trata-se do discurso do outro, com “o” minúsculo e não do “discurso do Outro”. O primeiro se apresenta como um discurso que leva ao adoecimento, enquanto o segundo é sinônimo do muro da linguagem, referência necessária para qualquer um dos modos como o inconsciente se estrutura. Para concluir, a autora retoma a necessidade de, em uma análise, dar-se preferência ao movimento do Fort-da, em detrimento do “discurso do outro”.

Palavras-chave: psicanálise, Fort-da, discurso do outro, interpretação, anamnese.

 

 

O Fort-da em Freud e em Lacan, algumas considerações

A expressão Fort-da é criada em “Além do princípio do prazer”, primeiraobra em que Freud (1920) apresenta a problemática da pulsão de morte. A pulsão de morte aparece como uma tendência do organismo a “retornar ao inorgânico”, ao repetir “o comportamento de buscar a morte ao seu próprio modo” (1920, p. 162 e 163).

Ao introduzir a discussão acerca do mecanismo em jogo na pulsão de morte, Freud comenta que o seu próprio neto, então com dezoito meses, supera um momento de dificuldade para a maioria dos infantes – o momento da ausência, ainda que momentânea, da presença materna – brincando com um carretel. À medida que a criança joga o carretel “para lá” fala “láaaa” (“o-o-o-o”), quando o carretel retorna, o neto fala “um alegre aí” (Da) (Id., p. 141). O movimento de “aparecimento e desaparecimento” da coisa é tomado, pelo criador da psicanálise, como uma maneira de superar a ausência materna.

Para Lacan, a criança do Fort-da ilustra o movimento de transcendência necessário à superação da inércia significante quando dá vazão à possibilidade de destruir “o objeto que ela faz aparecer e desaparecer” (Lacan, [1953] 1992, p. 183). A superação do mecanismo colocado em jogo pela pulsão de morte se daria, segundo esse autor, à medida que “o desejo se humaniza”: ao invés de submissa à privação do objeto, a criança passaria a assumir essa privação como constituinte de seu vir-a-ser. Sob essa ótica, é a partir da condição de desamparo que surge a possibilidade de superação dessa condição.

Em Arriscar o impossível, Glyn Dalytraz o seguinte comentário: “através da brincadeira, a criança aprende a simbolizar a ausência traumática da mãe, de modo que essa ausência já não seja uma simples ausência, mas se transforme num momento de uma sucessão contínua de presenças-ausências” (Zizek e Glyn Daly, 2006, p. 57). Para Lacan, o jogo do Fort-da é ele mesmo uma metonímia do modo como nós nos realizamos na linguagem. Para circunscrever essa metonímia também como chave do modo como os sintomas se realizam, Lacan a circunscreve como um sistema:

“O que importa (na circunscrição da linguagem como alternância de presenças e ausências) é o sistema de significante na medida em que organiza, como a espinha dorsal de tudo isso (dos sintomas apresentados em Mito individual do neurótico, na gravidez de homens, mesmo de garotos heterossexuais, e na organização de rituais) a determinação das encostas, das direções cardeais, as reversões e conversões” (Lacan, 1956, p. 3).

Tem lugar na reflexão lacaniana a consideração de como os sintomas se constituem na linguagem. Para tanto, a noção de discurso do outro, com “o” minúsculo, será fundamental.


A linguagem como um sistema em que se alternam o discurso do outro2 e o movimento do Fort-da


A tese de que a linguagem é perfeita como um sistema permite a Lacan situar um inconsciente estruturado como linguagem e com base em uma alternância de ritmos em que as ordenações simbólicas implicam em “determinação das encostas”, a partir das quais a manifestação do ser se retrai, mas também se dá a ver. A linguagem é ainda apontada não apenas como um “sistema”, mas como um “sistema significante”. É necessário precisar melhor a noção de significante. Há fundamentalmente duas maneiras pelas quais o significante pode advir na teoria lacaniana dos anos de 1950: o significante pode advir no movimento do Fort-da ou circunscrito pelo “discurso do outro”.

Sete anos após ter proferido o “Discurso de Roma”, Lacan (1960) traz sua “definição do significante”:

“Nossa definição do significante (não há outra) é: um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Esse significante será, pois, o significante para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: é dizer que por falta desse significante, todos os outros não representariam nada. Posto que nada não é representável senão para” (Lacan, 1960, p. 302).

