Introdução
O trabalho da adolescência é também o tempo de atualização do infantil, incluindo-se, aí, a pergunta sobre o desejo do Outro, a escolha de objeto, a reedição edipiana. E a infância reveste o infantil, dá a ela seu colorido. A infância, nesse sentido, pode ser lida como a ficção construída por cada um face ao infantil.
Ao iniciar o tratamento2 com a analista, o adolescente em questão diz que não sabe nada da sua infância. Ele localiza um tempo sem passagem, instantâneo, imagético, mas que produz uma ruptura, localizada por ele no dito “deixei de ser criança”, marcando - em uma cena - o fim da infância. Os elementos da cena que se apresenta como traumática inclui o encontro com um grupo rival, tiros, o corpo do primo no chão, a correria, a ambulância, a polícia, a família. Ele diz: “não podia fazer nada, eram mais e mais fortes que eu”. Nesse contexto, apresenta-se a citação da tia que ressoa: “sua mãe tem você para dar presente no aniversário. Eu agora não tenho mais meu filho”. O que lhe veio à cabeça como resposta e determinação: “queria que o outro visse o que ele viu”.
Ele, devoto da mãe, vai construindo o que sabe dizer de sua infância, traz aspectos do infantil. O pai, em um certo exílio, ia e vinha. Aparecia, desaparecia. A mãe: “mãe é mãe”.
Que Outro a transferência instala?
Em seu primeiro encontro com a analista, o jovem diz que veio para o serviço de psicologia porque se interessa pela faculdade, pelos médicos, e que estas são as pessoas que curam, que salvam, que ofertam remédios. Diz também que veio porque o escolheram. A analista acolhe o adolescente. Diz que não sabia que ele havia sido escolhido e que entendia que havia sido feito um convite aos adolescentes, face ao qual eles poderiam vir - ou não - para participar dos atendimentos oferecidos pelo serviço de psicologia da Universidade. O adolescente diz que optou por vir, pois, “queria estar fora da instituição”, “queria sair da vida de ilusão que é o tráfico”, e a proposta era condizente com ele que vinha “adotando um bom comportamento porque, assim, sairia mais rápido da internação”.
Nesse amontoado de falas prontas, a analista demarca o espaço clínico para além do cumprimento da medida socioeducativa. Intervenção essa que teve como proposta fazer vacilar o discurso desse jovem direcionado “para o Outro da Justiça”, ofertando, assim, um espaço diferenciado.
O que traumatiza, fixa
O adolescente utiliza o significante “privado” ao se referir à sua escolha pelo crime na ocasião de seus nove anos de idade: “sempre estive privado”. Vingança? Afirma que decidiu pelo crime para vingar a morte do primo. Mas, acrescenta: “entrei no crime para que o outro visse o que eu vi”. Seu tempo de criança acabou aos nove anos, quando seu primo, não envolvido com o tráfico, foi morto por alguns traficantes do bairro no contexto da “guerra”. Quando o primo foi assassinado, ele estava junto. Eram muito amigos. Na ocasião, correu. Ao retornar, encontrou o primo deitado no chão. A analista pergunta se havia algo que ele poderia ter feito. Ele diz: “Não havia o que fazer. Eram mais e mais fortes do que eu.” Foi chegando gente, família, polícia, ambulância. A tia falou: “sua mãe tem você para dar presente, eu não tenho mais meu filho”.
Em uma primeira leitura, ficamos inclinados a pensar que a frase “eu queria que o outro visse o que eu vi” e a sua escolha forçada pelo crime vem como uma resposta direta (sem elaboração) ao aparecimento/desaparecimento radical do primo. Diante do impossível de nomear que a morte de seu primo encerra, a trajetória infracional deste jovem apresenta-se como resposta privilegiada. Uma resposta antecipada diante do impossível de suportar. O desamparo e o posicionamento deste adolescente (assumido perante o Outro) apresenta os efeitos do traumático quando a simbolização não é possível. Onde falta a simbolização, o mandato do Outro pode se apresentar como dívida a ser sanada, destino a ser seguido.
