Nos dias atuais, o cuidado em relação à criança vira tratamento, o inquieto deve ficar imobilizado e o controle é feito de maneira contínua, implícita e internamente, sob a ação de substâncias químicas, não mais sob a ordem dos pais ou sob o constrangimento do professor, nem do adulto que naquele momento é o responsável pela criança.
Hoje, em tempos hipermodernos (Lipovetsky & Charles, 2004), em territórios sem fronteiras, com todos os avanços tecnológicos, a questão do comportamento infantil não está mais sendo analisado como sendo uma questão educacional, e sim como objeto de preocupação e de intervenção de vários especialistas da área de saúde.
Cada vez mais se explica o controle sobre a criança como ocorrendo na química cerebral no nível das microestruturas, ou seja, o controle pode ser exercido através da ação de psicotrópicos que a disciplina por um determinado período. Assim, com o uso do medicamento como uma estratégia de controle, a inquietude, a indocilidade, a desatenção e as condutas indesejáveis de determinadas crianças passaram a ser vistas e explicadas de um modo radicalmente diferente. Tais dificuldades ou “distúrbios” da conduta infantil passaram a ser atribuídos a variações neuroquímicas no funcionamento cerebral. Estamos convivendo com sofrimentos codificados em termos de uma nomeação própria do discurso médico, que se socializa amplamente e passa a ordenar a relação do indivíduo com sua subjetividade e seus sofrimentos. Atualmente, crianças com problemas de condutas hiperativas e de atenção são facilmente estigmatizadas com o diagnóstico de TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Esse transtorno vem sendo o diagnóstico infantil mais frequente e difundido atualmente, tendo recebido nos últimos anos uma enorme quantidade de investigações de diversas áreas de conhecimento, a respeito de sua causa, diagnóstico e tratamento.
Nesse pequeno artigo, não temos a intenção de descrever o TDAH, definido pela ciência como um transtorno de base neurobiológica que se manifesta na tríade destacada no quarto volume do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM IV, 1995): hiperatividade, déficit de atenção e impulsividade. Pretendemos, sim, levantar algumas questões a respeito baseadas em um caso clínico. A DSM IV estabelece três diferentes tipos clínicos de TDAH que se diferem de acordo com as manifestações comportamentais: tipo predominantemente desatento, hiperativo-impulsivo ou combinado. O diagnóstico é fundamentalmente clínico e envolve: exame da criança, entrevista com os pais e um questionário enviado à escola – principal responsável por encaminhamentos – para a coleta de informações. Este questionário possui dezoito perguntas e deve ser respondido pelo professor ao avaliar o comportamento da criança. Ao responder afirmativamente a seis itens de um subgrupo, o diagnóstico de TDAH está feito. Questões vagas compõem este material, como por exemplo: distrai-se com estímulos externos, perde coisas, comete erros por descuido, fala em excesso... O tratamento recomendado é à base do composto químico metilfenidato, derivado anfetamínico comercializado no Brasil com o nome de Ritalina ou Concerta, associado na maioria das vezes à terapia cognitivo-comportamental.
Uma outra abordagem
Freud, em “A questão da análise leiga”, é interpelado por um interlocutor (hipotético) acerca do tratamento psicanalítico com crianças: “o senhor submete criancinhas à análise [...] Não é muito arriscado para essas crianças?”, e Freud responde: “Dá muito bom resultado” (1926, p. 244). Ou seja, Freud nos autoriza a tratá-las! Assim, nós acreditamos que muitos casos clínicos apresentados por crianças que neuropediatricamente têm a exacerbação de seus sintomas diagnosticados pela sigla TDAH podem ser entendidos como uma manifestação psíquica de que alguma coisa naquela história familiar está fora do lugar.
Freud nos mostra que para que o Outro materno possa interpretar o grito do bebê e transformá-lo em mensagem, isto é, inseri-lo na ordem simbólica e no mundo da demanda, é preciso que ele esteja atento ao bebê e lhe dê um lugar especial de cuidados e investimento.
Lacan, se distanciando dos teóricos da relação de objeto, diz que é da ordem da impossibilidade entender a relação da mãe com o filho se não for através da introdução do falo, em sua função imaginária, como um terceiro termo. Tanto em Freud quanto em Lacan, a criança vem, a partir da equação freudiana pênis-bebê, como falo que preencheria e desvelaria a falta feminina.
