Questões iniciais
Atualmente, muito mais do que interrogar as condições que levam um casal a se separar, os psicólogos têm se debruçado sobre os efeitos produzidos nos filhos pela separação dos pais. É unânime o reconhecimento de que esta situação é traumática e causa muito sofrimento para as crianças, além de outros prejuízos de naturezas diversas que podem perdurar por mais tempo do que se imaginava. Os filhos têm sido apontados como os membros da família que mais sentem a separação, mesmo quando esta é unanimemente reconhecida como a melhor escolha para um casal.
De acordo com as pesquisas que têm sido desenvolvidas pelos psicólogos, as formas que esse sofrimento adquire nas crianças variam de acordo com a faixa etária:
- Choro, agitação, alterações nos batimentos cardíacos e aumento da pressão arterial sinalizam a expressão dos sentimentos nos mais novos. Mesmo os bebês que ainda não entendem o que está acontecendo já são capazes de captar os estados de tensão presentes no ambiente e de se “darem conta” de que algo não vai bem.
- Atitudes medrosas e regressivas caracterizam as respostas das crianças em idade pré-escolar. Este grupo seria o mais atingido pelos efeitos nefastos da separação porque, em função do pouco desenvolvimento cognitivo, as crianças dessa idade não conseguem compreender o que, de fato, está acontecendo na família.
- Fantasias de que a separação dos pais é temporária caracterizam as respostas das crianças entre quatro e cinco anos de idade. Afinal, é isso o que ocorre quando elas brigam com os amigos.
- O sentimento de culpa surge geralmente entre as crianças que estão entre os cinco e os seis anos. Elas imaginam terem sido a causa da separação dos pais, seja porque haviam “pensado” nisso ou até mesmo “desejado” que isso acontecesse, seja porque fizeram alguma coisa errada e a separação seria uma consequência deste erro.
- Sentimento de abandono, agressividade dirigida aos pais, prejuízo no rendimento escolar e alterações de comportamento são mais frequentes entre as crianças acima de seis anos. Se, por um lado, elas já conseguem compreender melhor as razões que deram lugar à separação dos pais, por outro, a pouca maturidade ainda não as livra dos efeitos nefastos deste tipo de solução para os impasses conjugais.
- Ansiedade, instabilidade emocional, baixa autoestima e dificuldade para manter relacionamentos amigáveis ou amorosos por medo de traição, mágoa ou abandono são citadas como consequências colhidas em longo prazo, geralmente entre pré-adolescentes e adolescentes (Revista Crescer, s/d; Granato, s/d; Maneira, s/d; Prado de Toledo, 2007; Rico, s/d; Tessari, 2005).
Apesar dos dados acima, essas pesquisas também apontam outro aspecto: há indicações de que a separação não causa só efeitos danosos. Existem indivíduos que conseguem superar as perdas em jogo nessa situação. Muitas crianças apresentam maior capacidade adaptativa diante do afastamento de um dos pais, da perda da segurança de pertencer a ambos e de ser cuidada pelos dois, da mudança na rotina familiar e no cumprimento das tradições que eram praticadas.
Como é possível verificar, a psicologia tem pesquisado tanto os bons quanto os maus efeitos da dissolução familiar. Mas existem pontos sobre os quais as reflexões psicológicas deixam muito a desejar: elas não interrogam o que significa para uma criança a separação dos seus pais, muito menos qual é a natureza da perda ocorrida nesses casos. A descrição pormenorizada dos aspectos emocionais, a divisão dos efeitos por faixas etárias e a quantificação dos dados a partir dessas categorias não permitem refletir sobre a função da família na constituição subjetiva, sobre a natureza do sofrimento psíquico de uma criança nesta situação, sobre as razões pelas quais as crianças em idade pré-escolar são as mais atingidas pelos efeitos negativos da separação. Será que o “pouco desenvolvimento cognitivo” é mesmo o grande vilão da história? É isto o que impede que as crianças entendam o que está acontecendo com a família? Onde situar o processo cognitivo, afinal? Quais as perdas e os prejuízos existentes para a criança quando os seus pais se separam?
A família e o seu papel na constituição psíquica
A psicanálise, ao contrário das psicologias, parte de uma teoria do sujeito construída a partir do que a estrutura: a diferença sexual, que não permite pensar os sexos como equivalentes ou complementares. Disso resulta que a escolha do parceiro sexual por cada indivíduo tem como causa a hiância que caracteriza a partilha dos sexos e não outra coisa. Se um casal forma uma família, esta é efeito do fato de que a cada corpo sexuado corresponde uma economia peculiar de gozo que fornece as razões pelas quais os casais não se entendem perfeitamente. É porque tudo o que se refere ao desejo e ao gozo é inconsciente que ninguém sabe nada sobre o que anima um corpo sexuado na busca por outro corpo sexuado. Se o que diz respeito à causa do desejo não pode ser dito por ninguém, então a apreensão psíquica do que é uma família depende da criação de uma ficção.