Está em jogo ressaltar como o advento dos significantes se dá sempre a partir de uma ordenação de caráter circular: o sujeito vem a ser, a cada vez, representado por um significante que só surge mediante uma alternância: só surge se ao menos dois significantes se contrapuserem.

A primeira contraposição de significantes é fundamental, pois é a partir dela que o significante do retorno de significantes se instala, dando oportunidade à criação de uma “cadeia significante”: “anéis formando um colar que se enlaça no anel de outro colar feito de anéis” (Lacan, 1957, p. 232). Os “anéis” enlaçados não são senão “significantes” que, ao se combinarem com outro colar, podem chegar a permitir a representação, simbólica, da cadeia significante para os representados por essa cadeia.

É preciso considerar com vagar o termo “representação”. Por um lado, uma representação se dá sempre que um significante apresenta-se contraposto a outro. O termo “representação” por vezes excede esta primeira configuração: na impossibilidade de uma cadeia significante se contentar com a falta que um significante possa causar, essa cadeia passa a encenar a presença do significante “faltante”. O que era antes configurado por meio da representação, passa a ser pretexto para o advento de uma encenação, ou de uma rememoração. Se Lacan pontua a criança do Fort-da como promovedora de uma “ação que destrói o objeto que ela faz aparecer e desaparecer na provocação antecipante de sua ausência e de sua presença” (Lacan, 1957, p. 183) é na medida em que, a partir da destruição do carretel, a criança serve à ilustração do modo como a reconfiguração das cadeias significantes se dá: no caso do Fort-da o significante faltoso passa a ser encenado por outro significante. A criança do Fort-da passa a representar a si mesma jogando o carretel para outro significante que não é senão si mesma, só que na figura de um “outro eu”. Tem oportunidade na encenação o advento desse “outro eu”, capaz de representar “si mesmo” para “um” si mesmo. A falta do significante promove, na medida da encenação, a superação da ordenação antes circunscrita. É em razão de a circularidade antes circunscrita passar a ser retomada de outra forma que “representar” pode dizer também “encenar”: na encenação a criança não deixa de representar, mas passa a representar “para si mesma”, na figura “de um outro”’, a destruição do significante ausente. Através da brincadeira, além disso, a criança considera o seu próprio ser como um significante a ser jogado. No caso do Fort-da, pois, o significante faltoso se mantém, só que transformado na medida da encenação. Desse modo, a cadeia antes circunscrita passa a ser inscrita de outro modo: na encenação torna-se possível que o significante ausente e que retorna na brincadeira realize-se de outro modo onde a realização libidinal passe a ser deslocada da situação que tinha lugar antes da brincadeira para o significante que passa a ser encenado por meio do movimento do Fort-da.

Sobre a questão da libido Lacan comenta que “só podemos falar adequadamente da libido de uma maneira mítica – é a genetrix, hominum divumque voluptas” (Lacan, 1978, p. 265) [em português: mãe, divino prazer dos homens]. O psicanalista francês ainda acrescenta ser “disto que se trata em Freud” e que “o que está aqui (na psicanálise) de volta era outrora expresso no nível dos deuses”, dando a entender que se trata no âmbito da libido de uma lida com experiências que fogem ao comum dos mortais. Ao mesmo tempo, Lacan traz à consideração que essas experiências seriam forjadas pela combinação e recombinação de “signos algébricos”: trata-se de acentuar o papel da ordenação simbólica na circunscrição destas experiências denominadas “outrora no nível dos deuses”– “é o que tento fazer quando lhes falo de máquinas” (Id., Ibid.). A metáfora das “máquinas” ilustra o sistema significante como uma alternância de significantes que, se representando mutuamente, permitem a circunscrição de aberturas e fechamentos.

Em última instância, o significante será sempre uma modalidade de representação, seja em virtude de uma encenação seja em virtude de uma rememoração, para outro significante a partir do qual passa a ser perfeita uma cadeia significante e onde tem lugar um circuito. A partir desse circuito, pode ter lugar uma ordenação não conforme àquelas ordenações previamente circunscritas.


a) O Fort-da na clínica psicanalítica

Cabe ao tratamento psicanalítico permitir o movimento do Fort-da de modo que se realize, a um só tempo, uma confrontação com aquilo que insiste em se desviar da possibilidade de ser reconhecido, e uma superação dos circuitos responsáveis por causar o adoecimento. É a elaboração linguageira que tem oportunidade em uma análise que é capaz de fundamentar essa superação. Nessa fala, o silenciar do analista tem grande relevância. Já em 1948, Lacan apresenta o analista silencioso como “um ideal de impassibilidade”. Sobre um “fundo de inércia”, a “intervenção interpretante” surge como um “alívio de oráculo” (Lacan, 1948, p. 106-107).