No decorrer de sua discussão sobre as psicoses, Lacan elabora a construção do conceito do Nome-do-Pai, definindo-o como um significante, portanto, da ordem simbólica. A partir do Seminário, livro 3: as psicoses (1954-55) – momento em que a perspectiva lacaniana era de que o registro simbólico determinava e organizava os registros do imaginário e do real – o significante Nome-do-Pai passa a ser o eixo das articulações lacanianas a respeito da função paterna. O significante Nome-do-Pai, enquanto ordenador do campo do desejo e do gozo, é o verdadeiro representante da lei (Lacan, 1955-56).
Quando Lacan teoriza o Nome-do-Pai, ele não fala de função materna, mas, sim, da mãe. Nesse momento, o peso do simbólico recai sobre o pai. A questão do significante, da linguagem, da lei, da ordem simbólica, vem com o pai. Para Lacan, é preciso que o pai esteja morto, simbolizado. É nesse pai que ele vai reconhecer o suporte da função simbólica. O pai, por ser o portador da lei, deve apresentar-se como capaz de mediar e, assim, realizar a aparente contradição de efetuar na criança a privação e mais tarde, a concessão de objetos substitutivos. É o pai que, em sua função, interdita à mãe o objeto do seu desejo, e também desvela a privação materna do falo. Então, se em um momento inicial, o pai real priva o filho da posse da mãe, ele também aponta a frustração da mãe diante do real da sua própria castração.
Lacan (1956-57) expõe claramente que, em um primeiro momento da estruturação do sujeito, a mãe aparece primordialmente como todo-poderosa, devoradora, e que não se pode eliminá-la desta dialética fundamental para se entender o que quer que seja. Lacan é tão claro ao falar da mãe devoradora que Miller escolhe a devoração como tema de capa para O Seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-57), através de um óleo de Goya, representando Saturno devorando seu filho. É nesta ocasião que Lacan trata do engodo da criança diante da mãe no Édipo, no qual a criança, a fim de satisfazer o desejo da mãe, que não pode ser satisfeito, se coloca como objeto, objeto esse que é fundamentalmente enganador. A partir desta relação imaginária, chamada por Lacan de tapeadora, a criança atesta para a mãe que pode satisfazê-la quanto àquilo que lhe falta. Esse lugar de objeto se abre para a criança porque, de algum modo, a mãe onipotente fez transparecer que algo lhe falta. Lacan afirma que a questão é saber por qual via a criança vai lhe dar o objeto faltoso, “que sempre falta a ela mesma” (Lacan, 1956-57, p. 196).
Para a mãe, o filho aparece como um substituto do falo que lhe falta e é nessa dimensão que a criança lhe proporciona satisfação. Com a simbolização primordial, abre-se para a criança a possibilidade da mãe desejar algo para além dela mesmo, o falo. O acesso à significação fálica se dará para a criança a partir do que Lacan nomeou de metáfora paterna, que diz respeito à função do pai, função de apresentar a lei da proibição do incesto, a herança da castração. A criança deseja o seio. E a mãe, o que quer? “É na relação com a mãe que a criança experimenta o falo como o centro do desejo dela.” (Lacan, 1956-57, p. 230). Assim, o filho identifica-se com o falo, enquanto objeto imaginário, a fim de preencher o desejo da mãe. Na relação inicial mãe-filho, a criança, ao se identificar com o falo, atesta para mãe que pode satisfazê-la quanto àquilo que lhe falta.
Temos, então, o falo como elemento que se sobressai na relação mãe e filho, sendo que o acesso a ele só é possível a partir da dimensão faltosa da mãe, ou seja, em sua dimensão desejante. No primeiro tempo do Édipo, fica claro que o desejo do filho nasce subordinado ao desejo da mãe, mas ainda assim, o desejo de ambos não se sobrepõem, há a marca de uma falta. Lacan mostra que a “relação central de objeto, aquela que é dinamicamente criadora, é a da falta” (Ibid., p. 51). A noção de falo aponta a falta no campo do Outro, marca que tanto o filho quanto a mãe precisam perder.
