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Sobre a avaliação pericial do psicótico infrator: contribuições da psicanálise de orientação lacaniana1

Romina Moreira de Magalhães Gomes
Psicanalista
Doutoranda em Psicologia, área de concentração em Estudos Psicanalíticos / UFMG (Minas Gerais, Brasil)
Psicóloga judicial do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do TJMG (Minas Gerais, Brasil)
Editora adjunta da Revista Responsabilidades
E-mail: rominagomes@hotmail.com


Resumo

Este artigo recupera a constituição da ordem social a partir da ideia de perigo atribuída ao psicótico infrator desde o início do século XIX. Esta ideia deu lugar às avaliações periciais e constituiu mecanismos de segregação. Retoma, a seguir, a tese de Lacan sobre a responsabilidade para leva-la às últimas consequências como um elemento fundamental que pode definir a humanidade do ser falante e que permite oferecer um contraponto aos dispositivos do biopoder. Para a autora, são estas contribuições lacanianas que permitem oferecer um modo de tratamento ao problema da segregação.

Palavras-chave: psicanálise, psicótico infrator, perícia, periculosidade, segregação, responsabilidade.

 

Questões iniciais

As questões que conduziram à escrita deste artigo surgiram a partir do encontro com os efeitos de segregação decorrentes da aplicação de medida judicial aos psicóticos infratores que acompanho em minha prática clínica realizada no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O público acompanhado por esse programa é objeto de uma forma de sanção penal específica que dispensou o conceito de responsabilidade penal. A aplicação dessa forma de sanção denominada medida de segurança fundamenta-se na avaliação da periculosidade, atributo que foi associado à psicose desde o início do século XIX e pode apontar à necessidade de se tomar medidas de precaução para diminuição do risco implicado na convivência com a loucura. O controle da periculosidade acontecia inicialmente por meio do isolamento definitivo do louco nos asilos. A partir da descoberta dos neurolépticos, os muros dos asilos se revelaram dispensáveis e o controle da periculosidade pôde passar a ser feito por meio do uso compulsório de medicamentos.

Os casos acompanhados pelo PAI-PJ mostram os efeitos acarretados pela infinitização da medida judicial que coloca os sujeitos no lugar de objeto da intervenção pericial. O uso de medicação é considerado imprescindível ao tratamento da psicose, de acordo com a concepção da psiquiatria forense, e dispensa as soluções singulares inventadas por cada sujeito para tratar seu sofrimento. O critério do uso compulsório de psicofármacos pode resultar na manutenção da medida sem um limite temporal, não se considerando as possíveis mudanças na relação do sujeito ao gozo.

A legislação brasileira traz a possibilidade de se colocar fim a essa medida judicial mediante o exame psiquiátrico de cessação de periculosidade. Entretanto, a lei não prevê um tempo máximo de duração da medida, deixando abertura para que o psicótico infrator permaneça ad vitam sob a custódia do poder público, em cumprimento da medida de segurança.

O surgimento do conceito de periculosidade, bem como das modalidades de controle dele decorrentes, se deu com o nascimento da psiquiatria criminal, disciplina que inventou também o procedimento do exame. Esse dispositivo disciplinar encarrega-se de apresentar ao aparelho judiciário o saber psiquiátrico sobre a periculosidade e propõe sua articulação aos mecanismos de controle. É uma forma de saber que se pretendia científico desde seus primórdios, mas não coincide com a formatação de um discurso propriamente científico, conforme mostrou Foucault (2001). Apesar disso, impôs-se ao campo judiciário e subsiste no mundo contemporâneo sob a forma da ideologia da avaliação, contribuindo para a demanda de submissão dos sujeitos aos dispositivos normalizadores.

O texto de Michel Foucault é o ponto de partida que nos permite recuperar como se deu a constituição do campo da avaliação pericial na psiquiatria. A partir das contribuições desse autor, é possível identificar um recuo da intervenção do judiciário no que se refere ao psicótico infrator, que permitiu a abertura do campo para intervenção dos peritos em psiquiatria criminal.

A partir da intervenção de Pinel e o surgimento da medicina mental na virada do século XVIII ao XIX, os loucos passaram a ser tomados como perigosos, por serem portadores de um déficit moral que os impossibilitaria de agir conforme os parâmetros da razão (Foucault, 2001; Barros-Brisset, 2009).

