A partir da escuta psicanalítica a pacientes vítimas de traumatismos corporais, este artigo interroga quais seriam as figuras psíquicas que se inscreveriam para esses sujeitos, para além do trauma físico. Discute a definição do trauma para a medicina e para a psicanálise e de que modo esta noção convoca uma discussão sobre a urgência subjetiva. Algumas hipóteses são esboçadas: se o trauma psíquico se inscreve nesta situação, de trauma físico, poderíamos considerá-lo na ordem da repetição, da fantasia ou do gozo? Como os sujeitos respondem a essa inscrição física permeada pelo psíquico?
Podemos dizer que o trauma é um conceito eminentemente freudiano, na medida em que adquire importância considerável em sua obra. Em Lacan, é, sobretudo, o conceito de real que nos fornece o enquadre teórico a partir do qual podemos pensar o trauma como inassimilável.
O trauma em Freud
O trauma e o traumatismo são conceitos oriundos do saber médico, mais especificamente da cirurgia. O termo trauma refere-se a uma lesão corporal séria ou crítica, advinda de um ferimento ou choque, usado, muitas vezes, como sinônimo de ruptura. A incidência do trauma no âmbito da medicina é tão importante que nela se destaca uma área de conhecimento específica, denominada traumatologia. A origem etimológica da palavra “trauma” é grega e significa ferida, designando, notadamente, uma ferida com efração; já o traumatismo está mais relacionado às consequências, no organismo, de uma lesão resultante de violência externa. A palavra pode ser usada como sinônimo de trauma.
Freud retoma esses termos, “[...] transpondo para o plano psíquico as três significações que neles estavam implicadas: a de um choque violento, a de uma efração e a de consequências sobre o conjunto da organização” [psíquica] (Laplanche e Pontalis, 1991, p.523). Segundo Laplanche e Pontalis, na psicanálise o trauma pode ser concebido em termos de economia psíquica, sendo um acontecimento marcante que teve lugar na vida do sujeito, cuja consequência é a incapacidade dele de reagir de forma adequada, sendo acometido por efeitos patogênicos e duradouros.
O trauma é um ponto fundamental para a construção da psicanálise, pois foi a partir dele que Freud iniciou sua concepção das afecções psíquicas. Historicamente, ao percorrer a obra freudiana, podem-se ver várias formulações sobre a essência e a natureza do trauma. Concordamos com a perspectiva de Christian Demoulin (1997) quando ele afirma: “O percurso de Freud vai do evento traumático à fantasia; em seguida, à pulsão; depois, à angústia. Há, além disso, um trajeto de retorno, da fantasia para o evento traumático”. (Demoulin, 1997, p.27).
Germán García (2005), por sua vez, destaca dois momentos em que o trauma aparece com maior relevância na obra freudiana: num primeiro tempo, no estudo da histeria e, num segundo período, com a finalidade de responder aos traumas de guerra. Na verdade, desde 1893, no texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, o trauma aparece como ponto central para Freud: “Nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto − o trauma psíquico”. (Freud, 1893, p.43). Contudo, esse lugar eminente do trauma vai sofrendo modificações teóricas durante o desenvolvimento conceitual e clínico da psicanálise. Inicialmente, a tese que se afirma, nos textos freudianos, é de um traumatismo sexual, em que o traumático aparece sob uma forma específica, a cena de sedução da criança pelo adulto. Em seguida, percebe-se que, sob a ótica desta problematização da causalidade da neurose, Freud começa a admitir que esta concepção não funciona completamente. Em 21 de setembro de 1897, em carta dirigida a Fliess, ele coloca em dúvida a veracidade das cenas de sedução: “Não acredito mais em minha neurótica”, mudança reconhecida e publicada em 1905: “Superestimei a frequência desses acontecimentos (aliás, impossíveis de pôr em dúvida), ainda mais que, naquele tempo, não era capaz de estabelecer, com segurança, a distinção entre as ilusões de memória dos histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais” (Freud, 1905, p.258).
A partir de sua clínica, Freud abandona o que ele acreditou ser realidade factual, e tratar-se de um trauma exterior, para instaurar a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica. Segundo Colette Soler (2004b, p.49), Freud, inicialmente, acreditou encontrar o traumatismo, mas, na verdade, encontrou a “fantasia mascarada de traumatismo”. Se, num primeiro tempo, Freud acredita no trauma, ao desacreditar de suas neuróticas, é a fantasia que passa a se fazer presente para a psicanálise. Não fica clara esta última frase. Não seria: para Soler, de um lado, o traumatismo remete ao discurso comum e, de outro, a fantasia remete ao sujeito, à sua implicação subjetiva e ao desejo, estando consequentemente integrada ao discurso da psicanálise?
Demoulin (1997) situa a fantasia como pertencente ao campo da psicanálise: [...] É isto que tenta Freud com “O homem dos Lobos” e é isto também que ele faz com mais sucesso em “Uma criança é espancada”. Nos dois casos, o acontecimento é reconstruído a partir da fantasia, não é um acontecimento onde o sujeito é vitima na realidade” (Demoulin, 1997, p. 27).
Dependendo da forma como se analisa o evento traumático, ou melhor, a causa traumática da neurose, admitir-se-á que o sujeito é mais vitima ou mais responsável por sua doença. Assim, a passagem do trauma para a fantasia tem influências que tocam na implicação do sujeito com sua neurose, questão primordial deste artigo, na medida em que discorre sobre as figuras do trauma psíquico inscritas nos sujeitos, além do trauma físico. Freud, em “Além do Princípio do Prazer” (1920), ao referir-se às neuroses de guerra, adverte-nos de que uma doença orgânica pode surgir para evitar um sofrimento psíquico insuportável. Se a doença física pode surge para evitar um sofrimento psíquico, como afirma Freud, surge a questão do que haveria de acidental ou estrutural no trauma para o sujeito.