Foi em relação ao campo do Outro, aos objetos que aparecem e desaparecem e às referências construídas para nos havermos com o desamparo, que Freud apresentou o famoso jogo do Fort-da, conhecido também como a brincadeira do aparecimento-desaparecimento. Esta atividade lúdica é relacionada com uma grande aquisição cultural da criança exatamente por ser uma atividade que permite a partida do outro. Essa tentativa de elaboração realizada pela criança é articulada por Freud à dimensão do traumático. O tratamento do traumático, que insiste na repetição, é dado pela atividade lúdica, possibilitando alguma simbolização:
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“[...] ao passar da passividade vivida naquela experiência para a atividade da brincadeira, a criança inflige a um companheiro de brincadeira todo o evento desagradável que aconteceu com ela mesma, e assim se vinga da pessoa que está fazendo o papel do substituto” (Freud, 1920, p. 143). |
Numa segunda leitura da referida cena, que ganha valor traumático de fixação do gozo, podemos nos perguntar se, em sua fala, ele aparece como aquele que priva a tia do primo e/ou, ao mesmo tempo, como aquele que é “privado” (do primo)? Ou ainda, nos perguntamos, se a cena não retorna regressiva e especularmente para ele, fazendo dele o morto, o privado da vida. Nesse sentido, o enunciado “vingar a morte do primo” retorna especularmente sobre ele, como resposta invertida ao desejo do Outro, já que a vingança recai sobre ele mesmo.
Assim, levantamos a hipótese acerca do destino do infantil para essa criança: a dimensão pulsiocante “privado”. Temos, assim, alguns elementos discursivos que formam a sua construção-representação sobre o que o impulsiona e que define, para ele, uma certa causalidade de sua “resposta criminógena”: entrar no tráfico para vingar a morte do primo é o discurso pronto que se sobrepõe ao jogo de vivo-mortnal parece ter ganhado um enquadre, fixando-se na cena do crime através desse signifio que acaba por privá-lo de outras soluções.
Por sua vez, a presença do significante “privado” vem apontar o equívoco do sentido representativo na medida em que cinge, enquadra, amarra a sua resposta subjetiva. Esse significante e o enquadre pulsional aí demarcados podem ser verificados no contexto de outra cena: o primo que aparecia e desaparecia entrando e saindo do armário, o pai que ia e vinha. De forma traumática, a cena parece agenciar, na resposta, um tratamento do real do pai, sua dimensão inefável, impossível de ser simbolizada no Édipo, que a adolescência retoma como resto da infância3 a ser tratado. Na medida em que a cena vivenciada por este adolescente o leva uma resposta-repetição e a uma decisão, nos perguntamos: o que aí insiste?
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“Não há dúvida de que uma etiologia do tipo traumática oferece, de longe, o campo mais favorável para a análise. Somente quando um caso é predominantemente traumático é que a análise alcançará sucesso em realizar aquilo que é tão superlativamente capaz de fazer, apenas então ela conseguirá [...] substituir uma solução correta à decisão inadequada tomada em sua vida primitiva” (Freud, 1937, p. 236). |
Nessa citação interessa-nos especialmente a expressão “decisão inadequada”, assinalada por Freud a partir da perspectiva da substituição realizada pelo paciente: a solução correta no lugar da decisão inadequada que o traumático precipita. Essa citação de Freud poderia nos conduzir a pensar que haveria uma ortopedia social com o tratamento psicanalítico. Entretanto, entendemos que o psicanalista, nessa afirmação, abre outra via: a que assinala a possibilidade do sujeito reorientar seu ponto de gozo, demarcado pela opacidade do traumático, fazendo barreira ao gozo, a partir da resposta desejante que pode circunscrever uma outra trajetória pulsional, outra forma de obter satisfação – nesse caso, sem o risco de morte. Isso porque o trabalho de reedição do traumático pode sofrer por parte do analisante uma releitura, possibilitada por um contorno simbólico. Dessa feita, verificamos que, como Freud prevê, um fato real adquire uma dimensão traumática não por sua força ou violência, mas pela impossibilidade de uma transcrição psíquica.