Ao criar a psicanálise, Freud mostrou que é sob a forma mítica que cada sujeito responde, de modo singular, à questão relativa à sua própria origem. A percepção pela criança de um desencontro relativo ao entendimento dos pais entre si e também de que o interesse de cada um vai muito além da existência dela confronta-a com questões importantes para a sua própria estruturação. O enigma do gozo do casal parental, que necessariamente deve excluir a criança, é o motor que a leva a construir respostas para as seguintes perguntas: Quem sou eu? Que papel eu tenho entre os meus pais? Por que vim ao mundo?
Como efeito dessas interrogações, é possível definir uma família como uma narrativa que obtura a fenda existente entre o desejo que deu lugar ao ato sexual e o modo como cada parceiro se tornou o genitor da criança resultante deste ato. As histórias de família contam como foi subtraído do sujeito o gozo julgado como supostamente merecido por ele (Miller, 2007). A existência da família prova que o ser humano não é dominado pela biologia, mas estruturado por complexos simbólicos decorrentes do modo como um homem e uma mulher encarnam a sua relação com o desejo (Lacan, 1938; 1969).
Até deparar-se com estas perguntas, a criança se confunde com o objeto em jogo no gozo dos pais. Ela pensa que é a causa do gozo. Esse engano faz dela inicialmente uma peça imprescindível àquela união. Imaginando-se neste lugar, o seu valor é grande. Entretanto, como se trata de uma localização imaginária, em algum momento, a criança experimentará a não complementaridade entre ela própria e o lugar que julga ocupar. Esta diferença irá forçá-la a construir outra explicação para o gozo parental que não passe por ela, mas da qual ela seja consequência. Este período nunca é atravessado sem angústia. A angústia de castração é o operador que permite à criança: 1) libertar-se do lugar imaginário que ela julgava ter enquanto objeto responsável por suturar a fresta que estrutura o leito conjugal e 2) constituir-se enquanto um eu capaz de situar-se em um dos lados da partilha dos sexos.
Freud (1914) descobriu que uma entidade como o eu não existe desde a origem, que sua existência depende de uma “nova ação psíquica”, isto é, de uma identificação da criança com o outro, seu semelhante. Para ver-se integrada em um eu passível de ser amado é preciso que a criança tome a imagem do outro como objeto de identificação.
Lacan (1949) conceituou este momento como “estádio do espelho” para mostrar que a constituição do eu depende de que a criança receba em espelhamento a imagem do outro como se fosse a sua própria. Até o momento em que se unifica, por meio deste engodo, o eu era um conglomerado de pulsões fragmentadas. Na origem, indiferenciado no id (o mundo externo, o outro), o que havia no lugar do eu eram as pulsões parciais. Isso quer dizer que só se pode falar de narcisismo e de amor próprio a partir do momento em que um eu foi constituído. Antes da existência do eu não é possível falar de autoestima, de amor de si, porque ainda não existe nenhum “auto”, nenhum “si”. O amor próprio, ou seja, a possibilidade de tomar a si mesmo como objeto de investimento libidinal, é efeito de uma ação: a da identificação da criança com o amor do outro, pois, originalmente, é o outro quem ama a criança quando a toma como objeto de cuidados e proteção, e não o contrário. É na medida em que o indivíduo acredita que está destinada a si a imagem que ele que vê refletida no olhar do outro que uma parte da satisfação pulsional, a libido, fica capturada, enquistada na imagem do eu. O amor do outro pela criança torna-se, então, amor da criança por si mesmo, amor próprio.
Freud afirmou que a libido é “a energia total disponível do ego” (1940 [1938], p. 175). Mas esta afirmação depende de que compreendamos o importante papel dos cuidados maternos, do investimento libidinal que, enquanto mãe, a mulher faz sobre a criança tomada como substituto do falo que ela não tem. A libido que fica disponível no ego não está ali desde sempre. Originalmente, ela vem do mundo externo, do amor do outro. É somente por um efeito imaginário de espelhamento, por um efeito de ilusão, que o indivíduo pode tomar esse investimento libidinal, esse amor do outro, como amor de si mesmo.
E o papel do pai? Como é que a criança entra na economia amorosa masculina? Aqui, mais uma vez, o texto freudiano “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), lido à luz do Édipo e do complexo de castração, torna-se um excelente guia para responder a essa questão. Para Freud, os homens se caracterizam pelo amor objetal completo do tipo anaclítico (ou de ligação) porque, diante da ameaça de castração, eles renunciam ao narcisismo originado do ego ideal e transferem-no para o objeto sexual que deverá ser amado. Quando escolhem uma mulher, o que eles amam nela, na verdade, é a parte do próprio narcisismo ao qual renunciaram para aceder à posição sexuada e ao desejo correspondente. É nesta estrutura sintomática que a mulher pode ser situada como objeto causa do desejo masculino e a criança, como um dom de amor.