Com Freud, temos os grandes eixos do trauma, considerados acidentes ou não. Primeiro, a neurose traumática. Nela, o que está em questão é um choque vital, um acidente, algo externo, há um perigo de vida. Também nas neuroses de guerra tem-se um risco de vida, estamos submetidos a um acontecimento. Contudo Freud, no texto “A psicanálise e as neuroses de guerra” (1919), adverte: “De fato, poder-se-ia dizer que, no caso das neuroses de guerra, em contraste com as neuroses traumáticas puras e de modo semelhante às neuroses de transferência, o que é temido é, não obstante, um inimigo interno”. (Freud, 1919, p. 263). Este autor destaca que, nas neuroses de guerra, temos um conflito no ego: entre o ego pacífico de um lado e o ego bélico do outro. Já nas neuroses de transferência, considerada outro eixo do trauma, há um perigo relacionado à questão sexual.
Há que se ressaltar que, ao relacionar as neuroses traumáticas, de guerra e de transferência, Freud nos diz: “As dificuldades teóricas que se erguem no caminho de uma hipótese unificadora desse tipo não parecem insuperáveis: afinal de contas: temos todo o direito de descrever o recalque, que está na base de cada neurose, como uma reação ao trauma como uma neurose traumática elementar” (Freud, 1919/1980, p.263). Freud parece afirmar que, segundo a psicanálise, todo sujeito seria um traumatizado original e teria uma neurose sempre traumática.
Para a psicanálise, a questão do trauma parece ser, por excelência, o lugar da afirmação do ponto de vista econômico no que diz respeito ao funcionamento do aparelho mental, em que prevalecem os efeitos da quantidade de efração. Freud instaura a noção de carga e descarga, delineando, assim, um conceito específico de trauma como um perigo físico ou pulsional que produz um excesso de excitação, uma sobrecarga insuportável que não pode ser canalizada ou descarregada. Esta excitação excede as possibilidades do aparelho psíquico de inibi-la, é como se houvesse uma falha na superfície deste aparelho, provocada pelo excesso pulsional. Esta pulsão objetiva, inicialmente, “restaurar um estado anterior de coisas”. Segundo Freud:
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“Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica, necessariamente, uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira, sob outros aspectos, eficaz contra os estímulos” (Freud, 1920, p. 45).
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Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926), o trauma freudiano aparece na expressão “situação de perigo”. A angústia se revela como um sinal, uma reação a este perigo relacionado à castração. Este temor não é somente pelo medo da perda, mas pelo impedimento à satisfação pulsional. Este perigo, nomeado de angústia, aparece, na obra freudiana, em diversos textos, de quatro formas diferentes, conforme Soler nos aponta:
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“A primeira angústia é relativa à insatisfação da necessidade vital [...]. Em seguida, há a angústia e o perigo que se elabora no período de dependência como angústia de perder o objeto primário. Contudo, insisto, ele sublinha que só se teme perder o objeto primário porque este garante a satisfação pulsional [...]. Em seguida, vem a angústia da castração na fase fálica. A tese é análoga. Poder-se-ia crer que é uma angústia essencialmente narcisista de mutilação, de perda de uma parte do corpo; aqui, muitas coisas podem ser desenvolvidas, mas, em última análise, a angústia de castração remete ao perigo de ser privado da satisfação do acesso ao objeto [...] E, enfim, [...] tem-se a angústia diante do supereu, que substitui os temores precedentes” (Soler, 2004b, p. 52).
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Para esta autora, essas elaborações confirmam a hipótese de que a pulsão só é traumática para o sujeito indiretamente.
Trauma-acontecimento e trauma-processo
Podemos dizer que o tema do traumatismo é bastante atual. Segundo o senso comum, traumatismo é um dos nomes dados ao infortúnio quando ele vem de fora, sem que se possa responsabilizar a quem sofre suas consequências. Quando ocorre um acontecimento traumático, ele parece se referir a um “real que exclui o sujeito e não mantém relação com o inconsciente, nem com desejo próprio a cada um; [...] um real que deixa sequelas inesquecíveis [...]” (Soler, 2004a, p.71). Hoje, esse tema aparece em diversos discursos: na política mundial, após os atentados terroristas ou as catástrofes naturais; na área da saúde, diante de indenizações a vítimas de traumatismos; no judiciário, etc. Há uma generalização do trauma na contemporaneidade somos filhos do trauma1: “A extensão do termo se justifica por um fenômeno que se situa na interface entre a descrição científica do mundo e um fenômeno cultural que a excede” (Laurent, 2004, p. 21).
Na área da saúde, a medicina tem dedicado atenção especial ao trauma através de protocolos e cursos destinados ao treinamento médico para o socorro a pacientes traumatizados. Criou-se, em 1980, um programa de suporte avançado de vida no trauma para médicos ou Advanced trauma life support, visando padronizar, e tornar mais efetivo, o atendimento médico a vítimas de acidentes (politraumatizados), no intuito de diminuir a mortalidade. No entanto, apesar de tal enfoque, o trauma permanece como a principal causa de morte nas primeiras quatro décadas de vida, acometendo principalmente jovens. Nesse caso, há uma tentativa discursiva de estabelecer uma relação de causa e efeito, visando controlar o trauma.
É também na década de 1980 que a psiquiatria introduz, de modo sistemático, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), o transtorno de estresse pós-traumático, categoria que permanece, em sua nova versão, no DSM-IV e que, por sua vez, é descrita em seis tópicos distintos:
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“1. A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados; ou uma ameaça à integridade física própria ou de outros.