Ora, o adolescente relata um processo de encerramento radical e peremptório, drástico, da infância, cujos traços ele sequer se relembra. Aos moldes daquilo que arrasa e não deixa traço atrás de si parece-nos haver aqui uma ruptura sem escrita, uma experiência traumática. Vejamos, agora em um segundo momento, como o caso pode nos auxiliar novamente a pensar o traumático.
Em Freud, podemos localizar o traumático a partir da referência ao sexual e seu correlato indizível. O real pode ser articulado como o sexual na medida em que porta o sem sentido, o excedente ao campo da significação, sendo, portanto, referente ao que não se presta à representação. Na obra freudiana o conceito de trauma ou traumático vai sofrendo variadas modificações. Mas, podemos verificar que o indizível e o intratável possibilitam ler os nomes do traumático em Freud, referido à sexualidade, à morte e à castração.
Freud irá dedicar (1915) muitas considerações acerca de “nossa atitude para com a morte”. A morte é um dos nomes do traumático na medida em que não pode ser representada no inconsciente (a morte de si), em que está contida na gama dos desejos inconscientes (a morte do outro) e que exige manobras psíquicas cujo objetivo é dar um contorno a isso que resta insondável. Dessa feita, Freud adverte: “Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente suprimimos?” (Freud, 1915, p. 309).
O trauma não é a realidade, mas vincula-se a um efeito de surpresa no psiquismo que pode se conjugar à realidade psíquica e produzir um tipo de resposta em ato, ou um sintoma. No caso desse jovem, nossa hipótese é a de que, com seus atos infratores, ele consegue reeditar a repetição do fracasso no campo eleito da criminalidade, em face de sua proposta de vingar a morte do primo. Essa repetição pode ser investigada a partir da referência ao traumático - no sentido de uma reedição, de uma atualização - visto que aí, na repetição do fracasso, apresenta-se um modo de satisfação pulsional que se articula ao significante “privado”. Trauma e insatisfação se entrelaçam nesse modo de satisfação da pulsão.
O adolescente, na representatividade dada à sua escolha pelo crime, parece emitir uma “formação de juízo”. Esse termo freudiano acompanha outra referência que nos parece, aqui, salutar: “estado do desejo da coisa”4 (Freud, 1895, p. 439). A partir desses dois termos, Freud situa a fundamental discrepância entre o processo de pensamento, exercido pela organização da consciência - e que visa conjugar as catexias parciais - e as informações provenientes do próprio corpo. O que marca essa discrepância é a expressão “coincidência parcial” em sua função de conectar o corpo e as catexias na construção do pensamento, da atividade da consciência, em face de um acontecimento. A resultante desse processo é descrita, por Freud, da seguinte maneira:
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“Em consequência, os processos perceptuais se dividem em uma parte constante e incompreendida – a coisa – e outra variável, compreensível – os atributos e movimentos da coisa. Como o complexo-coisa continua reaparecendo em combinação com uma série de complexos-atributo, e estes, por sua vez, em combinação com uma série de complexos-coisa, surge a possibilidade de se elaborarem vias de pensamento que liguem esses dois tipos de complexos ao estado do desejo da coisa, (e de fazê-lo) de uma maneira que seja, por assim dizer, genericamente válida e independente da percepção que é real num dado momento” (Freud, 1895, p. 439) |
Freud assinala que o erro acompanha o espectro da formação de juízo. Ou seja, tem-se a existência de complexos perceptuais desordenados e, por sua vez, pode se dar a organização desses elementos no campo da significação. Entremeios a essa significação, a produção de sentido que conjuga a coisa e seu atributo não exclui a não-identidade entre uma e outro. Diz-nos Freud: “O complexo-coisa e o complexo-movimento nunca são totalmente idênticos” (Freud, 1895, p. 440), demarcando, assim, a incompatibilidade em termos de unicidade significantizada.
Na linha freudiana, o traumático não é o trágico, o dramático ou o violento. O traumático pode ser algo mínimo. Sua principal característica é ser da ordem do inesperado, do encontro perturbador, fora do sentido. Algo que é inassimilável. E que, portanto, insiste.
