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O lugar certo onde colocar o desejo do analista na era dos direitos1

 

Tania Coelho dos Santos
Pós-doutorado no Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Paris, França)
Professor Associado, nível IV no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/ UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Pesquisadora do CNPQ nível 1 C (Brasil)
Presidente do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Psicanalista Membro da École de La Cause Freudienne, da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Membro da Associação Universitária de Pesquisa
em Psicopatologia Fundamental (Brasil)

E-mail: taniacs@openlink.com.br

Resumo

Ter um desejo é a mesma coisa que ter o direito de realizá-lo? Realizá-lo é a mesma coisa que alcançar a satisfação esperada? Se nada do que se busca é da ordem do que se encontra, é porque a única lei que determina o desejo é o vazio, sua causa. É preciso indagar qual é a relação entre a era dos direitos e o progresso da ciência. À medida que a ciência assegura a transposição de antigos limites, cresce a potência da demanda de usufruir de satisfações inéditas. O campo do direito, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), não cessa de promover o direito ao desejo de cada um, muitas vezes em detrimento do direito de todos. A velha máxima – a liberdade de cada um termina onde começa a do outro – está francamente caduca.

Palavras-chave: psicanálise, era dos direitos, desejo do analista, direito ao gozo.

 

O real no século XXI

Ter um desejo é a mesma coisa que ter o direito de realizá-lo? Realizá-lo é a mesma coisa que alcançar a satisfação esperada? Se, como ensina Lacan em seu seminário sobre a ética da psicanálise, nada do que se busca é da ordem do que se encontra, é porque a única lei que determina o desejo é o vazio, sua causa. O real, deste ponto de vista, é o que retorna no mesmo lugar. O inconsciente é o retorno daquilo que nos causa, nos determina e se reapresenta sob novas roupagens metafóricas e metonímicas. Existiu, portanto, um “saber no real”. Saber que reclama a interpretação, que o aborda de forma sempre assintótica, não podendo jamais reproduzi-lo, somente traduzi-lo. O último ensino de Lacan, diferentemente, vem situar no coração da experiência analítica o encontro com um “real sem lei”, que desarranja nossa convicção de o inconsciente se reduza ao retorno do recalcado. Miller (2012), diz que é preciso renovar a prática da psicanálise no mundo reestruturado pela aliança de dois discursos, o do capitalismo e o da ciência. A dominação combinada destes dois discursos rompeu com os fundamentos mais profundos da tradição.

O desarranjo da ordem simbólica cuja pedra angular é o Nome-do-Pai revelou a “inexistência da relação sexual” na espécie dos seres vivos que falam. Esta função chave – agora reduzida a penas um sintoma entre outros – servia para suplementar este furo. O rebaixamento da função do Nome-do-Pai à categoria de um sintoma entre outros, abala os fundamentos da diferença entre a neurose e a psicose. Sem a função chave do Nome-do-Pai, não existe mais uma garantia da ordem simbólica, não há mais Outro do Outro. A grande desordem no real é a consequência de que a natureza não é mais o nome do real. A ordem humana, a família como formação social não se inspira mais na natureza. Desde quando?

“Com o universo infinito da física matemática, a ideia de natureza desaparece; com os filósofos do século XVIII, ela se torna apenas uma instância moral. Com o universo infinito, a natureza desaparece e o real começa a desvelar-se” (Miller, 2012, p. 14).

Gostaria agora, aqui diante de vocês, de lançar Miller contra ele próprio. Ele argumenta que a ideia de natureza é consubstancial à tese lacaniana de que “há saber no real”. Mas, ele conclui, contraditoriamente consigo próprio, que quando há saber no real há uma regularidade que o discurso científico permite prever. Ora, se o avanço da ciência desvela o real sem lei, como sustentar a tese de que o discurso científico se baseia na ideia de natureza e de que há saber no real? Ou uma coisa ou a outra. Ou o saber da ciência destrói a ideia de natureza e revela o real sem lei. Ou o discurso científico supõe saber ao real e ainda se alimenta da ideia galileana de que o livro da natureza está escrito com caracteres matemáticos.

