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Os adolescentes desinseridos e seus sintomas nas instituições socioeducativas

Maria José Gontijo Salum
Doutora em Teoria Psicanalítica / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação / UFMG (Minas Gerais, Brasil)
Professora adjunta da Faculdade de Psicologia da PUC-Minas (Minas Gerais, Brasil)
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (Brasil) e da Associação Mundial de Psicanálise (Paris, França)
E-mail: mariajgontijo@gmail.com

Ana Lydia Santiago
Professora da Faculdade de Educação da UFMG
Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
E-mail: a.lydia@terra.com.br


Resumo

O artigo problematiza a aplicação da psicanálise nas instituições que se ocupam dos adolescentes em conflito com a lei, localizando uma mudança na forma como o sintoma se apresenta na atualidade. Destaca o sintoma como acontecimento de corpo, propondo o corpo desinserido como o paradigma do sintoma desses adolescentes. Considera-se que essa nova forma de sintoma faz obstáculo ao cumprimento do ideal institucional de inserção social. Ao final, o artigo apresenta duas vinhetas práticas para ilustrar uma possibilidade de contribuição da psicanálise de orientação lacaniana no coletivo.

Palavras-chave: psicanálise aplicada, adolescente em conflito com a lei, desinserção social, sintoma.


 

A prática da psicanálise nas políticas públicas é uma realidade em nossos dias e a sua aplicação nos diversos contextos institucionais leva o psicanalista a se deparar com sintomas distintos daqueles encontrados e teorizados por Freud. A característica da clínica freudiana era a ocorrência de casos que demonstravam a operação do recalcamento para a formulação do sintoma. Essa modalidade de sintoma se caracteriza pela veiculação de um sentido inconsciente, o que possibilita sua interpretação pelo analista. Nos diversos espaços de aplicação da psicanálise, encontramos formas sintomáticas que se diferenciam dessa operação descrita por Freud. A prática nos leva a constatar uma insensatez nos sintomas contemporâneos; eles não veiculam um sentido inconsciente e não se abrem à interpretação. Simone Souto (2013) destaca que, na contemporaneidade, o sintoma está no corpo e se manifesta de várias formas: anorético, doente, obeso, agitado, despedaçado, desinserido.

Nesse artigo tomaremos a referência do corpo desinserido para abordar o modo como os adolescentes em conflito com a lei se apresentam no social. Mas, inicialmente, destacaremos os eixos teóricos que nos permitem considerar o sintoma na atualidade como um acontecimento de corpo.

O sintoma histérico como perda e o sintoma como acontecimento de corpo

Ao apresentar o tema do Encontro Americano de Psicanálise de Orientação lacaniana (ENAPOL) a ser realizado em novembro de 2013 em Buenos Aires, Eric Laurent (2013) ressalta a especificidade da forma contemporânea do sintoma. Ele destaca que os sintomas do tempo de Freud falavam por meio do sentido inconsciente; os de nossa época falam com o corpo. Laurent considera que essa modificação no modo como o sintoma se manifesta diz respeito à separação entre as palavras e os corpos, uma característica da atualidade. Por isso, hoje a linguagem da biologia é predominante para explicar as manifestações corporais. Laurent (2013) lembra-nos que, para a psicanálise, o sintoma era uma forma de relacionar as palavras com os corpos e essa relação permitia subjetivar as manifestações do gozo.

Sabemos que o sintoma histérico foi o marco para o desenvolvimento da clínica psicanalítica. Laurent (2013) retoma a histeria para ressaltar como seu sintoma porta uma marca identificatória, manifestando a presença do Outro no sujeito. O significante do Nome-do-Pai foi conceituado por Lacan como um instrumento para dar valor fálico ao desejo da mãe e a essa operação ele nomeou metáfora paterna. A partir da operação de metaforização, é possível atribuir um valor fálico às palavras e aos corpos. O Nome-do-Pai torna-se o instrumento para dar sentido ao gozo, inclusive, o sentido sintomático. Laurent também nos lembra que a relação entre sintoma e amor ao pai, tão presente na clínica freudiana, está em questão na nossa época. Por isso, os sintomas contemporâneos devem ser analisados mais além do horizonte do laço do sujeito à instância paterna. Ele conclui que, em nossa época, estamos sob a égide de um declínio dessa operação significante.