A partir da concepção da “palavra plena”, Lacan passa a trazer o silêncio como um momento em que se abre um espaço onde o reconhecimento do real traumático pode ter lugar, quando então o analista assume o lugar de Outro (Lacan, 1948, p. 431). A insistência no silenciar, por sua vez, pode permitir a emergência de “um traço que mais particularmente se enderece ao analista”. “É o momento em que a palavra do sujeito se dirige à presença do auditor” (Id., p. 430) e o analista ocupa o lugar de Outro, com ‘o’ minúsculo. A palavra emergente pode, então, ser “pontuada”. No “Discurso de Roma” Lacan afirma: “é a abstenção do analista, sua recusa em responder, um elemento da realidade da análise. Mais exatamente, é nessa negatividade enquanto pura, isto é, desligada de todo motivo particular, que reside a junção entre o simbólico e o real.” (Lacan, 1953, p. 174). É para a junção entre o simbólico e o real que o silenciar do analista, pois, aponta. Esse silenciar, ao permitir a realização do movimento do Fort-da, permite igualmente que a junção mencionada se realize (Lacan, 1954-55/1978, op. cit. p. 214/215).

É preciso ainda mais uma vez questionar: como exatamente se realiza a junção entre simbólico e real no âmbito do tratamento analítico? Para Lacan essa junção se realiza a partir da morte. A morte é, por um lado, capaz de evidenciar como o desejo já atua e, por outro lado, providenciar outro modo de atuação para o desejo. É possível situar também que essa morte se realiza no âmbito do movimento do Fort-da, a partir do qual é possível “mudar o curso” da história. É por “tocar por pouco que seja na relação do homem com o significante” que se torna possível mudar “o curso de sua história” e modificar “as amarras de seu ser” (Lacan, 1957, p. 258). Nem o real nem o simbólico estão simplesmente dados: por se darem como efeito da linguagem, ambos são criados, seja a medida do Fort-da, que cabe à análise garantir, seja a medida do discurso do Outro.


b) O discurso do Outro

Sobre o discurso do Outro Lacan propõe a seguinte leitura:

“O discurso do outro não é o discurso do outro abstrato, do outro da díade, do meu correspondente, nem mera e simplesmente o do meu escravo, é o discurso do circuito no qual estou integrado. Sou um dos seus elos. É o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pai cometeu faltas as quais estou absolutamente condenado a reproduzir – é o que se denomina superego. Estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, não só porque eu sou o filho dele, mas porque não se para a cadeia do discurso, e porque estou encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem” (Lacan, 1954-55/1978, p. 112)

Por meio do discurso do outro é efetuado “um pequeno circuito” que, ao se constituir, passa a viger de maneira autônoma. Dois aspectos serão evidenciados nessa abordagem. O primeiro é que não é possível retroceder na cadeia introduzida pelo “outro”. Não é possível parar essa cadeia, pois essa cadeia discursiva é introduzida de início como uma destinação. Uma vez tendo sido lançados alguns elos-chaves mediante os quais passam a ser circunscritas determinadas performances é o discurso mesmo que se apodera dos seres que nesse discurso “se acham presos” conferindo aos “elos” que eu mesmo “sou” as características de meu ser. À proporção que se é apropriado por esse discurso, se é tomado por uma cegueira: ao se ser apropriado pelo discurso do outro não se torna possível vê-lo se constituindo; a designação de cada elo se dá como uma submissão que imediatamente cega quem é por ela designado para aquilo que vem sendo constituído previamente. O segundo aspecto a ser evidenciado a partir da afirmação de que “não se para a cadeia do discurso” é acerca da necessidade de “que eu retome” esse discurso sempre que eu precise me situar.


c) O Fort-da versus discurso do outro

Em contraposição ao discurso do outro, a fala em situação analítica visa garantir a livre articulação do Fort-da. Nessa fala, o retorno do recalcado é tido como capaz de levar a uma experiência de desvelamento do Ser por nele ter oportunidade o deslocamento da libido antes fixada nos significantes do discurso do outro em proveito de uma assunção do real traumático que nesse discurso permanece obliterado. No instante em que se revela na experiência analítica a possibilidade de substituir-se o discurso do outro pela palavra em situação analítica, dá-se instantaneamente um desdobramento do discurso trazido. O ser que narra o discurso passa a ser protagonista de realizações imaginárias, nas quais o centro pode passar a ser a experiência de derrelição. Ao contrário da experiência que tem lugar via discurso do outro, essa experiência é capaz de jogar o eu na “provocação do retorno que o reconduz ao seu desejo” (Lacan 1953, p. 183). É preciso perguntar: por que, e mais precisamente, como se realiza essa recondução ao desejo?