Miller reconhece que o princípio da incerteza probabilística ameaça o sujeito suposto saber. Também na física subatômica os níveis de matéria se multiplicam e a matéria não equivale mais ao real. Miller insiste na tese de que o real inventado por Lacan não é o real da ciência. De que ciência? A física galileana ou a mecânica quântica? Miller deveria ter concluído – é preciso interrogar por que é que ele não o fez - que também no campo da ciência, o Outro não existe mais. Não há mais o Outro do Outro. Logo, a desordem no real é efeito do discurso da ciência que destruiu a ideia de natureza. O real sem lei de Lacan é apenas a tradução no campo da psicanálise da concepção mais atualizada de real já antecipada pelo progresso da própria ciência. Lacan não inventou, propriamente falando, o real sem lei. Lacan atualizou a concepção do real na psicanálise freudiana à luz da ciência contemporânea.

De acordo ainda com Miller, os testemunhos do passe são relatos da elucubração da fantasia de alguém e exprimem como um ser falante refaz a experiência analítica para reduzi-la a um núcleo, a um pobre real, que se apaga como o puro encontro de lalíngua e seus efeitos no corpo.
“Ele se apaga como um puro choque pulsional. O real entendido desse modo não é um cosmos, não é um mundo, nem uma ordem: é um pedaço assistemático separado do saber ficcional que se produz a partir de um encontro” (Miller, 2012, p. 16).

Que esse encontro não corresponda a nenhuma lei prévia, que seja definido como contingente e perverso, não estamos aí simplesmente no terreno da perversão polimorfa da pulsão? Não são as pulsões parciais que desviam do “gozo que deveria ser”? O que há de novo em tudo isso? O que mais existe sob o saber ficcional da fantasia senão o objeto a, objeto parcial, contingente e perverso polimorfo?

Segue-se a questão que me interessa discutir. A dos efeitos colaterais da concepção psicanalítica do real sem lei, nesta época do direito ilimitado ao gozo. Tempo em que as individualidades e minorias tomam a forma de movimentos sociais que engrossam a reivindicação generalizada de ser tratado como exceção. Cada vez menos é possível sustentar qualquer ficção de uma ordem simbólica para todos. Temos uma pluralidade de ordens simbólicas localizadas e de nomes do pai ou de objetos a sob medida para cada uma delas.

Que estratégia clínica adotaremos frente aos efeitos do progresso da ciência e do capitalismo de desvelamento de um real sem lei. Ainda de acordo com Miller, nossa clínica deverá centrar-se na desmontagem da defesa, desordenar a defesa contra o real sem sentido e sem lei.  Como interpretar essas afirmações? O que há de novo nesta perspectiva da prática do psicanalista? Ela é nova? Se tomamos a prática como a construção e o atravessamento da fantasia, concepção lacaniana do final dos anos 1960, ela não é definitivamente nova. Ao final de uma análise, atravessada a fantasia resta o objeto a, pedaço assistemático do real, efeito do encontro contingente e perverso do corpo com a língua. Nada menos que os conceitos de sintoma ou de pulsão. Ao final da análise, a fantasia devém pulsão.

Desmontar as defesas não é justamente o que a ciência tem produzido como efeito de seu progresso? Afinal, toda a ordem simbólica inspirada na imitação da natureza vem sendo destruída, - como Miller mesmo reconhece – pelo desvelamento do real sem lei. Ao término de uma análise, sabemos disso há muito tempo, a desmontagem da fantasia desvela o real sem lei da pulsão.

Durante muitos anos eu me dediquei a estudar os efeitos da difusão da psicanálise. Queria saber, a meu modo, acerca dos efeitos colaterais de uma prática de interpretação do inconsciente que terminava com a instalação de um novo discurso: o discurso analítico. O matema deste discurso coloca o objeto a, objeto da pulsão no lugar do agente. É uma tarefa árdua distingui-lo do discurso da sociedade de consumo, também ele orientado pelo objeto da pulsão e avesso à soberania dos ideais. Tendência na civilização que a desmontagem das defesas só faria acentuar.


A pulsão e a civilização: perversão e sublimação

Em outubro do ano passado (2012), durante a assembleia de membros da École de la Cause, Jacques-Alain Miller, com seu estilo provocador e polêmico, propôs que a escola discutisse a questão: ter um desejo é ter um direito?

Somente alguns meses depois percebi que essa pergunta tinha sua fonte nas proposições do capítulo final do Seminário VI, de Lacan: o desejo e sua interpretação, que acaba de ser lançado em Paris. Ela foi suscitada com o objetivo de motivar a organização de um evento2 sobre o tema dos desejos e dos direitos. De acordo com Lacan (1958-59), a cultura perpassa a sociedade, desagregando-a. Existe entre a sociedade e a cultura uma relação entrópica, isto é, disjuntiva. A cultura deixa aberto o mesmo vazio, no interior do qual situamos a função do desejo. Neste sentido, a perversão é um protesto contra a identificação ao padrão de comportamento que instaura, regula e ordena as normas de estabilização social das diferentes funções.