As questões centrais do caso: impasses para prosseguir
1. Um pouco de teoria: Édipo e castração
Ao tratar do naufrágio do Édipo infantil, Freud (1924) assevera que é a “ameaça de castração o que ocasiona a destruição da organização genital fálica da criança” (p.219), antecedida por duas experiências de perda de objeto: a do seio e a das fazes, oral e anal - respectivamente. Porém é “somente quando uma nova experiência lhe surge no caminho, que a criança começa a avaliar a possibilidade de ser castrada” (p. 220), assim a ameaça da castração ganha seu efeito adiado. O que não é sem efeitos no caso aqui discutido.
Do conflito que se instala, então, entre seu interesse narcísico pelo falo e a catexia libidinal dos objetos parentais, a criança volta as costas para o amor edípico.
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“As catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto” (Freud, 1924, p. 221). |
Dessa operação, as tendências libidinais são dessexualizadas e sublimadas ou transformadas em impulsos de afeição, preservando o órgão genital e paralisando-o, com a entrada no período de latência. Freud chega a equivaler esse processo ao recalque, mas admite ser um processo maior que ele, pois equivale a uma “destruição e abolição do complexo” (p. 221), traduzido melhor por naufrágio, chegando a uma linha fronteiriça entre o normal e o patológico.
Depois que ele entrou no crime nunca mais saiu. Quer sair. Mas, não é simples. Não é simples dizer não. Dizer não, para esse jovem, tem a dimensão de um consentimento com o desejo. No tráfico as coisas são complicadas: tem o comandante. E, muitas vezes, se disser “não”, vai ser morto, punido. Mas também entende que, se não sair do crime, vai acontecer o que sempre acontece: “cadeia, caixão, cadeira de rodas”. Não quer isso. Conhece apenas esses dois mundos.
É a segunda internação. Foram quatro anos internado. Lá dentro está protegido, mas privado. Lá fora “tem um tanto de coisa”. Se sair, não sabe se agüenta não continuar no tráfico. Difícil falar não.
Importante localizar a divisão que o jovem já de início demarca. Divisão essa que acompanha o que ele qualifica como “uma grande dificuldade de dizer não”. Não por acaso, o não aparece em seu discurso quando, na infância, deixa a mãe esperando para ir jogar futebol... É um não que consente com certa separação do Outro, a partir da qual uma causa se instala na relação com o desejo, tornada, então, possível. Mas “as coisas não estão claras”, diz ele. Algo o embaraça quanto à posição desejante. Por outro lado, algo é minimamente demarcado: o contexto dessa escolha forçada pelo crime e suas consequências.
3. Inscrição no Outro e a entrada no crime
Diz também que não tem registro de si antes da entrada no crime. Em relação à vida familiar, o adolescente diz à analista que não sabe nada do pai. Sabe apenas que ele morreu de cirrose. Fala que seu bairro é o que nomeia o Centro de Internação no qual se encontra. Ou seja, o jovem aparece aí identificado ao criminoso, alienado à instituição. Nesse sentido, nos perguntamos: a vida dele ganha registro no Outro apenas quando ele entra para o crime?
Retomando os significantes “privado–escolhido” perguntamo-nos sobre a sua posição face ao Outro: aquele que salva é quem vinga? – a vingança pela morte que se configura aí como uma vingança fracassada? Atuar como criminoso, atualiza a fixação pulsional? Ele fracassa para ser privado? É o ponto do impossível que aparece na repetição: a morte do primo, o impossível de recuperar Ele é “escolhido” pelo percurso criminal intenso e também para fazer justiça à morte do primo. Ele faz uma formulação sobre seu ser – “che vuoi?” – a partir dessa resposta invertida à demanda do Outro?
A partir dessas articulações iniciais, ficamos inclinadas a pensar que, na cena da morte do primo, ele produziu um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir sua passagem adolescente: sou “privado”, congelando diferentes significações sobre seu ser e o impelindo ao crime.