2. Evento traumático deve ser persistente, revivenciado na forma de imagens, pensamentos, percepções, sonhos ou recordações angustiantes; intensa reatividade psicológica ou fisiológica pode também estar presente na lembrança do evento.
3. Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da responsividade devem estar presentes desde o trauma.
4. Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada devem estar presentes desde o trauma.
5. A duração deve ser de, pelo menos, quatro semanas.
6. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo no funcionamento social ou ocupacional ou em áreas importantes da vida do indivíduo” (Kaplan e Sadok, 1999, p. 1337).
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Assinala-se que, para o discurso médico, o trauma é visto como o que gravita em torno daquilo que excede, em relação ao qual não é possível adaptar-se. Como exemplo disso, vemos, em conferências sobre a saúde mundial, proposições que visam considerar “[...] a sexualidade como um transtorno de estresse pós-traumático” (Laurent, 2004, p.24). Verifica-se, nesse sentido, que o objetivo último da metodologia puramente descritiva da medicina é delimitar, com a maior precisão, o que se define como traumático para os sujeitos e suas reações possíveis. O que vem, na verdade, corroborar a perspectiva do discurso atual da ciência, que traz uma causalidade programada de riscos e possibilidades na tentativa de caracterizar o mundo como se fosse um programa de computador em que só essa causalidade é reconhecida.
Nesse cenário, surge o trauma como aquilo que escapa do programado. Vivemos um momento de insegurança social, a era dos atentados terroristas, da violência urbana, dos ataques sexuais, das catástrofes naturais, de uma grande taxa de mortalidade nos casos de traumatismos. Para Laurent (2004), essa insegurança social não é somente um fenômeno sociológico, mas é um novo plano da clínica.
Na ordem da estrutura ou da contingência, Guillermo Belaga (2004) procura estabelecer a distinção entre trauma como acontecimento e como processo. Como acontecimento, o trauma aparece, em grande medida, como fruto dos eventos acidentais com os quais o sujeito lida na sua vida, como é o caso do aparecimento de doenças e da imprevisibilidade de acidentes e perdas. Podemos pensar que, para alguns sujeitos, até o acontecimento traumático, eles funcionavam bem, existia uma subjetividade organizada que lhes permitia funcionar sem sobressaltos.
E o que vem a ser a outra categoria do trauma? No que se refere ao trauma como processo (trauma-processo2), é preciso recorrer às contribuições psicanalíticas em que o trauma deixa de ter um caráter exterior e passa a ser um elemento constitutivo do próprio sujeito, ou seja, “[...] um elemento homólogo à estrutura” (Belaga, 2004, p.16). Belaga (2004) estabelece, o conceito de trauma-processo a partir da tese freudiana do sexual como traumático, mais tarde renomeada por Lacan como real através da máxima: “Não há relação sexual” (Lacan, 1972-73, p.49). Isso quer dizer que não há complementaridade entre os sexos, e que não se pode decifrar o enigma da diferença sexual. O ato sexual não permite a subjetivação do sexo. Mas, além de seres sexuados, somos falantes, e a linguagem falta. Quer dizer, ela preexiste à chegada da criança no mundo, demarca os lugares e as posições que a criança deverá ocupar. Então, o significante determina o sujeito, colocando-o em sujeição à linguagem. O impacto dessa estrutura simbólica é o trauma constitutivo do sujeito, que o divide. Assim, o sintoma é uma saída que desvela essa marca, o que nos torna traumatizados estruturalmente e nos faz comparsas do sintoma. Retomaremos esse ponto posteriormente.
Soler (1995), em seu artigo “Los nombres de lo real”, ajuda-nos a refletir sobre o processo traumático e os acontecimentos ao destacar a relação entre os fatos e o real, a partir da leitura lacaniana. Segundo esta autora, é paradoxal falar de um fato real para Lacan, pois os fatos não são o real, mas eles são o discurso, atrelados à sorte, ou melhor, à tiquê. Dizer isso é introduzir o subjetivo nos fatos e colocar “a realidade como um fantasma”. Pois sabe-se que não existe fato se este não for recortado da experiência, o que só acontece pelo discurso e pela interpretação. Portanto, temos, no fato, uma mistura de real e discurso. Pode-se, então, considerar que temos um trauma-processo anterior a qualquer acontecimento.
Deve-se levar em conta também o aspecto contingente do trauma, além do trauma estrutural. Algumas experiências são desorganizadoras para o sujeito de acordo com sua história e configuração psíquica:
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“Para abordar o impacto do evento contingente e desorganizador, o que é preciso ter em mente é que não é possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre causa traumática, como as guerras e catástrofes, e suas consequências sintomáticas, pois, entre elas, se interpõe o inconsciente” (Rudge, 2009, p.65).
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Para Soler (1995), a causalidade em psicanálise não é uma teoria geral posto que aparece sempre um hiato entre a revelação e a mudança do sujeito. O que causa esse hiato? Têm-se duas hipóteses: uma quanto à inércia do gozo, que nos remete à questão da fixação freudiana, e outra sobre a posição do sujeito. Freud desenvolve o conceito de fixação, na “Conferência 18: Fixação em traumas – O inconsciente” (1917), descrevendo também como traumáticas as experiências fixadas nos pacientes neuróticos. Ele situa a fixação como elemento causal do recalque. Assim, associa neurose a uma doença traumática que foi derivada da incapacidade psíquica de lidar com um afeto intenso. Pode-se ler com Lacan que uma fixação de gozo situa-se na base do recalque, o que faz do gozo uma causa, sem ser a única. A fixação designa uma inclinação; para o gozo do corpo, “[...] a palavra fixação implica uma referência ao tempo, a um acontecimento, ao movimento em isto se fixou [...] implica uma marca do que teve lugar , do que se sucedeu” (Soler,1995, p.103).