Instala-se uma dinâmica circular entre o conformismo às normas sociais e a atividade cultural. Esta última se aproxima da perversão, pois eleva à dimensão do desejo a relação do sujeito ao ser vazio de sentido. Aqui se inscreve a sublimação que é a forma que toma o desejo esvaziado de sua relação a um objeto determinado. O desejo fica assim reduzido apenas à pulsão sexual, ao puro jogo de significantes.  Na sublimação, que é um dos destinos da pulsão, o desejo equivale à letra e resiste - tal como a perversão – a toda forma de normalização, padronização, homogeneização.

É preciso indagar qual é a relação entre a era dos direitos e o progresso da ciência. À medida que a ciência assegura a transposição de antigos limites, cresce a potência da demanda de usufruir de satisfações inéditas. O campo do direito, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), não cessa de promover o direito ao desejo de cada um, muitas vezes em detrimento do direito de todos. A velha máxima – a liberdade de cada um termina onde começa a do outro – está francamente caduca. Assistimos impotentes aos efeitos da tolerância da justiça com os criminosos. O crime de homicídio é punido com penas tão pífias que vale à pena, ao sair da cadeia, matar de novo e mais uma vez. Os direitos humanos de uns – os assassinos - implicam em grave desrespeito ao direito humano de outros, suas vítimas. A luta antimanicomial que prometia livrar o doente mental do jugo da internação compulsória e por prazo indeterminado - luta meritória e muito aplaudida pelos defensores dos direitos humanos do doente mental - produziu o efeito perverso de jogar nos ombros das famílias a obrigação de conter, medicar, controlar indivíduos psicóticos. A situação dos drogados não é diferente. Enquanto dezenas de organizações de direitos humanos enviavam uma carta à O.E.A. para pedir aos líderes do continente que discutam a descriminalização do uso de drogas, exigindo que o usuário seja considerado um doente, uma questão de saúde pública, muitas famílias vivem indefesas sob o jugo da violência do viciado. Este não hesita, muitas vezes, em agredir seus familiares, roubá-los e arrastá-los até a exaustão. O direito de uns, se paga com o não direito de outros. Ter um desejo é ter um direito? Nas situações que elencamos aqui, trata-se ainda do direito à perversão própria ao desejo, em detrimento do conformismo às normas que sustentam os laços sociais?

Seria este o caso, eu pergunto outra vez, dos indivíduos que reivindicam mudar de sexo? Trata-se da perversão própria ao desejo? Hoje, em muitos países, para mudar de sexo, não é preciso nem submeter-se a uma cirurgia. Trata-se aí da perversão que caracteriza o desejo e a atividade cultural? A clínica psicanalítica nos ensina que muitas vezes trata-se de psicose. Não se trata de questionar o desejo de novos direitos, mas de interrogar, mais profundamente, como é possível que o corpo em sua realidade anatômica não desempenhe nenhuma função no processo de identificação. Para ser uma mulher, basta vestir-se de mulher? O hábito faz o monge?  Ou será que o direito tornou-se o nome de um desejo decidido que exige ser realizado, encenado, sem que entre em jogo a divisão do sujeito, o inconsciente? A Corte suprema do Nepal, em 2007 – graças à ação política de uma atriz transgênero –, reconheceu um terceiro sexo. Estão incluídos nesta categoria, homossexuais, bissexuais, transgêneros e intersexuais. 500 000 nepaleses se declararam “trans”.