No sistema nomeado de “significante” recebem lugares alternados “inércia na cadeia significativa” e “retorno do recalcado”. Nele se realizam alternadamente junções e disjunções desses movimentos. Enquanto o primeiro movimento, de inércia ou de resistência, realiza-se como uma experiência de velamento, de asseguramento do ser que já vem sendo circunscrito, o segundo movimento, de retorno do recalcado, permite a realização de uma experiência de desvelamento.

Na experiência da fala em situação analítica, o discurso primeiramente circunscrito, o discurso do outro, que se encontra, de alguma maneira, já presente e traz consigo sintomas “fixados”, dará, então, lugar à experiência de derrelição, junto a qual é possível pontuar o desvelamento do desejo. De outro modo, dando-se lugar à manifestação do inconsciente, torna-se possível uma “recondução ao desejo” porque tem lugar, nesse âmbito, uma alternância entre o discurso do outro e o movimento do Fort-da: aqueles significantes que serviam à manutenção do discurso do outro podem, finalmente, dar lugar a uma confrontação com os significantes que, por reportar ao real traumático, vinham sendo evitados.

Por fim, se, para Lacan, existir é ser significantizado (1953, p. 248) o movimento do Fort-da, é o movimento que permite ao ser em análise “significantizar-se” na “provocação do retorno” que “reconduz ao desejo”. A circunscrição de três vetores – a anamnese, a interpretação simbólica e a intersubjetividade – visa nortear o trabalho analítico para a realização dessa experiência, conforme se lê em:

“Se dirigirmos agora nosso olhar para o outro extremo da experiência psicanalítica (e não para ‘uma tendência da técnica’ que ‘deprecia a fala’ e que ‘dá por objetivo o modificar sua inércia própria, condenando-se assim à ficção do movimento’) – em sua história, em sua casuística, no processo da cura – encontraremos para opor à análise do hic et nunc o valor da anamnese como índice e como mola do progresso terapêutico, à intrassubjetividade obsessiva a intersubjetividade histérica, à análise da resistência a interpretação simbólica. Aqui começa a realização da fala plena” (Lacan, 1953, p. 119).

No “Discurso de Roma” nos deparamos com a compreensão de que se trata de fato de dar preferência aos três vetores destacados – a anamnese, a intersubjetividade e a interpretação simbólica em contraposição a outros três – “a análise” do aqui e agora (“hic et nunc”), “a intrassubjetividade obsessiva” e “a análise da resistência”.


Os três vetores essenciais para a liberação do movimento do Fort-da


Lacan se contrapõe à análise da resistência por considerar que essa prática acarreta o aumento da resistência. Ao mesmo tempo, a resistência pode ser manejada, de modo a colaborar com o advento de uma fala verdadeira. É interessante notar ainda que a resistência chega a ser creditada à figura do analista – este sim passível de permanecer na posição de quem se revela, resistindo à possibilidade de deixar livre a fala do analisando3. A elaboração é, pois, providenciada quando a fala se dirige “para” o analista, e uma circularidade tem oportunidade de se manifestar mediante o silenciar deste ser.

Sob tal perspectiva, o papel da análise é apenas deixar vir à fala o retorno do recalcado sem que, de início, seja necessária uma intervenção de caráter interpretativo da parte do analista. Já com o termo “intersubjetividade da histérica”, Lacan situa o “nascimento da verdade na fala” (1953, p. 120). No Seminário II, no entanto, Lacan coloca um crítica quanto a essa noção, de intersubjetividade, em proveito do “logos” (Lacan, 1954-55/1978, p. 327) dos “pré-socráticos”4.