A fixação parece demonstrar que algo ocorreu independentemente da causalidade do sujeito, que foi um encontro por acidente. Lacan, em (1975), comenta que o termo freudiano fixação (Fixierung) vai além do psicossomático e nos diz: “No fundo, é como se o corpo se deixasse escrever” (Lacan citado por Soler, 1995, p. 113).
Não se pode considerar o sujeito como responsável por isso que o determina e provoca sua divisão, quer dizer, ele não é responsável por algo que é da estrutura. O sujeito não tem a ver com este gozo heterogêneo e até se defende dele. Dessa maneira, os acidentes da vida têm sua função, mas não são o que determina tudo, há algo que está dado, que funciona como dado. Sendo assim, o trauma, numa definição mais geral de efração, ruptura, evoca uma causalidade de fora em relação a uma causalidade do sujeito. Ele dá uma ideia de que o sujeito é inocente, afinal parece que não houve escolha. Contudo, deve-se relativizar. Em alguns casos, vê-se que o traumático é relativo ao que o sujeito aceita ou não saber. Nessa medida, a posição do sujeito está implicada: “Há uma causa-gozo do traumático, e há também uma causa-sujeito” (Soler, 1995, p.109). Com Lacan (1964), percebe-se que o trauma é o surgimento do real. Deve-se refletir que o que traumatiza é o que vale como real em um saber, é o que está excluído deste saber. Aquilo que escapa à “homeostase significante” é, segundo Lacan (1964), o real.
Figuras do trauma: fantasia, sintoma, discurso e ato
Uma das respostas ao trauma é a fantasia. Ela funciona como um anteparo, como uma tela de proteção ao traumático. Seu uso é de satisfação, nos limites do princípio do prazer, para sustentar um desejo. Mesmo que o sujeito esteja à disposição dos acontecimentos:
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“[...] a fantasia é o que filtra essas contingências conforme sua conveniência, ou seja, a fantasia é o que palia os maus encontros [...] do traumatismo pelo real. A segurança da fantasia pode ser pesada para o sujeito, pois ela é um vetor de todos os seus sofrimentos, sabe-se muito bem, mas é uma segurança contra o real” (Soler, 2004b, p.56).
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Bem como a fantasia, o discurso serve também de função protetora, na ilusão de abrandar os efeitos do real. Ele pode tanto funcionar como tela quanto fornecer vias para satisfação pulsional. Vemos que quando um discurso se instaura e se mantém de maneira sólida a fala pode valer seus mandamentos até mesmo no campo do gozo. Este discurso, afirma Soler (2004a), se antecipa ao desmoronamento e sublima os pavores e os tremores em heroísmo, ou ainda, ao contrário, repara, no a posteriori, a intrusão do impensável. “Aí o discurso é um pára-trauma(tismo)” (Soler, 2004a, p.73).
Aprende-se com Freud que o trauma é algo que excede, causa ruptura e é insuportável para o sujeito. O traumático está sempre permeado pelo resto não assimilável, quer dizer, aquilo que a linguagem pode rodear, situar, mas não pode absorver. Com Lacan, o furo do traumático está presente no real, e a linguagem se organiza simbólica e imaginariamente em torno de um buraco. Portanto, no que concerne às possíveis respostas ao trauma físico, ou seja, as figuras do trauma psíquico que se inscrevem nesse trauma, elas só podem ser lidas a partir do particular:
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“Nesse sentido, um tratamento apenas se torna um tratamento psicanalítico quando se mostra permeável a um dizer que tende a se particularizar em função das incidências do real do gozo de um sujeito. [...] Isso quer dizer que a base essencial da direção do tratamento impõe-se pela prioridade que um analista confere ao que é particular, não ao geral ou ao universal do caso clínico” (Santiago, 1997, p.11-12).
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Não existe uma resposta-padrão a ser incorporada nas categorias de estresse pós-traumático; desse modo, considera-se que as figuras psíquicas compreendem, conforme Lacan (1977) nos ensina, a “verdade-variável” (várité-varidad) do sintoma de cada sujeito, como cada um consegue, a partir de seu trauma-processo, lidar ou não com o que se torna um trauma-acontecimento, considerando a implicação do sujeito em seu trauma.
As noções do trauma-processo e do trauma-acontecimento, a partir das quais podemos pensar as figuras do trauma, introduzem uma discussão acerca do interior e do exterior. Lacan recorre a uma figura topológica, o toro, para pensar esta relação entre o dentro e o fora. Ao querer fornecer dele uma representação intuitiva, parece que, mais do que à superficialidade de uma zona, é à forma tridimensional de um toro que conviria recorrer, na medida em que sua exterioridade periférica e sua exterioridade central constituem apenas uma única região. (Lacan, 1953, p. 322).
Figura 1 – Toro (Gerbase, 2000, p. 02) |
Sobre o toro, Gerbase (2000) esclarece que ele é uma superfície em que se destacam um espaço interior, um espaço exterior e um centro também exterior. Uma superfície sem margem (na medida em que dois cortes não o fazem desaparecer, nem se dividir), cujo centro é vazio. Esta figura do toro nos permite pensar a questão da causalidade do trauma além de superar a oposição entre interior e exterior.
O termo troumatisme3, criado por Lacan (lição de 19/02/1974), nos dá a dimensão do trauma, como um buraco no interior do simbólico. O simbólico pode ser considerado como o sistema das representações (Vorsterllungen). E há também aquilo que não chega a fazer sintoma: esse ponto de real que permanece exterior ao simbólico, sem representação, pela via do sintoma ou da fantasia. O que permite figurar o real, em “exclusão interna ao simbólico” (Laurent, 2004. p.25).