E o que dizer dos indivíduos que desejam casar-se com pessoas do mesmo sexo e adotar filhos? Estranhei muito o título desta intervenção de Miller – “Mariage homosexuel: oublier la nature” – publicada na conhecida revista parisiense intitulada Le Point (03/01/2013). Reproduzo, para introduzir minha questão, uma pequena parte: “A natureza cessou de ser digna de crédito. Desde que passamos a saber que ela é escrita em linguagem matemática, aquilo que ela diz, conta cada vez menos [...]. O ideal da justa medida não é mais operatório. ”Eu me pergunto: trata-se de esquecer a natureza? Argumento que a natureza é da ordem do semblante. Dizer, depois de Freud, que “a anatomia é o destino” é o mesmo que dizer que só se pode abordá-la pela via do fantasma. Fantasma de quem? Fantasma do religioso? Fantasma do cientista? Fantasma do neurótico? Em apoio à minha posição, recordo as palavras de Lacan, no Seminário XVIII (1970-71, p. 31): a identidade de gênero não é senão o destino dos seres falantes de se repartirem, na idade adulta em homens e mulheres. Para o rapaz, trata-se de bancar o homem, agente da corte tal como esta é definida no nível animal. O comportamento sexual humano consiste numa certa manutenção deste semblante animal. Entre os humanos, este semblante, é o discurso sexual que o transmite. O discurso sexual é a passagem do real enquanto impossível de imaginar. Para alcançar o outro sexo, é preciso não tomar o órgão masculino pelo real, pois ele somente se funda como instrumento da cópula por meio do arranjo significante. A posição do psicótico ignora que a natureza não é o real, pois ela é o semblante. O que o transexual não quer mais, por exemplo, é o significante. Somente graças aos efeitos do significante, aquilo que está escrito no corpo como anatomia pode ser lido como destino. Para fazê-lo como convém, é preciso que a gente se engane pela via do “erro comum” que é o de crer à natureza.

A aliança do capitalismo com a ciência incidiu sobre o corpo e o laço social na redistribuição a sexuação, dissolvendo sua ancoragem na ideia de natureza. Eis porque a anatomia não é mais “o destino” senão de alguns e de algumas. Na civilização contemporânea, a experiência da discordância entre a identificação simbólica e a anatomia - que eu defino como a percepção imaginária, mas também a experiência real do corpo - não é mais uma exceção à regra. Ninguém é considerado um psicótico porque não acredita na nomeação simbólica que seu corpo recebeu do Outro. É perfeitamente aceitável, nos dias de hoje, que um homem desacredite do valor fálico de seu órgão anatômico. O fato de ser portadora de uma vagina e de um útero pode não valer absolutamente nada para uma mulher que acredita ser um homem. Eles não fazem a menor questão de imitar a natureza! Mesmo assim, nos dias de hoje, querem se casar e ter filhos imitando os amantes da natureza. A luta pelo casamento para todos mostra que o movimento gay não revindica mais o direito à exceção homossexual. Nos anos 1970, o discurso gay recusava o sonho naturalista de felicidade familiar com seus papéis ready-made: marido, mulher, papai, mamãe, bebês. Ele representava o máximo de liberdade pulsional. Ao longo dos anos, este discurso demonstrou-se incapaz de produzir novos semblantes. O discurso gay contemporâneo propõe que se pode casar dois maridos ou duas esposas e ter filhos com papai-papai e mamãe-mamãe. Basta dar uma olhadinha nas séries americanas para verificar que é assim que as coisas se passam. Os significantes mestres produzidos pelo fantasma da natureza agora são revindicados por todos, neuróticos ou não. A única coisa que triunfa em nossos dias, aparentemente, é a vontade dos antigos rebeldes de ser igual a todo mundo. Onde está a perversão que caracteriza o desejo e a atividade cultural?

O progresso da ciência, atividade cultural por excelência, permite que nos rebelemos contra as leis da natureza. Também, a morte não é mais a consequência natural da decadência do corpo. Avanços no campo da farmacologia e da tecnologia aplicada à medicina permitem prolongar a vida muito além do ponto em que ainda existiria um sujeito habitando o corpo. Georges Canguilhem já se perguntava se, sem ter escolhido nascer, cada um tem o direito de escolher o momento de morrer.  Médicos e psicanalistas testemunham que a síndrome do deslizamento acomete os pacientes terminais que viram as costas aos familiares e aos cuidadores. Hoje, a maioria da população apoia o direito à morte assistida. De um lado, a ciência prodigaliza os cuidados paliativos e do outro muitas pessoas acreditam que a vida, depois de um certo patamar de sofrimento, não vale à pena e temem ou se angustiam diante de uma morte em condições inaceitáveis de sofrimento. Na França, a Lei Leonetti reforça a interdição de prover o suicídio assistido ou a morte não razoável, mas considera o direito a cuidados paliativos como a supressão de toda consciência por meio da sedação e também a suspensão de intervenções destinadas ao prolongamento da vida, quando este for o desejo do paciente. O poder de intervir no próprio corpo em benefício do valor estético já não nos surpreende mais. Estamos acostumados às próteses de silicone que introduzem o pedaço de corpo que falta. Os poderes da cirurgia plástica também nos permitem suprimir tudo que nos parece em excesso. Ao corpo se acrescenta a parte que aumenta o mais-de-gozar ou se retira aquela parte que produz o gozo-a-menos. Não é novidade. Mas, há alguns dias a mídia sacudiu os corações e mentes das mulheres com a inquietante notícia de que Angelina Jolie – conhecida atriz de notória beleza e companheira do não menos famoso astro, Brad Pitt - decidira efetuar uma mastectomia radical preventiva, temendo a ameaça de vir a desenvolver um câncer fatal.  Portadora de um gene defeituoso, Angelina tem 87% de chances de morrer de câncer como sua mãe e sua tia. A decisão da atriz nos levou a perguntar mais uma vez: até onde os cálculos de probabilidade, baseados em evidências científicas, devem orientar nossas decisões sobre nossas vidas e nossos corpos?