Ainda assim, ao contrário da ‘intrassubjetividade obsessiva’, que “arrasta consigo na jaula de seu narcisismo os objetos onde sua pergunta repercute” (Lacan, 1953, p. 168), a intersubjetividade seria capaz de descortinar o verdadeiro papel da análise, a saber: colocar diretamentena fala todas as “potências antes evitadas”. Deslocada de um lugar de evitação onde é responsável por causar o adoecimento a verdade é quem guiará a manifestação do ser em análise. Já sobre a questão da interpretação simbólica, Lacan frisa que “cabe ao sujeito reencontrar a sua medida”:

“O que se compreende no fato de que esse não agir (o silenciar do analista) se funda sobre nosso saber afirmado do princípio de que tudo o que é real é racional, e sobre o motivo que disso decorre de que é ao sujeito que cabe reencontrar sua medida” (Lacan, 1953, p. 174).

É enquanto revelável a partir do retorno do recalcado junto ao qual é dada ao inconsciente a oportunidade de se manifestar que o real é apontado como “racional”, modo como Lacan lê a tese hegeliana segundo a qual “o real é racional” (Lacan, 1954-55/1978, p. 279) A fala, na situação analítica, atua no sentido de permitir ao analisando confrontar-se com o real, funcionando ao mesmo tempo como um modo de o analisando simbolizar o seu próprio ser de maneira mais independente do discurso do outro. Ao abrir-se um espaço de simbolização em que o real passe a ser assumido, conquista-se a possibilidade de transformação da palavra vazia em uma palavra verdadeira (Lacan, 1957, p. 331 e 351).

Tendo situado o modo como os vetores ‘interpretação simbólica’ e ‘intersubjetividade’ são essenciais para a técnica psicanalítica, vamos passar à análise do terceiro vetor, a saber, a anamnese.


O papel da anamnese na clínica lacaniana. O processo de Nachträglich como futuro anterior

Freud formula a noção de Nachträglich, traduzida tanto por a posteriori quanto por só-depois, para explicitar como se dá a temporalidade no processo de anamnese. Na anamnese proposta por Freud, certas lembranças tidas como recalcadas vêm à tona. Assim compreendida, a anamnese seria responsável por trazer à luz lembranças de caráter sexual que foram esquecidas e que precisariam retornar para que a cura se realize. Em “Linhas de progresso na terapia psicanalítica” Freud define a “tarefa terapêutica como algo que consiste em duas coisas: tornar consciente o material recalcado e descobrir resistências” (1917-18, p. 175). Posição que o criador da psicanálise acirra ao final de sua vida, como indica a seguinte passagem de “Construções em análise”(1937, p. 271): “Isto que nós desejamos, é uma imagem fiel dos anos esquecidos pelo paciente, imagem completa em todas as suas partes essenciais”, acrescentando que, infelizmente,

“[...] nós frequentemente não alcançamos que o paciente se lembre do recalcado. Em contrapartida, se uma análise corretamente levou ao convencimento firme da verdade da construção (da lembrança recalcada), do ponto de vista terapêutico isto tem o mesmo efeito de uma lembrança reencontrada” (Freud, 1937, p. 284).

No sentido conferido por Freud memórias recalcadas são aquelas que foram esquecidas e que são passíveis ou de retornar ou de serem construídas através do processo de anamnese. Essas lembranças teriam sido recalcadas por conterem algo de caráter sexual e de terem sido censuradas pelo falante. Ao vir à tona, elas poderiam libertar o paciente do jugo de uma memória recalcada que de outro modo afloraria como sintoma. É preciso acentuar que segundo a maior parte dos especialistas na obra freudiana, há uma ambiguidade nessa obra, no seguinte sentido: não haveria como sabermos se as experiências relatadas como traumáticas e trazidas pela rememoração de fato ocorreram no passado ou se essas experiências são apenas criadas, como um delírio, durante o processo analítico. Isto porque a lembrança de um acontecimento que teria ocorrido na infância não viria à tona senão a posteriori. Isto é, as lembranças da infância passariam a existir em um momento posterior, como, por exemplo, a partir da experiência de anamnese. Essas lembranças podem ser apenas uma criação do inconsciente; ainda assim, para Freud, seria parte do processo de análise abrir-se para a possibilidade de que a fala convoque o nascimento das memórias a despeito destas dizerem respeito a algum acontecimento de fato realizado ou não. Ao mesmo tempo, se não houver outra experiência convocando a memória recalcada, a memória do acontecimento infantil sequer adquiriria o caráter de existente. O acontecimento do a posteriori nos obriga a pensar a temporalidade em jogo na clínica psicanalítica não como linear e sim retroativa: somente a partir de uma segunda experiência é que as primeiras experiências, tidas como sexuais ou como traumáticas, viriam à tona. As primeiras experiências, não obstante, aparecem como se tivessem estado sempre “lá” no “passado”. Isto aconteceria porque no momento atualizante da recordação, o eu seria instado a criar imagens fictícias. Em outras palavras, o analisando criaria o passado que, por contrastar com a experiência atual, provocaria a impressão de que sempre teria estado lá.