Ao passar pela operação metafórica, o corpo sofre uma inscrição significante e isso tem como consequência uma perda de gozo. Essa perda é demonstrada, especialmente, pelo sintoma histérico. As paralisias, as afonias ou a cegueira das histéricas de Freud manifestavam uma perda inscrita no corpo. Em contraposição às formas tradicionais da histeria, Laurent traz a noção de histeria rígida, apresentada por Lacan, afirmando que se trata de uma forma mais atual de apresentação do sintoma histérico. Ele conclui que é preciso distinguir o sintoma histérico clássico dos sintomas contemporâneos que se apresentam como acontecimento de corpo. Na chamada histeria rígida temos a prevalência do corpo em detrimento do discurso endereçado ao Outro. Lembremos que Lacan, inclusive, propôs a histeria como uma das quatro modalidades de discurso, pois, com sua estrutura discursiva, a histérica faz laço com o Outro. Isso nos permite dizer que a histeria vincula seu sintoma ao Outro.

O uso do sintoma como laço com o Outro, fazendo discurso, é o que não encontramos nos sintomas contemporâneos. Eles não utilizam a ferramenta do Nome-do-Pai para manifestarem a inscrição do sujeito na significação fálica advinda do Outro. Essa inscrição é o que permite a entrada do sujeito na lei simbólica que inscreve a falta, instituindo o recalque como o mecanismo privilegiado para lidar com a satisfação pulsional. Sem essa operação, a pulsão deverá encontrar outro destino. No sintoma histérico clássico, o destino é o recalcamento inconsciente. Nos sintomas contemporâneos o destino é o corpo. Nos sintomas atuais, também chamados novos sintomas, o gozo se manifesta no corpo, muitas vezes como excesso, ultrapassando os limites que o princípio do prazer estabelece.

O recalcamento inconsciente era um destino que privilegiava o laço com o Outro em consonância com a moral da civilização, preconizadora da renúncia à satisfação. Na ausência do mecanismo subjetivo do recalque para dar um destino à pulsão, como nos ensinou Freud, a civilização recorre a novas tentativas de impor um limite a essas manifestações sintomáticas que atestam uma satisfação pulsional direta e sem limites. Visando barrar os excessos, a tendência de nossa civilização é fazer incidir a norma, além de formular novas políticas e criar novas instituições na tentativa de educar a pulsão.

No presente artigo, consideraremos os sintomas dos adolescentes em conflito com a lei, tomando o paradigma do sintoma como acontecimento de corpo. Interessa-nos discutir as contribuições da psicanálise de orientação lacaniana nas políticas públicas de atenção a esses adolescentes, especialmente, as instituições socioeducativas.

Em suas atuações, esses adolescentes apresentam em seus corpos a desinserção com as diversas instâncias encarregadas de civilizar a pulsão. Pode-se considerar a desinserção como uma forma de pensar o sintoma como acontecimento de corpo: um corpo desinserido, não somente dos limites da lei social, mas da lei do desejo, pois a metáfora paterna é o que permitiria atribuir significação fálica às coisas, inscrevendo o desejo do Outro como lei. Ressaltamos que não fazer uso da metáfora paterna não equivale à sua foraclusão, como acontece nas psicoses.

Nos adolescentes em conflito com a lei, a satisfação da pulsão de forma direta se manifesta nos corpos como violência e agressividade, trazendo consequência direta no campo social. Para conter esses acontecimentos que, na maioria das vezes, se traduzem em atos violentos, várias instituições são criadas com o objetivo de incluir o que se apresenta como segregado. Por isso, as políticas dirigidas a esses adolescentes são pensadas e formuladas seguindo o ideal da inclusão, como desenvolveremos na sequência.