Os crimes cometidos por insanos sem nenhum motivo aparente e que iam contra a natureza humana, por isto considerados monstruosos e denominados crimes imotivados, não encontraram, no âmbito da razão, a possibilidade de serem compreendidos. Desse modo, o problema colocado pelo louco se distinguiu por seus crimes não oferecerem nenhum vínculo racional passível de reunir a transgressão das leis a um tipo de repressão, o que permitiria ajustar a punição ao crime. A solução encontrada, a partir do discurso psiquiátrico, foi submeter o louco ao tratamento, ao invés de torná-lo objeto de uma sanção, ainda que esse tratamento representasse também uma espécie de penalização. Entretanto, essa sanção só poderia subsistir de modo disfarçado, justificada pela racionalidade terapêutica (Castel, 1991).

Assim, no sistema contratual construído na modernidade, a repressão ao louco ganhou um fundamento médico-psiquiátrico em contraposição ao criminoso comum cuja repressão tinha fundamento imediatamente jurídico. O fundamento médico-psiquiátrico dessa repressão foi dado pelo conceito de periculosidade e prescindiu da noção de responsabilidade, retirando o louco do guarda-chuva da igualdade formal de direitos que fundou a democracia moderna. Com base nesse fundamento, o louco teve limitada a sua liberdade. Desse modo, a psiquiatria nasceu em resposta a um problema de governo, com a função de administrar a loucura, embora tenha justificado como estritamente técnica a necessidade da criação de seu campo de intervenção (Castel, 1991).

Os efeitos da obra de Pinel incidiram sobre a reforma do Código Penal francês ocorrida em 1810, provocando sua alteração no que se refere aos crimes cometidos por loucos, que passaram a ser tomados como exceções e não mais puderam ser responsabilizados por seus atos2. A partir de então, tornou-se necessário que um especialista em medicina mental se pronunciasse sobre a presença ou não de demência nos crimes cometidos por suspeitos de alienação mental (Foucault, 2001; Barros-Brisset, 2009).

No campo do direito, para que fosse possível aplicar o poder de punir tornou-se indispensável conhecer a racionalidade do crime, identificando-se os motivos que levaram o criminoso a cometê-lo e, por outro lado, dever-se-ia excluir a presença de alienação mental. Assim, a partir da intervenção de Pinel, iniciou-se um recuo do poder judiciário com relação aos psicóticos criminosos, dispensando-se o conceito de responsabilidade penal nesses casos. Conforme nota Foucault (2001), a referência à lei foi sendo progressivamente substituída pela referência ao saber psiquiátrico.

Esquirol, um dos primeiros peritos em psiquiatria criminal, desenvolveu as formulações de Pinel e propôs o conceito de monomania homicida que buscava explicar, ainda que de forma controversa, os crimes em que não se podia identificar um motivo que o justificasse, sendo o ato criminoso a única manifestação da loucura. Esquirol (1838) propôs que o alienado mental, diante de um empuxo irresistível ao crime ou de uma convicção delirante, ficaria impossibilitado de escolher entre agir ou não, por ter a vontade lesada. O louco foi, desse modo, etiquetado como portador de uma patologia que o tornaria perigoso, imprevisível e sem possibilidade de responder pelos seus atos. Cristalizaram-se, assim, as ideias de Pinel. A cura seria uma possibilidade remota, pois a patologia era frequentemente irreversível, devendo o alienado receber o tratamento moral no asilo e permanecer isolado pelo resto da vida.

Em um segundo momento da formalização do saber psiquiátrico, na segunda metade do século XIX, as ideias de Falret, Morel e Lombroso conduziram à consideração de que haveria um estado de anormalidade irreversível ligado a um desvio biológico que seria responsável pelo perigo intrínseco aos doentes mentais. Os estados de Falret, a degeneração de Morel e o criminoso nato de Lombroso vieram selar a etiqueta de perigoso que Pinel e Esquirol haviam proposto para os loucos, permitindo, além disso, dispensar a ideia de que haveria uma patologia passível de ser curada.

Foram, então, propostas políticas defensivas contra o perigo de que a loucura seria portadora. Sobretudo a partir das ideias de Morel e Lombroso, medidas de precaução contra o perigo começaram a ser incorporadas ao Direito Penal com a criação do instituto jurídico denominado medida de segurança, cuja função seria essencialmente de defesa social (Barros-Brisset, 2009).