Faz-se necessário que o filho possa organizar sua demanda diante da escansão da presença e da ausência materna. Esse jogo de presença-ausência da relação mãe-filho não dá lugar para que o terceiro termo da relação se presentifique. É no segundo tempo do Édipo que há de fato a entrada desse terceiro termo, que é o falo enquanto falta. Para haver a construção simbólica, tem-se que passar pelo jogo do Fort-da, pela simbolização primordial. Esse jogo é descrito por Freud e enfatizado por Lacan, tendo o carretel menos a função de manter a presença e mais a de permitir a criança suportar a ausência. O que faz com que se suporte a frustração é a possibilidade da atividade simbólica.
Para explicar a metáfora paterna, Miller (1999) marca que Lacan precisou introduzir a mãe que vai e que vem como um significante que aparece e desaparece. Com a metáfora paterna, constatamos que, em um primeiro momento, o desejo da mãe (DM) incide sobre o filho. Posteriormente, esse desejo é barrado, ou seja, ocorre a castração na mãe. A partir daí estabelece-se para o filho o desejo submetido à lei. Antes ele estava submetido apenas à demanda materna. Na ausência da metáfora paterna, o que ocorre é a falta de identificação do sujeito ao pai, ao traço unário e ao desejo do Outro, produzida pela função fálica.
Com a operação da metáfora paterna, o significante do Desejo da Mãe é substituído pelo significante Nome-do-Pai e, dessa forma, o desejo materno em um segundo momento deve aparecer na fórmula da metáfora paterna como sendo barrado. Dessa maneira, o sujeito deixa de estar submetido apenas à lei do capricho materno. A lei instaurada pelo Nome-do-Pai é uma lei que incide sob o filho e a mãe já que a própria mãe deve se submeter.
O Nome-do-Pai funciona como um ponto de ancoragem para o filho, já que é um significante que vem ordenar toda a cadeia de significantes estabelecendo uma nova lógica e tendo a função de fazer um ponto de basta no deslizamento metonímico do desejo enigmático da mãe. Sendo assim, a lei trazida pelo Nome-do-Pai é apaziguadora para a criança, pois impede que ela fique submetida ao amor caprichoso da mãe.
O que faz papel de Nome-do-Pai para o sujeito? Que lugar ocupa um filho na economia libidinal de uma mulher? Na clínica com crianças nos deparamos o tempo todo com essas perguntas e com a resposta que a criança dará através de seu sintoma.
Mamãe faz cem anos
No filme Mamãe faz cem anos,do diretor Carlos Saura (1932), uma família espanhola organiza uma festa para comemorar os cem anos da matriarca. Mas, atrás da aparente felicidade, alguns filhos estão na verdade interessados em sua herança e aproveitam esse festejo para planejar a morte da mãe sem causar suspeitas. No filme, os irmãos se reencontram na casa materna. Essa mãe, uma grande e gorda senhora que precisa ser carregada em seu trono, é tão poderosa que determinado filho escuta sua voz mesmo estando fora da casa. A filha pensa na mãe quando vai escolher o que vestir. Na hora do jantar, a matriarca exige que seja posto à mesa o lugar do filho que está na guerra e, além disso, coloca uma foto representando-o. Para esta mãe a falta não pode aparecer. Na festa a grande mãe faz sua aparição surpreendente pelos ares e, no final do filme, quando todos acham que a mãe está morta, que conseguiram mata-la, ela ressurge com a ventania.
Uma vinheta clínica
Tereza, mãe de Yan, procura atendimento para o filho de doze anos porque ele vem tendo muitos problemas na escola. Yan tem o diagnóstico médico de TDAH, faz acompanhamento trimestral com o neuropediatra e toma Ritalina há dois anos.
A mãe conta que o filho é dócil e gentil ao mesmo tempo em que é muito agitado, levado, respondão, nervoso e desobediente. Conta que o humor do filho também é muito oscilante. Ela se preocupa com a falta de motivação do menino. “Ele tem todos os brinquedos e não liga para nenhum”.