Os corpos desinseridos dos adolescentes em conflito com a lei e o ideal da inclusão

Com o processo de democratização que se iniciou no país, no final dos anos 1980, passou-se a considerar os direitos de cidadania para os brasileiros. A Constituição de 1988 estabeleceu a gênese de uma nova concepção de políticas públicas: estas deveriam levar em conta a inclusão social em suas diferentes formas. Nesse contexto, a ação do estado deveria estar orientada pela perspectiva da universalização do acesso aos serviços, incluindo os diversos extratos da população, com programas específicos para os mais vulneráveis ou em situações de risco. Cada uma das políticas - saúde, educação, justiça e assistência – formulou legislações próprias com o objetivo de orientar as diretrizes para a execução das novas propostas. Considerando a vulnerabilidade que acomete grande parte da infância e adolescência no Brasil, a Constituição brasileira preconizou que:

 

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Artigo 227 da Constituição Federal).

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) regulamentou esse artigo, estabelecendo os direitos fundamentais para crianças e adolescentes. Esses direitos começaram a ser discutidos após a Segunda Guerra Mundial, o que culminou na ratificação, pelos países ocidentais, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948.

De acordo com Ferrari e Gontijo Salum (2009), a Declaração tem como fundamento a concepção de que é preciso haver um esforço coletivo na busca pelo respeito, pela liberdade e pela igualdade, princípios que a fundamentam. Ela parte da constatação de que na sociedade há algo que fica à margem, por isso é necessário um esforço para a promoção dos direitos que deveriam ser de todos. A universalização dos direitos humanos, de certa forma, declara que a humanidade, em sociedade, segrega algo que precisa ser incluído. Por isso, a política de inclusão tornou-se o paradigma para a busca dos direitos e da cidadania.

Em discussões, em Belo Horizonte, com a Rede de Atendimento à Criança e ao Adolescente – representantes do Conselho Tutelar, do Juizado da Infância e Juventude, Saúde, Assistência Social, Educação, Defesa Social e outros - verificamos que alguns adolescentes circulam nas mais diversas instituições desde a infância, com queixas e denúncias recorrentes. Estes são os adolescentes considerados de risco social – um dos alvos das políticas de assistência. Grande parte dos que percorrem as políticas assistenciais, ao cometerem atos infracionais, passam a ser atendidos pelas políticas especiais, instância onde se executam as medidas socioeducativas. Quando isso acontece, tem-se a impressão de que as intervenções realizadas não provocaram nenhuma retificação na situação. Isso leva os técnicos que se ocupam dessas crianças e adolescentes, bem como de suas famílias, a uma posição de impotência. São os casos qualificados por eles como fracassados e que permanecem em situação de risco social (Gontijo Salum, 2009).

Longe de considerá-los exceções, constatamos que muitas dessas crianças acolhidas na rede de proteção, quando chegam à adolescência, migram das medidas protetivas para as medidas socioeducativas. Quer dizer, quando as intervenções das instituições encarregadas pela educação, saúde e assistência fracassam, os adolescentes encontram a justiça infanto-juvenil.

Segundo dados do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA – BH), a maioria dos adolescentes autores de ato infracional encontra-se entre as idades de 15 a 17 anos e grande parte deles evadiu da escola entre a 5ª e a 7ª séries. Ao praticar um ato infracional, o adolescente recebe uma medida socioeducativa determinada pelo juizado da infância e juventude. Na execução dessa medida são determinados alguns eixos de trabalho com o adolescente, a fim de promover sua inclusão social.

Talvez possamos estabelecer um paralelo entre as dificuldades enfrentadas pelos socioeducadores com os adolescentes no cumprimento das medidas socioeducativas e os professores nas escolas. Embora seja uma sanção a um ato infracional praticado pelo adolescente, a medida tem, também, a finalidade educativa. A medida socioeducativa parte da premissa de que é necessário oferecer determinados instrumentos de socialização, sobretudo a escolarização, para que o adolescente possa ser incluído na sociedade, possibilitando a ruptura com a criminalidade.

Nos Centros Socioeducativos é possível localizar, no histórico dos adolescentes, uma trajetória escolar de dificuldades de inclusão devido aos seguintes problemas: agressividade, agitação, isolamento, sexualidade exacerbada, recusa ou contestação da autoridade, dentre outras formas de atuação. Sintomas da desinserção social que muitos tratam como comportamentos a serem eliminados. De forma distinta, em nossa perspectiva, buscar a inclusão dessas crianças e adolescentes passa, necessariamente, por incluir seus sintomas.