4. Aquele que é sujo tem direito ao amor?
Um cisne de papel e a impossibilidade de dar o presente para a mãe. A analista marcar a castração dizendo a ele que às vezes é difícil mesmo, que nem sempre dá para atender ao que o outro espera. A mãe e o irmão revezam, semanalmente, as visitas.
Ele que tem que respeitar as normas da instituição para poder sair. Na instituição, não tem voz. Tem que pagar. Quer sair. O crime é sujo. A analista pontua. Diz que é muita sujeira: roubo, morte, droga. Quer casar, ter filho, ensinar uma vida melhor. Certa vez, um cara foi comprar a droga e deu em troca duas alianças. O crime é sujo. A noiva dele foi lá. Ele devolveu a aliança para ela. Impôs uma condição: que ela terminasse o namoro. Ela terminou. Ficou feliz com outro cara. A analista diz: “É sujo, tem uma sujeira aí. Como faz com isso que é sujo?”.
Ele diz que vai jogar tudo fora, essa sujeira toda. Vai jogar fora. É dada a sujeira um lugar de destaque na medida em que ele sempre esteve envolvido com ela. Isso porque ora o jovem diz de seu envolvimento, ora de como limpa a sujeira do outro (retomo o caso que ele relata). A analista pontua que essa sujeira tem importância e que ele começou a falar dela.
Do sujeito em questão: Os recursos socioeducativos e o trabalho clínico da adolescência
O adolescente diz que se lembra que, quando era criança, gostava de futebol. Montava as traves do gol. A mãe chamava para o almoço, mas ele não ia. Sabia que tinha que ir, mas não ia. Gostava tanto do futebol que até deixava a mãe esperando, dizia que não. Hoje não diz não para a mãe, nem para o patrão. Esse jovem sempre tinha que atender a mãe, pois para mãe não se diz não. Mas, na hora do futebol, ele falava: “agora não”. A analista retoma com ele a questão anteriormente assinalada: “não sei dizer não”. Ou seja, há outra forma de tratar a demanda do Outro, que não se alienando ou tendo que responder prontamente a ela.
Temos aqui, no lugar da ação do Nome-do-Pai, uma indicação da mãe quando ela assinala o caminho para o sujeito seguir? Nesse sentido, não faltaria uma saída dialética para o sujeito, regulado pelo capricho da mãe? A intervenção consistiu em um assentimento do sujeito quanto à possibilidade de dizer não! Não, ao capricho materno. Entende-se que essa perspectiva pode abrir um campo de dialetização ao desejo materno. Seria essa dialetização um índice para o tratamento desses jovens? Ao capricho materno, o desejo do analista? É uma operação que concerne o analista como Outro, mas que o analista encarna sobre a forma de causa do desejo. Ou seja, se o sujeito vai sempre tender à repetição: alienação ao desejo/capricho do outro materno, o analista responde perguntando pelo desejo, pois é o desejo que faz barra ao gozo.
O jovem afirma que o futebol tem para ele as “coisas da infância”. Pode-se ler que o futebol está associado ao desejo, diferentemente do tráfico, que parece associar-se à obrigação superegóica? Será que podemos hipotetizar que, com a morte do primo aos nove anos, houve uma interrupção “precoce” da infância com a instalação de uma obrigação de fazer vingança? Como se tivesse assumido ali, na cena da morte do primo, um compromisso inadiável que o instalou fora da infância bruscamente, sem o tempo da moratória, tempo de compreender, que a adolescência implica?
Como a presença intermitente do pai contribuiu para isso? O que havia antes dessa cena, seja em relação ao seu envolvimento com o crime, seja em relação à infância? Não era com esse primo que brincava, com quem era criança? O que se perdeu com a morte dele? O que restou irrecuperável?
Classicamente, freudianamente, o Édipo, nos meninos, naufraga quando, diante da angústia de castração, o menino opta narcisicamente pelo falo em detrimento do amor materno, identificando-se com o pai, identificação masculina. Aqui temos uma precipitação de conclusão diante da morte do primo, em relação à qual ele se culpabiliza/se responsabiliza. Um corte, se não antecipado, ao menos abrupto, antecipando uma conclusão sobre quem ele deve ser, congelado nesse significante “privado”.