Diz que faz de tudo para educá-lo da melhor forma possível. Pergunto como ela faz isso. Ela me conta que não grita, não dá palmadas, que conversa muito com o filho explicando sempre porque está zangada. “Eu leio todos os livros para pais que têm filhos com TDAH”.
Tereza reclama que “seu menino” não presta atenção no que ela diz, que é como se ela estivesse falando com as paredes. Que ele não faz nada se não for mandado várias vezes (“como tomar banho, escovar os dentes, arrumar a mochila...”). Que o dia a dia é muito desgastante, pois ela precisar fazer as suas coisas e as do filho. A mãe sempre senta com Yan para fazer o dever de casa. “Eu sento e ele faz em pé pulando sem parar. Faz uma parte, pula, faz a outra, pula...”.
No colégio Yan está sempre tendo problemas, tanto com os professores quanto com os colegas. Só nesse ano ele foi suspenso três vezes. Uma por ter isolado o brinquedo de outro menino e as outras duas por ter gritado com a professora. Pergunto a Tereza como ela reagiu a essas situações e ela me conta que colocou a televisão, o wii e o ds de castigo. Ela tira o que o filho gosta e diz que os objetos estão de castigo e não o menino.
Os pais de Yan se separaram quando ele tinha cinco anos. O pai foi morar na região serrana do Rio de Janeiro e passou a visitar o filho esporadicamente. Quem quis a separação foi o pai e, desde então, Tereza diz viver para o trabalho e o filho. Tereza também é filha única de pais já falecidos. Ela tem uma prima com quem cortou relações, pois a mesma falou que se Tereza continuasse criando Yan dessa maneira ele se tornaria um “viadinho”.
Yan teve dificuldade para se alfabetizar e fez tratamento fonoaudiológico por dois anos, pois trocava letras. Sempre deu trabalho para comer, come pouca variedade e quantidade. O menino não senta para fazer as refeições, “pula de um lado para o outro como um cabritinho”.
Tereza me conta com entusiasmo que os finais de semana são dedicados ao filho. Que no sábado ela refaz com ele os deveres que ele não conseguiu fazer em sala durante a semana. Todas as sextas-feiras Tereza “xeroca” o caderno de um colega de Yan para ver o que o filho não copiou do quadro. No domingo, leva-o ao parque, à praia, à patinação no gelo, ao boliche, ao cinema..., mas acrescenta que nenhum desses programas anima muito o filho. Segundo Tereza, domingo é o dia da recompensa. Quando pergunto de que ela precisa recompensá-lo aos domingos, ela me fala que as crianças com TDAH precisam ser recompensadas depois de cobradas.
A mãe conhece todos os programas de televisão que Yan gosta e sabe nomear seus personagens preferidos. Conta que até de bola ela brinca se o filho estiver sem a companhia de outra criança. Tereza não consegue entender como pode se dedicar tanto ao filho e, ainda assim, ele dar tanto trabalho. “Parece que ele não reconhece tudo o que eu faço, me desafia, desobedece, grita”. Complementa contando que a fonoaudióloga lhe deu os parabéns por ser uma mãe tão dedicada e por entender tão bem a doença do filho.
A distância entre a casa dos pais de Yan impede o pai de ver o filho com frequência, mas não impede que passem juntos alguns finais de semana. Pergunto a Tereza por que isso não acontece. Ela me diz que, logo após a separação, ela não deixava Marcos levar o filho porque ele não ia ter cuidado com a alimentação do menino. Com o passar do tempo, ele parou de chamar. Hoje pai e filho se encontram quando Marcos vem ao Rio, mas isso não tem nenhuma regularidade.
Quando conheço Yan me chama a atenção o fato dele parecer muito mais novo do que é. O menino é pequeno, magro e sua fala é bastante infantilizada. Yan me conta que está indo ao meu consultório para ficar livre da agitação e, assim, parar de ter problemas na escola.
Entro em contato com a escola e a orientadora pedagógica me descreve Yan como um menino muito agitado, “chato” com os amigos e dengoso. Diz que ele apresenta dificuldades de aprendizagem, contudo, não tem déficit cognitivo.