Jacques-Alain Miller (2009), no artigo “Sobre o desejo de inserção”, faz algumas considerações sobre a psicanálise aplicada levando em conta os quadros que ele nomeia de desconexão social ou desinserção. Quando consideramos a aplicação da psicanálise na assistência às crianças e aos adolescentes em situação de risco, as observações de Miller são de suma importância. Inicialmente, é preciso partir da seguinte distinção: estamos considerando o termo inclusão no sentido universal da política e inserção na perspectiva do sujeito. Miller observa que o desejo de inserção é fundamental no ser falante. De acordo com ele, o ser falante deseja inserir-se, apontando as relações intrínsecas entre o sujeito e o coletivo, uma das formas de considerarmos o que Lacan nomeou como Outro. As observações de Miller remetem à definição de Freud (1921) no texto “Psicologia de grupo e análise do eu”, no qual ele afirma que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, grupal.

Esses apontamentos são importantes porque, como Miller (2009) ressalta, a aplicação da psicanálise nesses contextos de política pública não se fazia presente para Freud e Lacan. A aplicação da psicanálise tornou-se uma questão para nós, praticantes no Século XXI. Miller, então, convoca os psicanalistas de orientação lacaniana para formularem respostas para os sintomas que aparecem no coletivo.

Sabemos que vários praticantes trabalharam com a clínica psicanalítica nas instituições há tempos e isso era uma característica de vários psicanalistas conhecidos como pós-freudianos. Contudo, ao lermos suas experiências, observamos que eles faziam uma aplicação direta da clínica, equivalente, muitas vezes ao consultório. Nosso desafio, sobretudo, é intervir nas instituições buscando incidir no coletivo. Esse é o esforço de Miller para construir o que ele nomeia como uma pragmática da psicanálise, diversa da cura. Assim, para demonstrar esse esforço, gostaríamos de destacar duas iniciativas do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG).

A primeira iniciativa, a criação do Ateliê de Psicanálise Aplicada1. Ao ofertar o Ateliê como uma nova modalidade de trabalho, o IPSM-MG procurou promover um espaço para a elucidação da prática da psicanálise nas instituições, acolhendo as questões pertinentes ao trabalho desenvolvido pelos participantes, a partir da localização de um ponto de impasse para cada um no trabalho institucional, como podemos encontrar explicitado em seu projeto de apresentação. Por isso, as atividades do Ateliê foram desenvolvidas em torno do que se constituía como um real para cada um deles. Vários participantes, ao se dirigirem ao Ateliê, apostavam na possibilidade de saída de uma situação de impotência frente às normas institucionais.

O trabalho de Janaína Dornas (2013), diretora de atendimento de uma unidade socioeducativa de internação para adolescentes, nos mostra isso. Ela ressalta que sua questão, ao dirigir-se ao Ateliê, concernia à própria possibilidade do trabalho psicanalítico nas condições que ela encontrava. Ao final do Ateliê, ela destacou como a introdução do discurso analítico produziu efeitos importantes no aparato institucional; ele se intrometeu entre as “brechas” nos discursos dominantes. A partir do Ateliê, Janaína promoveu o dispositivo da Conversação com os agentes de segurança socioeducativos. A conversação se orientou em torno do que não ia bem e que insistia no âmbito da instituição, causando atuações as mais diversas, tanto dos adolescentes, quanto dos profissionais. Com a Conversação, o discurso da segurança, cristalizado pelo Procedimento Operacional Padrão (POP), pôde ser relativizado, dando abertura a um enigma: o que é ser socioeducativo, qual a função do agente no sistema socioeducativo.

Vamos a uma situação que aconteceu na Conversação coordenada por ela: um profissional serviu o jantar para os adolescentes; sobraram algumas marmitas que foram pedidas por eles. O funcionário, sem saber se o POP previa a autorização para servir o restante, resolveu não entregá-las. Em seu imaginário, ficou pensando que os adolescentes poderiam achar que ele as comeria. Então, voltou e jogou-as fora na frente dos adolescentes.