E, na ausência do pai, ou melhor, no ir e vir do pai, parece não lhe restar um traço com o qual se identificar, tal como nos incita a pensar sua fala quando diz não saber muito de si e não saber nada do pai, não ter registro de nada “antes da entrada no crime”.
Em seu relato, no decorrer dos atendimentos, outra versão do pai aparece: “Tem meu pai. Eu viajava com ele a trabalho. Não sei muito bem o que ele fazia. Acho que era marcenaria”. O jovem ficava com sua irmã e outras crianças brincando. Em relação ao pai, era assim, ele aparecia, desaparecia, e tinha também seu primo que se escondia no armário e saía. A analista intervém: “ele também aparecia e desaparecia”. Estava ali, mas não estava ali. Se a mãe não assinala um sim ou um não, o pai, por seu turno, comparece pela intermitência de uma presença pouco esclarecida. É como se ele ficasse, na infância, entre o sim e o não.
A “fixão” e o desejo que retraça uma história
O adolescente, porém, recupera que o futebol tem para ele as “coisas da infância” e que “as coisas da infância são importantes”. Em sua leitura, criança faz bagunça e não tem escolha. Faz o que tem que fazer. Aí revela sua posição face ao Outro. Entretanto, ele marca uma diferença entre o tráfico (obrigação/gozo) e o futebol (prazer/desejo) e introduz o significante “sub-adulto”, dialetizando sua solução antecipada, reintroduzindo o tempo de compreender e assinalando um sim orientador.
Ele se reenlaçava ao que se apresentara como traumático (a voz da tia que ressoa conjugada ao impossível da morte) produzindo uma interpretação sobre seu ser como objeto privado, destinado à mãe. Daí a importância da dialetização do desejo materno tal como ele interpreta. Isso não significa que aja de fato uma presença excessiva dessa mãe, mas, sim, um excesso de gozo acoplado à frase da tia, que permitiu a esse adolescente ler seu lugar, de forma invertida, no desejo do Outro. A análise, que permite reler o “futebol” em sua vida, parece estar reintroduzindo o tempo de compreender, do reenlace do infantil.
O adolescente fala das aulas que têm na instituição. Diz que gosta de história, português e biologia. Gosta de história porque diz do passado e do presente, de português porque aprende a escrever e a pontuar, e de biologia porque estuda o corpo. A analista pontua: “O passado e o presente – a pontuação e o corpo lhe interessam. Parecem mesmo coisas importantes”.
Ele desenha no ar os termos de pontuação da língua portuguesa que conhece, a interrogação e a exclamação, e fala que conhece a vírgula, desenha o travessão, os dois pontos e o ponto e vírgula. Fala que fica na dúvida em relação a quem pontua. O ECA pontua que adolescente fica só três anos internado. E ele, fica na dúvida sobre quem pontua. No total, está há quatro anos internado.
Encaminhamentos
No campo socioeducativo o futebol foi um primeiro referente que, conjugado ao trabalho clínico, possibilitou a esse adolescente o trabalho de dialetização de seu lugar no desejo do Outro. Depois, ele pôde fazer uso dos recursos simbólicos apreendidos na sala de aula e localizar na vida a forma como vinha pontuando a sua história.
Outra articulação fundamental foi o curso de culinária que este jovem começou a frequentar. Foi a partir dessa nova inserção que ele começa a falar das formas de fazer e dos usos das coisas. Ele diz à analista: “você sabia que tem 100 maneiras de cortar uma batata? A gente acha que é só uma, mas são várias as formas. É como lá em casa ou na internação: tem as coisas. São as mesmas. Eu é que estou diferente”. Ou, ainda: “existe na culinária algo que se chama “contaminação cruzada”. Ou seja: quando mistura, contamina”.
Esse adolescente vai, assim, temperando a sua forma de lidar consigo mesmo e com o outro. Localizamos que foi dado um tratamento ao Outro que insurgia como mestre tirânico, impossibilitando ao novo advir. Esse adolescente, atualmente, fala que se descobriu “curioso”. Que antes não podia saber. Agora, pode saber. Ele estava aprisionado no circuito pulsional que girava em torno de um ponto traumático que não lhe permitia modalizar o seu lugar de sujeito. A partir do momento em que o traumático vem sendo tratado, esse jovem pode começar a querer saber algo do seu desejo.