Lacan se atém ao caráter ambíguo do processo de Nachträglich para dizer que já na obra freudiana está implícita a ideia de que a priori não existem lembranças inconscientes: é a posteriori que essas lembranças são criadas; sendo que essa criação se daria ainda com base na maneira como o mundo simbólico vem se organizando; seja na fala em situação analítica seja em outras experiências, que, sendo capazes de convergir os ‘tendo sido’ realizam o “ente”:

“Podemos dizer, na linguagem heideggeriana, que uma e outra [a rememoração hipnótica e a vigil] constituem o sujeito como gewesend, isto é, como sendo aquele que assim foi. Mas na unidade interna dessa temporalização, o ente (l’étant) marca a convergência dos ‘tendo sido’. Isto é, que de outros encontros estando supostos a partir de um qualquer desses momentos tendo sido, disso teria saído um outro ente que o faria ter sido completamente outro.” (Lacan, 1953, p. 255 – tradução nossa).

Se cada “unidade interna da temporalização” traz um modo diferente do ser se manifestar, é porque essa manifestação encontra-se submetida à maneira pela qual o sujeito é simbolizado e passa a organizar-se com base nessa simbolização. Ao psicanalista francês coube observar que na clínica as lembranças vêm à tona de maneira errática, apenas como possibilidades de ser.

É a rememoração que imediatamente traz “os tendo sido” – “gewesend” – que realizam o “ente”, isto é, a “unidade interna” em que se constitui essa “temporalização”. É o passado mesmo que vem a ser constituído junto ao relato onde o “ente” tem lugar. É o relato mesmo, nessa medida, que supõe os “tendo sido”, e isso em virtude de alguma necessidade passível de ser descoberta durante o processo de anamnese. Na teoria lacaniana, pois, esse processo dá-se da seguinte maneira: junto à anamnese a atenção não se vira em direção ao passado, mas são os acontecimentos mesmo que vêm a ser a partir da orientação que tiver lugar na fala. É a fala, pois, que atuaria na criação dos “tendo sido”.

Para a teoria lacaniana, mesmo a emergência dos “tendo sido” surge como uma tentativa de lidar com o encontro com a morte. Pode-se dizer, inclusive, que os tendo sido funcionam como uma espécie de recriação do ser do analisando: ao convocar os “tendo sido”, objetiva-se trazê-los de modo a favorecer a recriação do próprio ser. Junto aos significantes trazidos, no entanto, os “tendo sido”, ao invés de colaborar com o desvelamento do desejo, podem se dar justamente como uma evitação do encontro com a morte. Cabe ao analista cuidar para que o real traumático não seja novamente evitado.

O movimento existencial de evitação desse real pode se fazer notar na fala em que certos significantes são esquecidos ou mesmo “providencialmente” evitados. Abre-se, com a observação de que algo está sendo afastado, um espaço de jogo, em que o Fort-da passa a se realizar. Na interpretação simbólica que tem lugar por essa via o porvir também é trazido como orientado por uma inscrição no “mundo simbólico”: a emergência desse mundo, seguindo essa mesma lógica, é destacada como implicando “sempre a criação de seu próprio passado” (Lacan, 1954-55/1978, p. 29):

“Quando alguma coisa vem ao dia, alguma coisa que nós somos forçados a admitir como novo, quando emerge outra ordem da estrutura, e bem! Isto cria sua própria perspectiva no passado, e nós dizemos – Isto nunca não pode estar lá, isto existe desde toda eternidade. Não é isto, além do mais, uma propriedade que nos mostra nossa experiência?” (1954-55/1978, p. 13).