Ao final da Conversação sobre esse episódio, Janaína conseguiu destacar que: “a instituição pode ter a regra instituída, os procedimentos padrões e seu regimento, mas o que aparece na conversa, a partir das soluções e ideias compartilhadas é um saber que está do lado dos profissionais” (2013). Quer dizer, não a anomia da regra, mas a possibilidade de surgimento do desejo. Esse projeto, inicialmente piloto, hoje faz parte das atividades de extensão e pesquisa do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (NIPSE) da Faculdade de Educação da UFMG, coordenado por Ana Lydia Santiago.

A segunda iniciativa acontece no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSMMG, coordenado por Maria José Gontijo Salum. Trata-se da Entrevista de Orientação Psicanalítica com Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa. Inspirada na “apresentação de pacientes”, a entrevista com adolescentes é, também, uma tentativa de construir uma possibilidade para a psicanálise de orientação lacaniana intervir no coletivo. Para isso, são convidados para a entrevista os adolescentes que causam impasses na instituição. Ela é conduzida de forma que possam surgir efeitos para o sujeito e para a instituição, a partir da oferta da palavra. Sabemos que, em geral, os adolescentes encontram-se identificados por um significante que os aliena, submetidos a uma regra de ferro. O efeito da entrevista é nomeado como “o inusitado”, por Ana Lydia Santiago (2009), responsável pela condução da atividade. O inusitado é o que causa surpresa e vai permitir uma intervenção direta na situação do adolescente ou oferecer elementos para a instituição intervir.

Em nossa ultima entrevista, ao ser perguntado sobre o que o levou ao crime, o adolescente relata que foram três fatores: família, comunidade e embalo. Cada um desses fatores pôde ser destacado e verificou-se que eles eram mais uma tentativa do adolescente colocar um sentido a sua entrada na criminalidade. Esse sentido, geralmente, é ofertado pelo social e coloca quem recorre a ele numa posição de anomia em relação ao desejo. Com o adolescente entrevistado isso acontecia; a anomia exclui qualquer responsabilidade concernente à causalidade psíquica.

No decorrer da entrevista, foi possível localizar no objeto olhar, sua entrada no crime. Ele enuncia: “Em cima da minha casa já era uma boca de fumo... todo dia você já sai e vê a mesma coisa, sai e vê a mesma coisa, sempre a mesma coisa, nunca que vê nada diferente... , o dia inteiro os caras lá..., bolso cheio de dinheiro, mulher, carro, moto, aí você já espia ali...” A visão do homem com o bolso cheio de dinheiro, com carro, moto e mulher captou o olhar do jovem que entrou para o tráfico e, posteriormente, passou a assaltar casas lotéricas tornando-se o “menino do dinheiro”.

Esse adolescente estava cometendo uma série de atuações na instituição e se angustiava diante de sua divisão entre continuar na prática de atos infracionais, ou não. Na entrevista, ele racionaliza que poderia ser pedreiro como o pai, ou padeiro como um conhecido com quem já trabalhara antes da prática de atos infracionais. A entrevistadora ressalta que estava claro que esses dois trabalhos não tinham nada a ver com ele. Posteriormente, ele conta sua identificação infantil com um bombeiro que ele viu num filme.

Um mês após a atividade da entrevista, retornamos à instituição para recolher seus efeitos. Nessa ocasião, fomos informados que o adolescente havia começado a trabalhar, era ele quem lavava os carros da Unidade. Além disso, a instituição estava viabilizando um curso de brigadista de incêndios para ele. Em notícias mais recentes, numa atividade no Núcleo de Psicanálise e Direito, soubemos que ele está em processo de desligamento da Unidade de Internação.

Não podemos atestar resultados em longo prazo, contudo, indubitavelmente, esse adolescente pôde demonstrar para a equipe uma mudança em sua posição subjetiva e isso norteou a conclusão de sua medida socioeducativa. Podemos apostar que a abertura para a palavra promoveu uma retificação na posição subjetiva do adolescente na unidade, e isso permitiu que os profissionais retificassem o olhar que lançavam sobre ele: o bandido, o menino do dinheiro.