Foucault (2001) aponta que a patologização da loucura deixou de ser necessária na segunda metade do século XIX, com o conceito de degeneração proposto por Morel. A psiquiatria pôde, então, deixar de lado a promessa de cura e começar a dirigir seus esforços para as propostas de prevenção e precaução. Morel (1857) propôs que a medicina mental constituía-se como um saber apto a oferecer ao direito um projeto higienista por ele denominado de “profilaxia defensiva”.

Com Cesare Lombroso (1876), esse programa foi levado às suas últimas consequências. Os sinais que se supunham indícios de demência moral eram buscados no corpo: nas medidas do crânio e da mandíbula, na assimetria facial, na ausência de pelos no corpo, na insensibilidade à dor, etc. Esse autor propunha que essas características ligadas à delinquência eram transmitidas geneticamente. Acreditava que a demência moral e a disposição ao crime possuíam uma vinculação indissolúvel que podiam ser explicados por uma tendência que remontava aos atos de crueldade da primeira infância dos delinquentes. Entretanto, Lombroso (1876/2007) supunha que não se deveria esperar que o tratamento alterasse a condição do criminoso nato e a condução desses casos deveria seguir na direção do isolamento perpétuo, devido ao seu perigo intrínseco e sua impossibilidade de correção. Esse autor chegou a propor o extermínio para os casos de delinquentes considerados de alta periculosidade.

Essas ideias foram propagadas no Brasil provocando sucessivas alterações do Código Penal brasileiro até chegar a sua forma atual. Dentre os autores que se encarregaram de difundir as ideias de Pinel, Esquirol, Morel e Lombroso no Brasil, destacam-se Luiz Vicente De-Simoni, João Carlos Teixeira Brandão, Raimundo Nina Rodrigues, Francisco Franco da Rocha, Júlio Afrânio Peixoto e Heitor Pereira Carrilho3. Este último, considerado o grande sistematizador da psiquiatria forense no Brasil, foi responsável pela consolidação das ideias lombrosianas em nosso país (Fry, 1985).

Carrilho iniciou sua carreira como psiquiatra no Hospício Nacional de Alienados do Rio de Janeiro, tendo se tornado o responsável pela chamada Seção Lombroso dessa instituição, que recebia os loucos criminosos. Criou os Archivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, que se tornou uma referência no campo da psiquiatria forense. Foi, ainda, um dos co-fundadores do Instituto Brasileiro de Eugenia e grande divulgador das ideias de Morel e Lombroso no Brasil. Peter Fry (1985) nota que esse autor teve um papel fundamental na difusão e fortalecimento das ideias da Escola Criminal Positiva, inspirada na obra de Lombroso. Fry cita Carrilho, em artigo publicado em 1930:

 

“Não é possível, pois, na epocha actual, fazer direito penal sem o concurso dos médicos e dos psychiatras que, com os seus conhecimentos de bio-anthropologia e de psychologia, podem penetrar toda a personalidade dos delinquentes, exhumando-lhes as differentes taras, definindo-lhes o feitio mental, mostrando a fatalidade biológica que os levou à prática de reacções anti-sociaes, desvendando-lhe a constituição, o temperamento e o caracter, para a obra admirável da regeneração, de que elles carecem, em benefício próprio e no da collectividade” (Carrilho apud Fry, 1985, p. 126).

Heitor Carrilho foi um dos grandes responsáveis pela implantação do primeiro manicômio judiciário no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em 1921. Esse manicômio realizava exames periciais, então chamados de “bio-psychogramas”, desde sua origem, além de contribuir para a função de defesa social, ao receber os loucos para o isolamento que, via de regra, era perpétuo. Carrilho lutou também pela implantação dos manicômios judiciários de São Paulo, Porto Alegre e Barbacena, em Minas Gerais. Conforme indica Fry (1985), sua militância em favor da criação de manicômios criminais pelo Brasil afora foi muito além, produzindo consequências no âmbito das leis. Ela resultou na incorporação do sistema de isolamento do louco infrator nos manicômios judiciários à legislação brasileira, com o Código Penal de 1940.

Laudos periciais confeccionados por Carrilho, como o de Febrônio Índio do Brasil, mostram o poder discricionário alcançado pelos peritos em psiquiatria criminal em nosso país. São peças construídas sobre uma sucessão de fatos que dispensam provas, por ligarem a periculosidade à possibilidade de autoria de um crime, capazes de definir o isolamento perpétuo do psicótico infrator, baseando-se unicamente na demanda de defesa social.