Figura 2 - O real excluído do simbólico (Laurent, 2004, p.25) |
“O sujeito não pode responder ao real a não ser fazendo um sintoma. O sintoma é a resposta do sujeito ao traumático real” (Miller, 1997, p.54). Este ponto de real não absorvido no simbólico diz respeito à angústia. Como a causa do recalque, a angústia é, segundo Lacan (1962-63, p.68) “o que não engana”. Pois bem, a angústia funciona como um real inserido no simbólico.
O tratamento psicanalítico do trauma busca dar um sentido àquilo que ficou sem simbolização:
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“Ela (a psicanálise) considera que, no acidente mais contingente, a restituição da trama do sentido, da inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito, fantasma e sintoma, é curativa. Nessa perspectiva, o psicanalista é um doador de sentido. Ele trata se fazendo de uma espécie de “herói hermenêutico” (singular) da comunidade de discursos da qual ele procede” (Laurent, 2004, p.25).
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Além do sentido, deve-se também tomar ao avesso o traumático do real. Laurent (2004) faz essa proposta ao afirmar que existe simbólico no real, que é a estrutura da linguagem da qual a criança foi tomada. Nós não sabemos de antemão as regras que compõem o Outro do laço social; o sentido das regras advém de um ponto fora do sentido que é o vínculo com o Outro. Nesse avesso, a linguagem é real, traumática, algo fora do sentido do vivente.
Miller (2004) esclarece que há um nome paradoxal para o simbólico no real, que traduz que não deveria haver simbólico no real, já que o real exclui todo o sentido. O simbólico tem o estatuto de uma mentira no jogo do significante com o significado, com efeito, sabemos que o significante sempre pode mentir. Lacan nos ensina que “o simbolicamente real não é o realmente simbólico. O realmente simbólico, isto é, o simbólico incluído no real, o qual tem perfeitamente um nome, chama-se mentira. O simbolicamente real, ou seja, o que do real se conota no interior do simbólico, é a angústia” (Lacan, lição de 15/03/1977).
Assim, Laurent (2004) sugere que depois do trauma é preciso reinventar o Outro, “causar” um sujeito para que ele novamente encontre as regras da vida, criar uma certa mentira, uma ficção que inclua o traumático. Conforme Lacan nos diz a respeito do troumatisme: “Inventamos um truque para preencher o buraco no real, ali onde não há relação sexual, Um se inventa” (Lacan, lição de 19/02/1974). A possibilidade é de se inventar um caminho novo, causado pelo traumático. Tem-se, aqui, o que ultrapassa o fantasma e o sintoma, aquilo que vai além do “sentido” possível na causa libidinal:
Figura 3 - O simbólico no real (Laurent, 2004, p.26) |
Na análise, podemos dizer que o analista funciona como um parceiro que traumatiza o discurso comum para que surja o discurso do inconsciente. Então, como afirma Lacan (1972), o analista é traumático, bem como a linguagem. Aqui o analista não é um “herói hermenêutico”, pautado no sentido.
Em suma, deve-se considerar sempre a questão do sujeito com seu inconsciente, só assim o analista poderá dosar, para cada sujeito, como situar os dois pólos de sua ação. Reafirmamos que isso depende do trauma-processo constituído pela imersão na linguagem, pela não inscrição da relação sexual, no qual, por essa falha, virão se instaurar os objetos fragmentados do gozo, como depende também do trauma-acontecimento, da história que o analisante viveu.
Figura 4 - O direito e o avesso do trauma (Miller, 2004, p.50) |
“Se nós conjugarmos esses dois sentidos do trauma, o trauma é mais processo do que acontecimento. Ele acompanha para sempre o sujeito” (Laurent, 2004, p.27). Esta é a especificidade da psicanálise em relação às outras terapias: ela pode testemunhar, através da escuta do sujeito, a atitude do sintoma para invenção, como uma “solução” que responde ao trauma da língua.
As figuras do trauma permitem-nos pensar o particular da resposta do sujeito que se dá na amarração singular (em que o vazio se faz presente) entre o real, o simbólico e o imaginário, proposta por Lacan através do nó Borromeano. Trouxemos até agora como figuras do trauma, a fantasia, o sintoma e o discurso. Consideramos o gozo como outra figura do trauma, pois Lacan (1974) nos leva a abordar o trauma como gozo. Este autor situa, em relação ao nó borromeano, o sentido, o gozo fálico e o gozo Outro. Da interseção dos três, situamos o mais-de-gozar, que causa o desejo do sujeito.
• Gozo do sentido: acontece na junção do imaginário com o simbólico, tendo o real como terceiro;
• Gozo fálico: acontece na junção do real com o simbólico, com a ajuda do imaginário;
• Gozo Outro: acontece na junção do real com o imaginário, no lugar onde o imaginário suplanta o real.
Figura 5 - Nó borromeano (Lacan, 1974-75,p.45)
JA = Jouissance de l'Autre (GO = Gozo do Outro) Jf = Jouissance phallique (Gf = Gozo fálico) |
Demoulin (1997), a partir da noção lacaniana, propõe uma tripartição do trauma (no sentido gozo do Outro e gozo fálico). Para introduzi-la, ele utiliza os três tempos da fantasia, a partir do texto de Freud “Uma criança é espancada: uma contribuição à origem das perversões sexuais” (1919), associando-os às principais modalidades de gozo, estabelecidas por Lacan (1974-75) em “La troisième”. Teremos o primeiro tempo da fantasia em que “uma criança é espancada”, na verdade, pode ser representada pela frase “ meu pai, está batendo na criança [...] que eu odeio” (Freud, 1919, p.232). Quanto aos modos de gozo, Demoulin (1997, p.27) infere que faz valer o amor como preferência do pai: meu pai bate num rival, pois sou eu quem ele ama. Assim, trata-se do sentido como gozo, ao se interrogar, em cada caso, o que leva ao traumático.