Notas
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- Este texto vincula-se ao projeto de extensão do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais - Projeto “Já é” -, coordenado pela professora Andréia Guerra em parceria com a SUASE – Superintendência de medidas socioeducativas de Minas Gerais. Articula-se também à pesquisa de doutoramento de Aline Bemfica, junto ao Programa de Pós-graduação em teoria psicanalítica/UFRJ – bolsista da Capes, sob orientação da Professora Tania Coelho dos Santos.
- O adolescente foi convidado a participar do projeto de extensão acima citado.
- A esse respeito ver Cristina Nogueira, dissertação de mestrado -“A questão do pai para o adolescente infrator e os impasses na transmissão do desejo”, UFMG, 2006.
- A esse respeito ver Parte III, “Tentativa de representar os processos psíquicos normais”, em “Projeto para uma psicologia científica” – Esquema Geral. P. 347 (1895). Vol. I. Publicações pré analíticas e esboços inéditos.
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Referências bibliográficas
FREUD, S. (1895). Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos, in Obras completas de Sigmund Freud. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de janeiro: Imago, vol. I, p. 420-420.
FREUD, S. (1915). A história do movimento psicanalítico, in Obras completas de Sigmund Freud. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de janeiro: Imago, vol. XIV , p. 285-312
FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer, in Obras completas de Sigmund Freud. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de janeiro: Imago, vol. XVIII, p. 13-75.
FREUD, S. (FREUD, S (1924). A dissolução do complexo de Édipo, in Obras completas de Sigmund Freud. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de janeiro: Imago, vol. XIX, p. 213-224.
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável, in Obras completas de Sigmund Freud. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de janeiro: Imago, vol. XXIII, p. 225-270.
LACAN, J. (1963-64). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Resumos:
Childhood trauma and adolescent changes: background for an offense
From a clinical case of teenager in fulfillment of a custodial sentence due to an infraction committed, we propose to discuss the participation of childishness and and trauma in adolescent construction, compared to the encounter with the real of puberty. We start from psychoanalytic theory and references to trauma, the Oedipus complex and the embarrassment of not knowing how to do with the actual sexual in logical adolescent time passage. We note, from the clinical discussion of the case, as the subjective position of the teen might be buoyed by the psychoanalytic work, which enabled another entry in the field of the Other, giving new meaning to their childhood experiences. Thus rearranging its position desiring through a dialectic organization of its of place object in the drive circuit.
Keywords: psychoanalysis, adolescence, trauma, Oedipus complex, offense.
Le trauma dans l’enfance et le passage adolescent: scenes d’une délinquance
D'un cas clinique d'une adolescente dans l'accomplissement d'une peine de prison en raison d'une infraction commise, nous proposons de discuter de l'incidence de l'enfantin et de traumatique dans la construction de l'adolescent, par rapport à la rencontre avec le reel de la puberté. Nous partons de la théorie psychanalytique et les références au traumatisme, le complexe d'Œdipe et l'embarras de ne pas savoir comment faire avec le sexuelle réelle en temps logique adolescent de passe. Nous notons, de la discussion clinique de l'affaire, que la position subjective de l'adolescent pourrait être soutenue par le travail psychanalytique, ce qui a permis une autre entrée dans le champ de l'Autre, ce qui donne un nouveau sens à leurs expériences de l'enfance. Réorganisation de leur position désirante à travers la dialectisation de sa place d'objet dans le circuit de La jouissance.
Mots-clés: psychanalyse, adolescence, traumatisme, complexe d'Œdipe, infraction.
Citacão/Citation: BEMFICA, A.; GUERRA, A.M.C. O traumático na infância e a passagem adolescente: cenas de uma infração, in Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 21/01/2012 / 01/21/2012.
Aceito/Accepted: 14/02/2012 / 02/14/2012.
Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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