Yan responde às minhas perguntas sempre com um “não sei” ou “pergunta isso pra minha mãe”. Tento saber sobre o colégio, sobre programas de televisão, sobre vídeo games, mas nada parece despertar o interesse dele. Um dia, ele me fala que gosta de filme de terror, mas que a mãe não o deixa ver porque acha que ele terá pesadelos. Pergunto se ele costuma ter pesadelos e aí começamos a ter um elo para conversas, seus sonhos / pensamentos de terror sobre personagens de tecido. Todos esses personagens têm a mesma morte, são esmagados em uma máquina “enganadora”. Essa máquina tem a aparência de uma máquina de lavar roupa e quando os personagens entram lá para serem limpos saem despedaçados porque na verdade a máquina é uma trituradora. Passamos várias sessões conversando, escrevendo, fazendo contas, tudo com o tema da máquina enganadora / trituradora.
Em um primeiro momento, falo com o pai de Yan apenas por telefone. Mas logo informo a importância dele no tratamento do filho e Marcos vem ao Rio para uma entrevista comigo. Em nosso encontro ele conta que, durante um tempo, tentou levar o filho para passar finais de semana com ele na serra. Mas Tereza colocava tanta dificuldade que acabou desistindo. Conta que quando casado também tinha pouca relação com o menino, pois Tereza não deixava ele se aproximar dizendo que ele não sabia fazer as coisas. Que se separou porque se sentia sozinho em casa, sem mulher e sem filho. Diz ainda que quando vem ao Rio ver Yan ela lhe entrega uma lista de recomendações de comidas, horários e etc. “Parece que o garoto é um bebê”, diz o pai. Pai e filho têm em comum o amor pelo futebol e disso a mãe não participa. Marcos diz que Tereza está sempre embarreirando o filho, que ela só faz marcar impedimentos e que, assim, o menino nunca vai fazer gol. Digo que isso está me parecendo um jogo de dois jogadores sem juiz. Ele ri e diz que o juiz pediu demissão.
Em Julho, Yan tira uma semana de férias do trabalho e vem ao Rio buscar o filho para ficar com ele. Não foi uma negociação fácil com Tereza. Ela ficou com o medo de que o menino não comesse, de que sentisse frio, ficasse doente e não tomasse a Ritalina da “forma correta”. Acaba deixando o menino ir, mas combina com o neuropediatra que Yan ficaria sem o remédio ao longo dessa semana. Nesse momento de negociação Tereza me fala que, além de toda a preocupação com o filho, ela tem medo de ficar sozinha, que tem doze anos que não fica sozinha em casa.
Na sessão seguinte às férias de julho, Yan chega todo animado falando que foi, com o pai, conhecer o lugar aonde os jogadores da seleção brasileira treinam, que andou a cavalo e jogou futebol todos os dias, até na chuva. Conta ainda que nesses dias não tomou seu “remendinho”. Pergunto o que ele não tomou e o menino, sem se dar conta do equívoco, repete “meu remendinho”. Esse significante usado por Yan me chamou muita atenção: remendinho. Não será mesmo essa a melhor definição para o remédio no caso de Yan? Um remendo que tampona a falta da mãe, mas aparenta toda fragilidade de um remendo.
Após as entrevistas, nossa hipótese é pensar o diagnóstico de TDAH dado a Yan pelo neuropediatra como expressão subjetiva e não como um quadro clínico. Essa ideia marca uma distância entre a visão psicanalítica e a visão da biologia, já que a última, dento da perspectiva cultural, aposta na ciência se apoderando da subjetividade.
No mundo contemporâneo, o significante Nome-do-Pai declina na cultura e os pais parecem não exercer como antigamente a função organizadora na família enquanto representantes da lei e dos valores morais. Deixam, assim, o sujeito alijado do campo do desejo, sem limite para o seu gozo, e invadido pela angústia, buscando no mundo externo parâmetros que o permitam se organizar, num apelo ao Pai.
Dedicar-se com o seu sintoma ao gozo da mãe, sempre implicará para uma criança em um impedimento quanto ao seu acesso às vias do desejo. Deixar de ser a tampa do furo do Outro, desalojando-se do lugar que ocupava no fantasma da mãe, produzirá como consequência a operação de uma abertura, uma mudança na posição subjetiva dessa criança, que terá, assim, a possibilidade de aceder ao seu desejo. Trata-se aí de uma operação de separação.