Essas duas experiências nos permitem localizar pontos de contribuição da psicanálise nos impasses encontrados pelas políticas de atenção ao adolescente em conflito com a lei. Elas ilustram momentos de fracasso do universal que o ideal institucional preconiza. Nas duas vinhetas práticas, podemos localizar, de formas distintas, exemplos da intrusão da psicanálise nas instituições. As duas experiências nos permitem demonstrar como o impasse na instituição pode ser a via aberta no ideal para que a psicanálise possa se intrometer, possibilitando o aparecimento de um desejo não anônimo. O desejo, sempre do Outro, é o que permite a inserção do sujeito, tanto com o corpo, como com o outro social.


Nota

 
  1. O IPSM-MG editou no ano de 2013 uma publicação sobre o trabalho realizado no Ateliê de Psicanálise Aplicada, como se pode ver nas referências bibliográficas abaixo. Trata-se de uma importante contribuição para o trabalho da psicanálise nas instituições.


Referências bibliográficas

Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental (2013) Edição especial: A prática da psicanálise nas instituições: o que o Ateliê ensina. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Scriptum.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial [da] União, Poder Legislativo, Brasília, n. 191-A, 05 de out. 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
COELHO DOS SANTOS, T. & GONTIJO SALUM, M. J. (2009) Criminalidade e violência: contribuições atuais da Psicanálise à criminologia. Revista de Psicologia Plural. Belo Horizonte/Minas Gerais: Fumec, v.1, p.13-27.
DORNAS, J.A.S. (2013) Não recuar diante do trabalho nas instituições, in Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. A prática da psicanálise nas instituições: o que o Ateliê nos ensina. Mezêncio, M. (org.). Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2013, p. 31-32.
FERRARI, I.F. & GONTIJO SALUM, M.J. Sociedade Inclusiva e psicanálise: do para todos ao cada um. In: Avanços e desafios na construção de uma sociedade inclusiva. CORRÊA, R. M.(org) Belo Horizonte: Editora Puc Minas, 2009. p. 37–49.
FREUD, S. (1921) “Psicologia de grupo e a analise do ego”, in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, Vol. XVIII, p. 89 – 179.
GONÇALVES, L.M.D. (1998) A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os sujeitos de direitos. Uma tentativa de manutenção do pacto civilizatório, in Opção Lacaniana, São Paulo, n.22, ago. 1998, p. 91-95.
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MILLER, Jacques-Alain. (2008) Sobre o desejo de inserção e outros temas (I), in Correio. São Paulo, n. 62, março / 2009, p.5-17.
aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus
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Resumos:

Deviant adolescents and their symptoms in correctional facilities

This article deals with the use of psychoanalysis in correctional facilities, and points out to a change in the manner in which symptoms present themselves nowadays. Symptom is presented as an event of the body, which in its deviant manner is the paradigm of the symptom of such adolescents. This new form of symptom is considered an obstacle to the fulfilling of the main goal of these facilities, which is social reinsertion. In the end, the article presents two cases that illustrate a possibility of contribution from Lacan oriented psychoanalysis to society.

Key-words: deviant adolescent, social deviance, symptom, applied psychoanalysis.

Les adolescents deviants et leurs symptômes dans les établissements correctionnels

Le document examine l'application de la psychanalyse dans les institutions qui s'occupent des adolescents en conflit avec la loi, de trouver un changement dans la façon dont le symptôme se présente aujourd'hui. Il convient de noter le symptôme comme un événement du corps, proposant le corps détaché comme le paradigme des symptômes de ces adolescents. Il est considéré que cette nouvelle forme de symptôme fait obstacle à l'exécution de l'inclusion sociale institutionnelle idéale. Enfin, le document présente deux vignettes pour illustrer une possibilité concrète de la contribution de la psychanalyse lacanienne dans le collectif.

Mots-clés: adolescent en conflit avec la loi, deviance, symptom, psychanalyse appliquée.

 

Citacão/Citation: GONTIJO SALUM, M. J.; SANTIAGO, A.L. Os adolescentes desinseridos e seus sintomas nas instituições socioeducativas. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 08/06/2012 / 06/08/2012.

Aceito/Accepted: 10/06/2012 / 06/10/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.