No segundo tempo, passa a ser “Estou sendo espancado pelo meu pai” (Freud, 1919, p.232). Essa cena traz um gozo do Outro, em que o sujeito se encontra na posição de objeto. Freud nos diz que é uma fantasia masoquista, mas há aqui uma fantasia de gozo sádico suposto ao Outro. No terceiro tempo, uma criança é batida, quem bate é um substituto do pai e a fantasia se caracteriza por olhar: “Provavelmente, estou olhando” (1919, p.233). Pode-se ler como uma fantasia erótico-masturbatória, de gozo fálico. Também nesta leitura os três tempos gravitam em torno do objeto a como mais-de-gozar. Segundo Demoulin (1997), poderíamos considerar o nó borromeano como sendo a construção da fantasia a partir do trauma, quer dizer, o nó faz limite ao gozo, e ele nomeia de fiction-fixion4 do trauma, como uma ficção, e fixão, um atrelamento à tríade do Real, Imaginário e Simbólico. É como se pode operar o trabalho de ligação descrito por Freud, no qual o trauma se torna assimilável, mas através do sintoma.
“A fantasia complemento do sintoma é a resposta do neurótico ao gozo do trauma” (Demoulin, 1997, p. 28). Quando se faz um diagnóstico de estrutura neurótica, nós temos a hipótese de que a fantasia respondeu ao trauma. Como descrevemos, há um trauma-processo. De outra maneira, nos diz Demoulin (1997), a fantasia se constitui na cura. Então, a cura é uma aposta concernente à possibilidade da construção da fantasia e de sua travessia. Entretanto, fazer ou não essa aposta é de responsabilidade do analista e não se relaciona com o trauma-acontecimento vivido pelo analisante.
Outra resposta ao trauma a ser considerada é o acting-out. Dunker (2006) aponta que no acting-out é a imagem que invade o real. Nesse sentido, ele é uma realização pacificadora da fantasia. Dito de outro modo, o acting-out atualiza a fantasia. Em contrapartida, sabe-se que a resposta psicótica ao trauma não passa pela fantasia, pois o gozo do Outro se torna muito real, sobrepujando o imaginário, o que não permite o nó. Também existem outras respostas ao trauma que curto-circuitam a fantasia, como: a passagem ao ato e a resposta psicossomática. Dunker (2006) admite que a passagem ao ato é a face traumática da anomia. Para este autor, a passagem ao ato exprime a realização positiva do objeto em um ato paradoxal, como no suicídio. Não se trata de “purificar o excesso”, como no acting-out, mas de identificar-se ao elemento perturbador. Nela é o real que invade a imagem, mostrando seu valor de superfície.
Assim, Demoulin (1997) nos coloca duas possibilidades: ou o nó se torna possível no modelo fantasmático do Uma criança é espancada (1919), ou passa pelo gozo do Outro que desfaz a cadeia, ao não se fixar pelo nó da fantasia. Todavia, concordamos com Lacan (1965-66, p.873): “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”, como podemos perceber no caso clínico relatado a seguir.
Caso clínico
Maria tinha 36 anos quando chegou ao hospital após um acidente de carro. Ela dirigia sozinha, de madrugada, depois do trabalho, e bateu em um caminhão. Ao entrar no hospital, solicitou a presença de um analista: queria falar sobre o acidente com alguém desconhecido. Maria estava bastante machucada e havia se submetido a uma cirurgia de urgência quando foi internada, mas, naquele momento da visita do analista, já não corria mais risco de morrer. Estava cercada pela família, mãe, pai e marido.
Ela se apresentou muito entristecida, falou que fora vítima de um acidente e pediu à família para se retirar do quarto. Demonstrou estar muito angustiada e relatou, chorando, que perdera a mão esquerda no acidente e não sabia o que fazer com essa fatalidade. Entre silêncios reticentes e falas entrecortadas, ela contou que era dentista, agradeceu a Deus por estar viva e culpou o motorista do caminhão, que ela acreditava não ter respeitado sua preferência na sinalização. Depois do acidente, percebe-se uma situação de corte, de ruptura, envolvendo perdas reais e objetivas.
No estádio do espelho, a pessoa adquire uma unidade corporal por intermédio de uma imagem: a imagem do seu semelhante. Esse é o momento de constituição do eu. Assim, o eu e o corpo têm em comum a forma imaginária, trata-se do narcisismo. Essa imagem do corpo cativa e captura o individuo em sua imaginação e percepção. A partir daí, o despedaçamento do corpo se fará presente nas fantasias imaginárias da histeria ou nas manifestações da esquizofrenia. Mas, quando Maria perde a mão, essa é uma perda no real do corpo; quebra-se sua totalidade corporal, abre-se uma ferida narcísica, que faz vacilar a fantasia de que temos uma unidade protegida das tragédias. Essa experiência dolorosa também repercute no imaginário, e a imagem constituída até então se parte diante da amputação imprevista, desse mau encontro (dystykia).
Esta situação é percebida e reconhecida também pela clínica médica, ao se deparar com a relação dos pacientes com o membro-fantasma, quando eles continuam sentindo o membro do corpo já perdido na realidade: “O corpo tem uma armadura chamada por Lacan de forma ortopédica, que é a imagem que dá ao indivíduo a ilusão de ter um corpo unificado” (Quinet, 1988, p.15). No caso de Maria, há uma intrusão do real na forma ortopédica, um corte, um pedaço que cai. E parece remetê-la à angústia do corpo despedaçado, anterior ao estádio do espelho, essa é a nossa suposição. Mas sabemos que, além da imagem, a linguagem também faz o corpo humano. O que ela pode dizer sobre este corpo?