Se a emergência do mundo simbólico é capaz de criar passado é porque inclui escolhas que determinam retroativamente um passado em que um porvir também é antecipado (Lacan, 1955, p. 56). A cadeia simbólica revela a memória inconsciente do sujeito como fruto de uma “encarnação”, a cada vez “atual”, de uma autonomia significante. É por uma confrontação entre o homem e a máquina que Lacan ilustra a homogeneidade da estrutura simbólica: assim como a temporalidade de oscilação no mecanismo na máquina é reversível, o porvir no mundo simbólico não se distingue do passado – ambos surgem como efeito de um movimento existencial onde a emergência dos tendo sido não diz respeito à emergência de lembranças stricto sensu, mas diz respeito sobretudo a uma determinada maneira pela qual a ordenação simbólica cria retroativamente o passado (Lacan, 1954-55/1978, op. cit., em especial, o capítulo XV). No momento em que se evita o encontro com o traumático tanto o passado quanto o porvir surgem a partir dessa evitação.

Para que a análise se realize, por sua vez, essa evitação deve dar lugar ao reconhecimento da manifestação do ser que tem lugar nos momentos de encontro com o real. Se esse real é também uma determinação da maneira pela qual o mundo simbólico vem se constituindo, é preciso a cada vez auscultar essa constituição e precisar que no encontro em questão, trata-se de colocar a verdade em jogo:

“Sejamos categóricos, não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque é efeito de uma palavra plena reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades que vêm a ser [...] [e isso] a partir do pouco de liberdade por onde o sujeito as faz presente” (Lacan, 1953, p. 121).

Retomemos a questão: como a teoria lacaniana formula a anamnese? Para Lacan, na anamnese há imediatamente a convergência dos “tendo sido”. Essa ordenação retroativa permite a assunção de um “passado”. A noção de futuro anterior será fundamental no desdobramento dessa questão: “O que se realiza na minha história, não é o passado simples do que foi pois não é mais, nem mesmo o passado composto do que tem sido no que eu sou, mas o futuro anterior do que eu teria sido para o que estou me tornando” (1953, p. 164). A sentença “o que eu teria sido para o que eu estou me tornando” espelha o movimento do futuro anterior, nele interessa ‘aquilo que eu estou me tornando’. É somente essa realização que é capaz de decidir por uma assunção plena das potências antes evitadas.


Conclusão

Somente a partir da assunção “daquilo que eu estou me tornando” que uma análise pode tornar possível, por fim, a superação do discurso do outro em proveito do desvelamento do desejo na fala. No momento em que a verdade não é afastada, os significantes nascidos serão capazes de levar ao advento de um ser tanto orientado pelos “tendo sido” e quanto orientado para as realizações por meio das quais as potências do ser tenham lugar.

Se os “tendo sido” variam conforme a “historização atual” que cabe à análise perfazer, a princípio, cabe à análise apenas deixar vir à palavra os “tendo sido”. O que causará o advento de um ser mais livre para descobrir-se enquanto em vias de ser, segundo conseguimos acurar, será o próprio movimento do Fort-da, tido, pois, como responsável por libertar o sujeito do discurso que insiste em mantê-lo refém de uma historização pela qual não se decidiu ainda.