As ideias de Morel e Lombroso constituíram, assim, a base de um programa biopolítico que passou a operar a partir da segunda metade do século XIX (Foucault, 1989). A partir da intervenção desses autores e a propagação de suas ideias, nasceu a demanda de proteção biológica da espécie humana e de proteção social contra os perigos que seriam intrínsecos à loucura. Com suas ideias, foram colocadas em questão a transmissão de características associadas ao perigo, engendrando-se políticas higienistas e eugênicas. Uma vez que não podiam ser curados, dever-se-ia impedir a reprodução dos degenerados, excluí-los ou até eliminá-los para proteger a espécie humana de uma degradação que se supunha crescente. O objetivo perseguido seria o de antecipar o surgimento do perigo atribuído à loucura, autorizando toda sorte de medidas de precaução contra a periculosidade, como a permanência na condição de isolamento por tempo indeterminado. A proposta de isolamento definitivo dos loucos infratores nos manicômios judiciários parece ser uma forma precursora das medidas segregativas adotadas no século XX, com a criação dos campos de concentração.

Foi somente com a descoberta dos neurolépticos, na década de 1950, que teve início o rompimento com os dispositivos de segregação surgidos no século XIX. O isolamento dos loucos nos manicômios passou a ser interrogado, a partir dos anos 80 do século XX, e pôde ter início o seu fim (Teixeira, 2010).

Contudo, uma nova modalidade de controle vem surgindo após a queda dos muros dos hospitais psiquiátricos, dispensando um tratamento singularizado que leve em conta a arte de cada um e que poderia viabilizar o laço social. Os neurolépticos vêm se tornando, no campo da psiquiatria forense, um recurso universal que é suposto garantir o controle da periculosidade, em detrimento das singularidades dos tratamentos empreendidos por cada sujeito. Nos laudos psiquiátricos que pretendem avaliar a periculosidade e atuar preventivamente para impedir novos atos, encontramos a indicação compulsória de tratamento que não pode prescindir da medicação psiquiátrica.

Diante desse quadro, recorro a algumas contribuições da psicanálise de orientação lacaniana para pensar a discussão aqui aberta. No texto Eu falo aos muros, Lacan esclarece que a segregação dos doentes mentais é um efeito do discurso do mestre. Os muros, diz Lacan, correspondem precisamente ao discurso; eles constituíram e foram constituídos com o discurso psiquiátrico. O autor localiza que, a partir da lei francesa de sequestração dos alienados de 30/06/1838, o perigo, sobre o qual se assentou a ordem social, foi introduzido no discurso. Essa lei foi fruto da intervenção de Esquirol e outros discípulos de Pinel, instituída para regulamentar as internações dos alienados mentais e vigorou na França até 1990. Afirma Lacan:

 

“É muito curiosa essa introdução do perigo no discurso no qual se assenta a ordem social. O que é esse perigo? Perigosos para eles mesmos, enfim, a sociedade não vive senão disso, e perigosos para os outros, Deus sabe que toda liberdade é deixada a cada um nesse sentido”4 (Lacan, 1972, p. 106-107).

A ordem social moderna se constituiu, portanto, sobre a ideia de perigo atribuído ao louco, que foi circunscrito e isolado pelo discurso psiquiátrico. Em Pequeno discurso aos psiquiatras, Lacan aponta que o isolamento do louco como objeto da psiquiatria, que se iniciou com Pinel e Esquirol, permitiu o aparecimento da ideia de sintoma, função que subsiste ao declínio da clínica psiquiátrica. Se tendemos cada vez menos a isolar o louco é devido ao surgimento de outras formas de contenção do perigo que substituem os muros do asilo. O autor adverte que o louco é tomado, no discurso psiquiátrico, muito mais como objeto de estudo, do que a partir da via aberta pela relação do sujeito ao objeto estrangeiro que é a voz, suporte do significante.

Lacan considera que a clínica psiquiátrica vem sofrendo um declínio e é, cada vez mais, absorvida pela medicina, na medida em que esta entra inteiramente no dinamismo farmacêutico. Entretanto, algo de irredutível do sintoma não domesticável pelo dinamismo farmacêutico permanece operando. Assim, a loucura não se dissolve em razão da difusão do tratamento com psicofármacos no campo psiquiátrico.