Diante do traumático, o sujeito se depara com a castração, que o deixa imerso no silêncio, na angústia. A cadeia de significantes é rompida, as referências simbólicas perdem sua função, e seus valores e crenças não se sustentam mais. Maria apresenta-se no limite da palavra, tomada pela angústia. É a partir dessa situação crítica que o analista irá trabalhar, na chamada “dosificação” da angústia, diante daquilo que o analisante poderá suportar:
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“A angústia é, para análise, um termo de referência crucial, porque [...] a angústia é o que não engana. Mas a angústia pode faltar.
Na experiência é necessário canalizá-la e, se ouso dizer, dosá-la para por ela não ser submerso. Aí está uma dificuldade correlativa da que há em conjugar o sujeito com o real [...]” (Lacan, 1964, p.43). |
Invadido pelo sofrimento, muitas vezes, passa-se da condição de sujeito para a de objeto. Maria chora muito, refere-se aos procedimentos médicos dolorosos e à dificuldade com o tratamento. Segundo Palonsky (1991), cabe ao analista não o consolo, o sentido, pois este é impossível, mas criar um tempo e um espaço para que se possa falar da angústia. Este é o objetivo da análise: criar condições para que o sujeito desejante possa advir.
Assim, Maria é escutada em sua angústia, e ela fala: aparecem os significantes, a vítima, a dor, o terror, as cirurgias, os advogados, etc.: “[...] Nos sentimos justificados em sustentar a crença de que uma perda dessa espécie ocorreu; não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido [...]” (Freud, 1917, p.277). A angústia transforma-se em uma pergunta pessoal, que toma a forma de um enigma sobre a sexualidade feminina. Maria se refere à perda da mão nas perguntas: como vou conseguir ser mulher sem a mão? Como vou poder transar com meu marido? Será que ele se sentirá atraído por mim? Como vou colocar uma roupa sem manga? E sua resposta ao trauma, a ficção que se constrói, sustenta-se em uma pergunta acerca do seu lugar como mulher, diante do desejo de um homem. Para Lacan, ”[...] é em relação ao real que funciona o plano da fantasia, o real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real” (Lacan, 1964, p.43,44). Com essa falta vivida no real do corpo, Maria passa a interrogar sobre o lugar que ela ocupa como causa de desejo do homem e se inquieta com ser ou não desejada.
Freud (1914), em seu texto “Sobre o narcisismo: um introdução”, comenta sobre a escolha de amor narcísica, afirmando que determinadas mulheres desenvolvem um autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais, na medida em que sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de ser amada por um homem. O seu lugar de objeto de amor de um homem é o que lhe dá existência. Podemos pensar que, no caso Maria, a construção da fantasia em torno do desejo do Outro é uma tentativa de responder à amputação como efeito do real no corpo, efeito do traumático. Maria quer saber: ele me deseja? Sou uma mulher?
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“Como o desejo, a feminilidade escapa às palavras e se mantém em outra parte que não aquela onde se mostra. A mulher não tem identificação, mas sim identificações, que exprimem a falta de consistência de traço identificatório e revelam a impossibilidade de definir um modelo feminino. A feminilidade se resume na apresentação desse ornamento vazio, na qual ela inexiste” (Pommier, 1991, p.33).
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Uma mão, um falo, ter ou ser (in)completo? Segundo Lacan (1958), o falo é uma função, não um órgão, o pênis ou clitóris que ele simboliza, portanto, trata-se de um significante. Uma mulher pode encarnar a falta, a castração sob dois aspectos: de um lado, ela é o que não tem e, de outro, é o próprio símbolo da falta. O falo é um significante, assim, o sujeito só tem acesso a ele no lugar do Outro, e é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer (Lacan, 1958). Mas o Outro também é dividido. O que nos leva à questão: por que uma adequação ao ser do falo não poderia solucionar o problema da identidade feminina? Para Gérard Pommier (1991), não basta identificar-se ao falo, pois sem dúvida, isto até poderia resolver se esta identificação subsistisse independente do olhar de outrem. Maria preocupa-se com seu corpo diante do olhar do outro: como será que ele vai me ver? Ela depende do olhar do outro para tornar-se mulher após esta perda. Apesar de todas essas questões, ela não conseguia dizer ao marido sobre os seus medos. Temia por sua resposta, pelo abandono. Maria ficou queixosa diante dos procedimentos médicos. Evitou receber o marido. Até que se dirige ao analista: ... Será que ele terá pena de mim?
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- Quem tem pena ? Interroga o analista.
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Maria: Eu tenho, não sei o que fazer. Me sinto perdida em tudo: meu marido, minha profissão, minha família. Será que vou ficar dependente? Minha mãe precisa trabalhar. Como vou me virar sem a mão? Como poderei tocar nas pessoas? Alguém vai me querer?
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O analista pontua: Virar? Você Quer? |
Maria parece se perguntar como ocupar o lugar de causa de desejo. Sem identificações, ser amada é uma tentativa de identificar-se. Com Lacan, podemos dizer que uma mulher não é o falo senão na medida em que está aprisionada no desejo do homem; ela assume essa identidade na proporção da perversão masculina. É preciso uma fantasia, um véu para cobrir o trauma. “Nessa medida, apenas, as insígnias do ‘feminino’ recobrem uma identificação ao falo que é, em primeiro lugar, o sinal do reconhecimento evanescente do desejo” (Pommier, 1991, p.34). Maria questiona o marido sobre a relação: como faremos amor? E ele responde: como sempre fizemos. Após um trauma, é preciso reinventar o Outro. A partir daí, ela passa a discutir a possibilidade de colocar uma prótese na mão; é pela fantasia que se instaura a possibilidade de reconstrução. O trauma abre uma fenda que empurra o sujeito para além, ele pode ficar parado um tempo, mas, para fechar a ferida, deverá contorná-la, mesmo que reste uma cicatriz.