Notas

 
  1. Este trabalho origina-se da pesquisa da tese de doutoramento, defendida em 2012 no PPGTP/UFRJ, orientada Prof. Dr. Joel Birman, a quem agradeço, e contou com o apoio institucional do CNPq.
  2. Vale a ressalva de que o “outro”, grafado inicialmente por Lacan no Seminário II com “o” minúsculo (Lacan, 1954-55/1978, p. 276) terá sua forma final grafada com letra maiúscula, notadamente simbolizando o lugar, não do código, mas do tesouro do significante. Cito: “Um, conotado O, é o lugar do tesouro do significante, o que não quer dizer do código, pois não se conserva aí a correspondência unívoca de um signo a alguma coisa, mas que o significante se constitui apenas por uma reunião sincrônica e enumerável em que cada um se sustenta apenas pelo princípio de sua oposição a cada um dos outros” (Lacan, 1960, p. 288). Não obstante essa evolução semântica, no presente trabalho, retomamos a primeira abordagem, em que “discurso do outro” é tomado como o discurso que leva ao adoecimento; isso em razão dessa modalidade discursiva concatenar cadeias discursivas capazes de tirar do sujeito a responsabilidade pelo seu próprio ser. Sobre a discussão a respeito do discurso do outro no âmbito da análise, favor consultar a próxima nota, de número 4.
  3. O conceito de ‘análise supervisionada’ pretende dar oportunidade aos analistas, muitos dos quais tendem a se colocar na posição ‘resistente’, um cuidado quanto aos possíveis efeitos da chamada contratransferência – quando é o analisando colocado na posição, ainda que momentânea, de analista, por resistir a deixar livre a fala do analisando – o que pode gerar um ‘curto-circuito’ no trabalho de análise e o analista pode terminar por tomar para si as dores do analisando. Sobre essa questão, sugiro consultar: Hoffmann, 1995, p. 1-8.
  4. Sobre a referência aos pré-socráticos, Lacan assinala, por exemplo, em uma sentença um tanto enigmática que “a função do significante fálico converge (então) para a sua relação mais profunda: aquela pela qual os Antigos aí encarnavam o Nous e o Logos” (Lacan, 1957, p. 273). ‘Nous’ é pensamento, um pensamento que, segundo a Deusa do poema de Parmênides, surge em comum-pertencimento ao Ser: “to gar auto noein estin to kai einai” (ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 1991, fragmento III, p. 45) – “o mesmo é ser e pensar”. O ‘nous’ é o pensar capaz de reunir a totalidade, configurando-a. Já o termo ‘logos’ tem a mesma conotação, mas, neste caso, é Heráclito quem nos convida a pensar: “auscultando não a mim, mas o logos é sábio dizer que tudo é um” (idem, fragmento 50, p. 71, com alterações nossas); sentença que, aliás, tanto se destacara no encontro entre Heidegger e Lacan e diante da qual ambos os autores parecem discordar. Para Lacan, todas as coisas, quer causem angústia ou não, se encontram reunidas no ‘um’ e servem à decifração analítica. De outro modo, ‘todas as coisas’, ou ainda cada significante em particular, podem assumir “a função de significante fálico” e convergir, nessa medida, à experiência do ‘um’. Não cabe à análise conduzir a essa experiência, mas permitir, ao dar lugar à fala, que o analisando dê vazão àqueles significantes que possam conduzi-lo à assunção do inconsciente enquanto manifestação do ser do analisando.


Referências Bibliográficas

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Resumos

The Fort-da movement in the work of Jacques Lacan

The author reconstructs the place and uses that Lacan gives in the "Rome Discourse" and throughout the 1950s, to the Freudian concept of Fort-da. In order to properly forward his reflection, returns to the context of "Beyond the Pleasure Principle" in which Freud (1920) first proposed this movement as able to cope with the dictates of the death drive. To identify what will be decisive in the lacanian development about the language operation in question, the author follows Lacan in coining the concept of language as well as its proposal to differentiate the "discourse of the other"-the Fort-da movement. Note: This is the discourse of the other, with the small “o” and not the "discourse of the Other." The first presents itself as a discourse that leads to illness, while the latter is a synonym of the wall of language, reference required for any of the ways in which the unconscious is structured. To conclude, the author announces the need, in an analysis, to give preference to the movement of the Fort-da despite of the "discourse of the other."

Keywords:
psychoanalysis, Fort-da, another speech, interpretation, history.


Le movement du Fort-da dans la lecture de Jacques Lacan


L'auteur reconstruit la place et les utilisations que Lacan donne au «discours de Rome» et tout au long des années 1950, le fort-da freudien. Pour transférer votre réflexion correctement, renvoi au contexte de «Au-delà du principe de plaisir», dans lequel Freud (1920) a d'abord proposé ce mouvement comme étant en mesure de faire face aux exigences de la pulsion de mort. Pour identifier ce qui sera décisif dans le développement lacanienne sur l'opération langagière en question, l'auteur suit Lacan en inventant la notion de langue ainsi que sa proposition de différencier le «discours de l'autre», et le mouvement du Fort da. Note: ". Discours de l'Autre" C'est le discours de l'autre, avec le a minuscule. Le premier se présente comme un discours qui conduit à la maladie, tandis que le second est un synonyme de la paroi de la langue, référence nécessaire pour l'une des façons dont l'inconscient est structuré. Pour conclure, l'auteur impose la nécessité, dans une analyse,  de privilégier le mouvement du Fort-da au détriment du «discours de l'autre."

Mots-clés: psychanalyse, Fort-da, un autre discours, l'interprétation, l'histoire.


Citacão/Citation: ARAÚJO, F.M. de. O movimento do Fort-da na leitura de Jacques Lacan. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 15, nov. 2012 a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
16/09/2012 / 09/16/2012.

Aceito/Accepted:
14/01/2013 / 01/14/2013.

Copyright:
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