Mas, é preciso notar que essa mudança no campo da psiquiatria introduzida pela disseminação do uso dos fármacos produz novos efeitos: obnubila-se, tempera-se, interfere-se, modifica-se, de modo acéfalo, pois não se sabe ao certo o que se modifica e qual a direção dessas mudanças (Lacan, 1967). De acordo com Maleval (2002), uma nova modalidade de tratamento vem surgindo na psiquiatria, e seu ponto de partida não é o sujeito, mas a eficácia da molécula, o que certamente produz consequências no âmbito da clínica da psicose.

Do século XIX até os dias atuais, constatamos a existência de uma continuidade no fato de não se colocar uma pergunta pelo sujeito, pois o louco foi sempre tomado, no discurso da psiquiatria forense, como objeto a ser controlado. Verificamos, atualmente, uma aposta generalizada na contenção química que responde a um modelo protocolar e permanece sustentada pela impossibilidade de atribuição de responsabilidade ao psicótico. O que é visado parece ser o silêncio do sujeito.

Cabe-nos, a partir do campo da experiência clínica, colher os efeitos desse novo modo de tratar a loucura e situar nossa posição nessa interface. A clínica com loucos infratores mostra que cada sujeito empreende um tratamento singular que envolve a construção de recursos capazes de moderar o sofrimento. Assim, não há um padrão universal que possa orientar o tratamento empreendido por cada sujeito. O que podemos assinalar como universal, no âmbito desse tratamento, é apenas o caráter de moderação que cada solução singular porta. Contudo, em detrimento das invenções psicóticas singulares, os modos de controle se renovam em torno desse objeto irresponsável que se tornou o louco para os psiquiatras forenses e para o direito penal brasileiro.

Seguindo na contramão dessa via, o PAI-PJ, de acordo com Fernanda Barros-Brisset (2010), apresenta a proposta de não se tomar o louco como objeto e de que se reconheça a existência de um sujeito singular, responsável, cujo tratamento deve ser também singularizado.

A clínica com psicóticos infratores conduz ao ponto de partida da prática psicanalítica que somente pode operar a partir da consideração de que todo sujeito é responsável. A psicanálise nos permite pensar uma saída diferente da que vinha sendo praticada desde o século XIX, a partir da aliança entre psiquiatria e direito penal, que segue na contramão da biopolítica e dos mecanismos do biopoder. O discurso da psicanálise nos permite prescindir dos mecanismos de segregação e o operador dessa possibilidade seria o conceito de responsabilidade. Demonstrar como a responsabilidade na psicose pode ser um princípio a ser considerado pelos analistas na cidade é, pois, um objetivo percorrido em minha pesquisa.

Lacan iniciou a formalização sobre a responsabilidade ao referir-se à criminologia e às relações entre psicanálise e o campo jurídico. Em “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, afirma que “a ação concreta da psicanálise é de benefício numa ordem rija. As significações que ela revela no sujeito culpado não o excluem da comunidade” (Lacan, 1950b, p. 131). Sua leitura leva em conta o problema da segregação que se coloca a partir do surgimento da criminologia: “o lazareto é certamente a solução ideal do problema levantado pelo crime para o idealismo cientificista” (1950b, p. 127). Lacan considera que o surgimento da criminologia permite o nascimento de uma concepção sanitária da pena. Ao perito, que avalia o criminoso visando tomar medidas preventivas contra o crime, “é conferido um poder quase discricionário na dosagem da pena”, independente de ser alegada a presença de loucura (1950, p. 141). Desse modo, não escapou a Lacan o poder de decidir sobre o destino do louco criminoso alcançado pelos peritos em psiquiatria.

O autor considera que a criminologia produz ainda o efeito de uma desumanização que conduz a enviar para os campos de concentração boa parte da humanidade. Propõe que a psicanálise busca a verdade de um sujeito e é por isto “que ela não pode fazer outra coisa senão manter a ideia da responsabilidade, sem a qual a experiência humana não comporta nenhum progresso” (Lacan, 1950b, p. 131).

Para Lacan, em “A ciência e a verdade”, o sujeito é uma posição que implica a responsabilidade: “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (1966, p. 873). Ao longo de sua formalização, ao avançar na teorização sobre a psicose, o autor reelabora também o conceito de responsabilidade. No seminário sobre Joyce, teoriza sobre esse conceito a partir da psicose, apontando que a responsabilidade é a arte da qual cada um é capaz (Lacan, 1975-76).