Sobre o objeto enxerto, Lacan (1962) revela que o objeto natural pode ser substituído por um objeto mecânico. Nesta vertente quando se trata do seio pode ser substituído pela mamadeira, ou por outro objeto. Há um objeto substituto? Sabe-se que não funciona assim, pois o objeto estranho no real gera angústia. Para que ele seja incorporado, primeiro tem que haver uma separação, perde-se o seio, para que a mamadeira funcione. Maria reconstrói, reinventa, refaz um lugar no desejo do outro pela via da fantasia, aceita a prótese - constrói uma ficção – como foi dito, faremos como sempre fizemos... “A singularidade feminina resiste a seu conjunto, mas, longe de ser indizível ou inefável, ela esclarece, em troca, os impasses encontrados pelo gozo, tanto dos homens, quanto das mulheres” (Pommier, 1991, p.7).
Considerações Finais
Pensar as figuras psíquicas do trauma físico, seguindo os passos de Freud e Lacan, leva-nos à dimensão ética da psicanálise. Sendo assim, devemos nos afastar de uma noção generalizada do trauma para abordá-lo, cuidadosamente, caso a caso. É a partir da história de cada um que chega ao serviço de urgência do hospital que podemos traçar, construir, via discurso, as figuras psíquicas do trauma para esses sujeitos.
Apesar da multiplicidade de explicações da medicina, da própria psiquiatria e das terapias comportamentais cognitivas, que, diante do acontecimento tido como traumático, oferecem respostas rápidas e prontas, pode-se constatar neste caso que é essencial a escuta psicanalítica do trauma, a partir da particularidade. A importância de se pensar além do trauma físico – quais seriam as figuras do trauma psíquico que se inscreveriam para os sujeitos – seria a de não classificá-lo apenas como pertencente à categoria de transtorno de estresse pós-traumático, transformando o sujeito num “tipo clínico standard”5, seguindo um tratamento para pessoas consideradas vítimas de traumas. Conclui-se, então, que é imprescindível a escuta psicanalítica do trauma, através da singularidade de cada sujeito. E é também indispensável abrir-se a escutá-lo a partir de seu trauma-processo e das diversas possibilidades de inscrições ou respostas que ele pode estabelecer numa situação traumática.
Notas
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“Filhos do trauma” é o titulo de um texto de Eric Laurent (2004).
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Optamos por grafar a expressão Trauma-processo e Trauma-acontecimento com o hífen. O hífen foi colocado entre os dois substantivos com o objetivo de criar uma palavra composta: trata-se de um trauma que é, ao mesmo tempo, processo, e de um outro que é, ao mesmo tempo, acontecimento. Os substantivos processo e acontecimento especificam o tipo de trauma, daí considerá-las palavras compostas e colocarmos o hífen entre os substantivos que as compõem.
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Troumatisme: Lacan se utiliza do jogo de palavras em francês para associar o traumatismo e o furo no real (Trou = furo em francês).
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Fixion é um neologismo de Lacan encontrado em no texto “O aturdido” (2003, p.480), e traduzido para o português como fixão.
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Expressão usada por Santiago (2007, p. 11-19).
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Resumos
Trauma’s psychic figures: a lacanian interpretation
From the psychoanalytic listening patients victim of physical trauma, this article researches what psychic figures would arise for these subjects, beyond the physical trauma. Discusses the definition of trauma for medicine and for psychoanalysis and in which way this notion convenes a discussion about the subjective urgency. Some hypotheses are sketched: if the psychic trauma inscribes itself in this situation of physical trauma, we could consider it in the order of repetition, fantasy or of enjoyment? How the subjects respond to this physical inscription permeated by the psychic? We can say that the trauma is a eminently freudian concept, in the extent that it acquires considerable importance in his work. In Lacan it is, especially, the concept of real that provides us with the theoretical framework from which we can think trauma as non-assailable.
Keywords: psychoanalysis, trauma, physical trauma, psychic trauma, subjective urgency.
Les figures psychiques du traumatisme: une lecture lacanienne
De l'écoute psychanalytique de patients souffrant de lésions corporelles, cet article examine les chiffres psychiques qui s'inscrivent pour ces sujets, au delà des traumatismes physiques. Il traite de la définition d'un traumatisme à la médecine et pour la psychanalyse et comment cette notion engendre un débat d'urgence subjective. Quelques hypothèses sont présentées: le traumatisme psychique est inscrit dans cette situation, les traumatismes physiques, nous pourrions considérer de l’ordre de la répétition, fantaisie ou la jouissance? Comment les sujets répondent à cette inscription physique envahie par le psychique? Nous pouvons dire que le traumatisme est un concept éminemment freudien, en ce sens qu'il revêt une importance considérable dans son travail. Chez Lacan, c’est, avant tout, la notion de réel qui nous donne le cadre théorique à partir de duquel nous pouvons penser à un traumatisme comme étant inassimilable.
Mots-clés: la psychanalyse, les traumatismes, les traumatismes physiques, le traumatisme psychique, urgence subjective.
Citacão/Citation: MARCOS, C.; D’ALESSANDRO, C. Figuras psíquicas do trauma: uma leitura lacaniana. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 15, nov. 2012 a abr. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 19/07/2012 / 07/19/2012.
Aceito/Accepted: 10/08/2012 / 08/10/2012.
Copyright: © 2013 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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