Podemos perceber o impasse de grande parte dos sintomas infantis se apresentando na passagem do segundo para o terceiro tempo do complexo de Édipo. Neste momento, o sintoma surge para não deixar às escâncaras a carência de um pai que não exerce de forma eficaz sua função de separador e, por isso mesmo, não é capaz de transmitir sua principal herança: a simbolização da castração. O sintoma infantil, como elemento de regulação e contenção da angústia, representa para a criança nesse momento um apelo ao pai, vale dizer, um pedido de legislação.
No caso apresentado, vemos que o menino, em um primeiro momento, jogou o jogo ilusório de ocupar o lugar de desejo da mãe, mas sem conseguir ter o suporte identificatório necessário para passar do lugar de “ser o falo” da mãe para o de “ter o falo”. Essa identificação, vale apontar, também é imaginária.
Não será o sintoma de Yan uma resposta ao disfuncionamento familiar? O aprisionamento da criança ao desejo materno, do ponto de vista dinâmico, aponta para uma posição subjetiva na qual não haveria um movimento intrapsíquico capaz de direcionar o Eu ao encontro do ideal-do-eu. É neste intervalo, sem direção, que Lacan indica o ponto em que a criança se deixa capturar pela fantasmática materna. Apostamos agora que a entrada do pai de forma mais representativa na vida de Yan possa redirecioná-lo e que o trabalho analítico o ajude a fazer a passagem, bastante delicada, do Desejo da Mãe ao Nome-do-Pai.
Notas
- Este texto integra minha pesquisa de doutoramento junto ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. Conta com o fomento da CAPES.
- Parte deste trabalho foi apresentada no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, em 07/09/2012, em Fortaleza (CE).
Referências bibliográficas
FREUD, S. (1926) A questão da análise leiga, emEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas, Rio de Janeiro: Imago, 1977, vol. XX, p. 205-296.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
________ (1956-57) O Seminário. Livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995.
________ (1957-58) O Seminário. Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LIPOVETSKY, G.; CHARLES, S. (2004). Os tempos hpermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
MILLER, J.-A. (1994) Relation d’Objet I, em: La lettre mensuel de l’ECF. N. 28, Paris, 1994.
DSM IV(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), 4ª Ed. Texto revisado, 1995.
Resumos
Mommy turns a hundred years old: The ADHD and the devouring mother nowadays
The theme of devouring has been studied by Lacan since the third Seminar. In the fourth Seminar, it is directly related to the mother’s desire towards the child and the intervention of the Name-of-the-Father that bars the mother from taking the child as an object of her desire. In this paper we present a fragment of the clinic of a twelve year old boy who, through his frenzy defined as ADHD frustratingly tries to create a field between him and the mother. This way we will present this symptom as a point of fragility in the Name-of-the-Father when faced with the desire of the devouring mother. The excessively moving body and a lack of interest in everything are related to the suffering of the boy trying to protect himself somehow against the motherly demands.
Key words: psychoanalysis, mother's desire, child, son, ADHD.
Maman fête la centaine: le TDA et l’actualité de la mere dévoreuse
Le thème de la dévoration est approché par Lacan à partir Seminaire 3. Dans le Seminaire 4, il est directement liée au Désir de la Mère envers l'enfant et à l’intervention du Nom du Père, qui interdit la mère de prendre l'enfant comme un objet de son désir. Dans cet article, nous présentons un fragment clinique d'un garçon de douze ans qui, par son agitation nommée TDA, tente désespérément de créer un champ entre lui et sa mère. Ainsi, nous considérons ce symptôme comme une faiblesse du Nom du Père par rapport au “dévoreur” Désir de la Mère. Le corps qui se bouge en excès et le manque d'intérêt pour tout ont rapport à la souffrance de l'enfant qui, en quelque sorte, tente se protéger contre les demandes maternelles.
Mots clés: psychanalyse, Désir de la mère, Nom-du-Père, enfant, fils, TDA.
Citacão/Citation: LOPES, A.C.D. Mamãe faz cem anos. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 21/08/2012 / 08/21/2012.
Aceito/Accepted: 16/10/2012 / 10/16/2012.
Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited. |