O desejo de ter filhos distancia-se progressivamente das práticas heterossexuais de reprodução natural. O progresso das tecnologias de reprodução assistida tornou desnecessário que este desejo submeta-se às atribulações do ato sexual para obter sua satisfação. Casais assexuados, homossexuais, transgêneros, podem valer-se das novas tecnologias para produzir um bebê. Graças a estes procedimentos a noção de família humana está em vias de ser profundamente redefinida. O que dizer, então, dos significantes homem e mulher, pai e mãe? O que significarão ao longo do século XXI?

Por que considero que esta questão é essencial para as relações entre o campo da psicanálise e a era do direito ilimitado ao gozo?

Porque vivemos sob os efeitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). A igualdade e a liberdade entre os homens nunca reinam absolutas, mesmo quando a escola faz o seu trabalho de homogeneizar os indivíduos, reduzindo as diferenças relativas ao seu nascimento. A igualdade absoluta é impossível porque cada indivíduo é um sujeito do inconsciente e dá provas disso por meio de um sintoma, que é singular. O discurso da medicina, por exemplo, que hoje é veiculado nos meios de comunicação, tenta nos fazer pensar o contrário. Fala dos sintomas psíquicos como se fossem doenças que afetam grupos de indivíduos: obesidade, anorexia, bulimia, fobia, pânico, depressão, compulsão, drogadicção. Esse discurso oculta o sentido singular que o sintoma tem para cada indivíduo.  O sintoma não é como uma doença. As causas de uma doença podem ser as mesmas para todo mundo. A causa do sintoma psíquico não. Do mesmo modo o direito não cessa de reconhecer a nomeação de categorias monossintomáticas. Cresce a idéia de que é preciso regulamentar, criar estatutos especiais para reger os direitos dessas minorias ou exceções.

O sintoma de um indivíduo é um resto de suas relações infantis com seus pais que não pode ser apagado pela sujeição à ficção jurídica de que todos os homens nascem livres e iguais. Uma criança não é nunca livre e igual a um adulto. Os homens nascem pequenos, dependentes, e somente sobrevivem se o adulto os adota e cuida deles com amor. Uma criança, desejada ou indesejada, é sempre produto de uma relação amorosa entre um homem e uma mulher. Se toda criança tem origem no desejo de um homem por uma mulher, existe uma desigualdade que não podemos suprimir entre os seres humanos. Os desejos entre homens e mulheres não são idênticos. As crianças constroem fantasias diferentes sobre sua origem. A ficção de que todo homem nasce livre e igual é limitada pela inscrição de cada criança numa família particular.

Durante seus primeiros anos de vida, cada criança viverá na dependência de um pai e de uma mãe, tenha irmãos ou não. A mãe vai lhe dispensar um cuidado particular, pois seu amor por essa criança não é genérico. Não é a mesma coisa ser criado por sua mãe ou pela mãe de outra criança. O pai, na medida em que escolhe uma mulher e faz dela objeto de seu prazer, transmite a cada um dos seus filhos uma lição sobre a causa do desejo. Essa lição contraria a ficção de que todos os homens são livres e iguais. O desejo de cada um não é igual ao de nenhum outro. O desejo de cada um distingue os homens entre si. Perante seu desejo, ninguém é livre. O desejo nos determina, causa e impele.

Todo mundo pensa que um pai é o representante das normas e regras sociais. Lamentamos o declínio da função paterna e denunciamos, entre seus efeitos mais nocivos, o comportamento sem limites de muitas crianças de hoje. O pai não é um modelo genérico. Toda criança é marcada pela particularidade do modo pelo qual seu pai encarna essa função. O que a maioria das pessoas não sabe é que é preciso - para aceitar as normas de comportamento civilizado e para aceitar ser tratado como igual a todo mundo - ter vivido a experiência de ser um sintoma para seus pais. É preciso ter feito a experiência de acrescentar alguma coisa que contribui para uni-los. A criança como sintoma de seus pais e o sintoma da criança são o modo pelo qual se enlaçam as pulsões e as exigências da civilização.