A responsabilidade refere-se, assim, a uma resposta ao excesso real que implica certa posição de sujeito e pode exigir prestar contas dessa posição perante o Outro. Trata-se de uma ficção capaz de conectar o ato, que segundo Lacan é sem sujeito, aos modos de gozo de cada um. A psicanálise considera que o tratamento há que levar em consideração essa parcela de ordem singular, irreconciliável, irredutível e inextinguível que todo ser falante porta e que nomeamos gozo. É a partir dessa dimensão real que cada sujeito pode inventar algo de próprio para lidar com o sofrimento, tornando-se responsável.

Para finalizar, é possível recolhermos das formulações de Lacan uma orientação no sentido de buscar levar às últimas consequências a sua tese sobre a responsabilidade como um elemento fundamental que pode definir a humanidade do ser falante e que permite oferecer um contraponto aos dispositivos do biopoder. Nesse sentido, deixo aqui uma pergunta a ser respondida a partir das teorizações de Lacan: se a responsabilidade pode ser pensada como uma ficção conectora entre o ser falante e seus modos de gozo, poderíamos articular a noção de responsabilidade à posição de objeto, já que no instante da passagem ao ato o sujeito não está presente? Ou seja, para além da posição de sujeito, ao ocupar a posição de objeto, poderíamos ainda continuar afirmando que somos todos responsáveis? Essa questão aponta um caminho a ser ainda percorrido em minha pesquisa de doutorado.


Notas

 
  1. Este texto resulta de minha pesquisa de doutorado em Psicologia, área de concentração Estudos Psicanalíticos, na UFMG, intitulada “A avaliação pericial do psicótico infrator na sociedade de controle: há lugar para respostas de sujeito?”, sob orientação do Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira.
  2. Em 1810 foi introduzido o artigo 64 no Código Penal francês de 1795, que passou a regulamentar os crimes cometidos pelos insanos ou dementes.
  3. Pesquisa relatada no segundo capítulo de minha tese de doutorado intitulada “A avaliação pericial do psicótico infrator na sociedade de controle: há lugar para respostas de sujeito?”, ainda em fase de execução.
  4. No original: “C’est très curieux, cette introduction du danger dans le discours don’t s’assied l’ordre social. Qu’est-ce que ce danger? Dangereux pour eux-mêmes, enfin, la societé ne vit que de ça, et dangereux pour les autres, Dieu sait que toute liberte est laissée à chacun dans ce sens”.


Referências Bibliográficas

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Resumos

What Lacan orientated psychoanalysis has contributed to the evaluation of the psychotic offender

This article recovers the constitution of the social order from the idea of danger attributed to psychotic offender since the early nineteenth century. This idea gave rise to the expert evaluations and formed mechanisms of segregation. It then resumes, Lacan's thesis about the responsibility to take it to its logical conclusion as a key element that can define humanity of the talking entity and that allows us to offer a counterpoint to the provisions of biopower. For the author, these are contributions that allow Lacanian offer a way of treating the problem of segregation.

Keywords: psychoanalysis, psychotic offender, expertise, dangerousness, segregation, responsibility.

Contributions de la psychanalyse d’orientation lacanienne à l’évaluation du délinquant psychotique

Cet article reprend la constitution de l'ordre social de l'idée de danger attribuée aux délinquants psychotiques depuis le début du XIXe siècle. Cette idée a donné lieu à des évaluations d'experts et a forme des mécanismes de ségrégation. Ensuite, Il retourne à l’examen de la thèse de Lacan à propos de la responsabilité de prendre à sa conclusion logique comme un élément clé qui permet de définir l'humanité par l’être parlant et qui nous permet d'offrir un contrepoint aux dispositions du biopouvoir. Pour l'auteur, il s'agit de contributions qui permettent à Lacan d’offrir un moyen de traiter le problème de la ségrégation.

Mots-clés: psychanalyse, délinquants psychotiques, l'expertise, la dangerosité, la ségrégation, la responsabilité.

 

Citacão/Citation: GOMES, R. M. de M. Sobre a avaliação pericial do psicótico infrator: contribuições da psicanálise de orientação lacaniana. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 13/02/2012 / 02/13/2012.

Aceito/Accepted: 24/04/2013 / 04/24/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/Thisisan open-accessarticle, which permites unrestricted use, distribution, andreproduction in anymedium, providedtheauthorandsource are credited.