Os sintomas não se adaptam nunca completamente à civilização. Quando as crianças crescem e são submetidas às exigências coletivizantes dos processos educativos tornam-se mais parecidas com as outras crianças. Apesar disso, toda criança submetida ao processo educativo, distingue-se das demais por meio do seu sintoma. O sintoma é a prova da existência do inconsciente. Quando se chega à vida adulta não se elimina completamente o resíduo da dependência infantil. São dois aspectos fundamentais que persistem como modos de satisfação inconscientes: o modo particular como uma criança foi amada por sua mãe e, também, o modo pelo qual o pai exerceu sua função.

Essa argumentação destina-se a retificar a ilusão dos antropólogos – ainda que bem intencionada - que acreditam excessivamente nessa ficção jurídica na qual se que funda o pacto social moderno. A liberdade e a igualdade são um ideal e não podem realizar-se completamente. Sonhamos com elas. Deveríamos tentar atingi-las oferecendo às crianças educação pública e gratuita. Entretanto, há um resto da ligação de cada criança ao seu contexto familiar que não pode ser eliminado. Isso é arcaico e irredutível. Precisamos desse arcaísmo para continuar gerando homens e mulheres capazes de transmitir a outros homens e mulheres o enigma da diferença sexual e da dissimetria entre as gerações. O enigma do sexo e da morte habita as profundezas do inconsciente. Por essa razão, não seremos jamais completamente modernos.

A universalidade da estrutura do inconsciente não deveria animar os psicanalistas a desprezar os efeitos do fracasso da universalização da educação pública e gratuita no nosso país. A escolarização é um processo essencial à constituição desse sujeito universal, inventado pela ciência do direito. Quando a imensa maioria dos brasileiros não credita e não se comporta de acordo com esse ideal, o que nós psicanalistas podemos esperar? Haverá sujeito do inconsciente? Será possível interpretá-lo?

Notas

 
  1. Este texto foi apresentado na conferência de abertura do III Simpósio do ISEPOL - Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana: “O lugar certo onde colocar o desejo”, no dia 08/06/2013, no Auditório do Hospital Copa D’Or, no Rio de Janeiro.
  2. Sobre o evento citado, ver o seguinte endereço eletrônico:http://www.causefreudienne.net/
    uploads/ document/6678051611b5cb4b34b4cc92f0e2bffc.pdf


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Resumos

The right place to put the analyst’s desire in the age of rights

Is having a desire is the same as having the right to carry it out? Will its realization achieve the expected satisfaction? If nothing that we seek is exactly what we find, is because the only law that determines the desire is the emptiness that causes it. The form in which the age of rights and the progress of science relate must be an object for research. As science surpasses its former boundaries, the power of the demand to enjoy unprecedented satisfaction grows. The field of law, since the Universal Declaration of Human Rights (1948), continues to promote the rights of each to desire, often at the expense of the rights of all. The old adage – One’s freedom ends where another's begins - is expired.

Keywords: psychoanalysis, rights era, the analyst's desire, the right to enjoyment.



La place du désir de l’analyste à l’ère des droits

Est-ce avoir un désir la même chose qu’ avoir le droit de le réaliser? Sa realization procurer-t-elle le degré de satisfaction attendu? Si rien de ce que nous cherchons est de l'ordre de ce que l’on trouve, c'est parce que la seule loi qui détermine le désir est le vide, sa cause. Vous devez vous demander quelle est la relation entre l'ère de l'homme et le progrès de la science. Tandis que la science transpose ses anciennes frontières, augmente la demande de satisfaction sans précédent. Le domaine de la loi, depuis la Déclaration universelle des droits de l'homme (1948), continue de promouvoir le droit de chacun au désir, souvent au détriment du droit de tous. Le vieil adage - la liberté de chacun s'arrête là où commence celle de l'autre - est franchement expiré.

Mots-clés: l'ère des droits de la psychanalyse, le désir de l'analyste, le droit à la jouissance.

 


Citacão/Citation: COELHO DOS SANTOS, T. Quando os desejos se tornam direitos. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 08/06/2013 / 06/08/2013.

Aceito/Accepted: 10/06/2013 / 06/10/2013.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.