É por isso que Miller (2007) pôde formalizar que, do ponto de vista conceitual psicanalítico, “a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo Desejo da Mãe e pelo objeto a”. Em sua essência, ela é “unida por um segredo [...] sobre o gozo”, sobre o objeto do gozo em jogo para o pai e para a mãe. Isso quer dizer que o lugar que a criança constitui para si, enquanto objeto causa do desejo, depende do modo como seu pai e sua mãe, respectivamente enquanto homem e mulher, se alinharam à lei da castração. É por esta razão que Lacan (1969) localizou a criança no lugar de sintoma parental, ou seja, como aquilo que “pode representar a verdade do casal familiar” (Lacan, 1969, p. 369-370):
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“[...] o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. [...] A criança realiza a presença do [...] objeto a na fantasia. Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica” (Lacan, 1969, p. 369-370, grifo do autor). |
Portanto, para que a criança não realize o objeto em jogo na fantasia materna, mas apenas o localize e o interprete simbolicamente, é preciso que sua mãe tenha sido colocada por um homem no lugar do sintoma que o caracteriza enquanto tal. Ou seja, é preciso que um homem tenha sido capaz de tomar uma mulher como objeto causa do seu desejo (a), razão pela qual ele goza com o fantasma . Já no que se refere à mulher, seu interesse deve ser o de “receber do homem o filho como o equivalente do falo que ela não tem”, sendo isso o que permite a sua identificação e o seu acesso ao discurso amoroso (Zucchi et Coelho dos Santos, 2006, p. 117). Esta localização da mulher depende de que ela consinta em ocupar a posição de objeto que o desejo do homem lhe designa, ou seja, depende do consentimento dela relativamente à existência da castração.
Diferentemente da psicologia, para a psicanálise, o campo amoroso não deve ser pensado a partir da suposta complementaridade amorosa entre os parceiros sexuais ou da atração entre os opostos. A escolha do parceiro amoroso e sexual é dependente da estrutura do narcisismo orientada pelo inconsciente, isto é, pelo saber elaborado por cada ser humano, em sua tenra infância, acerca da inexistência da relação sexual entre o casal parental. A elucubração inconsciente de saber sobre o gozo decorre do fato de que os gozos masculino e feminino não são idênticos nem tampouco suplementares. O parceiro sexual é sempre um parceiro libidinal, o que faz com que a parceria subjetiva seja mediada pelo sintoma e nunca uma “ligação direta” de um sexo com o outro (Zucchi et Coelho dos Santos, 2006).
O laço sexual sintomático entre um homem e uma mulher é o que funda a civilização, sendo a família o resíduo dessa união. Ela prova a não relação entre os sexos na medida em que uma criança é o produto do desejo de um homem por uma mulher e não o produto de um desejo anônimo. Isso quer dizer que a presença encarnada dos pais no seio da família, dando provas da sua relação com o desejo que habita neles, é imprescindível para organizar libidinalmente o lugar da criança no mundo. Quando o Nome-do-Pai encarna em um homem o laço entre o desejo inconsciente e a Lei, ele se responsabiliza pelas consequências desse desejo. Esta é a condição para a transmissão da castração. Por sua vez, o Desejo da Mãe, tendo sido produzido pelo encontro da menina com a diferença sexual, faz com que se possa ver “a marca do interesse [dela] particularizado” (Lacan, 1969, p. 369) nos cuidados especiais que é capaz de dispensar ao seu filho e não a qualquer outra criança. É nesse caldo sexual que uma criança se constitui como objeto a, objeto que supre a diferença entre os desejos do homem e da mulher, portanto, como afirmou Lacan, objeto representante da “verdade do casal familiar”: a não complementariedade sexual.
Constituir-se enquanto sintoma do casal parental é o mito que serve como ponto de partida para a criança se engatar libidinalmente no mundo externo, o das outras relações sociais, da rede de trocas. Sustentada inconscientemente pela ficção que dá nome e valor ao seu lugar no desejo do Outro, a criança pode se extrair do leito conjugal e se abrir aos laços sociais existentes fora dos muros familiares, pode frequentar a escola com alguma tranquilidade, fazer novos vínculos afetivos, brincar com outras crianças, viver novas experiências e desenvolver as condições necessárias à realização de atividades intelectuais mais elaboradas no futuro. Isto quer dizer que o desenvolvimento cognitivo normal depende do recalque da posição de objeto que caracteriza a criança em seus primeiros anos de vida e também do recalque dos desejos incestuosos resultantes desse processo.
O mito oferece um contorno libidinal às crianças como reparação à perda narcísica causada pelo complexo de castração. Esse contorno assegura a continuidade do bom funcionamento psíquico porque permite que a criança encontre condições de construir reparos e de obter conforto diante do sofrimento e das experiências de angústia provenientes das outras perdas, desilusões e lutos que serão produzidos pela sua entrada no mundo social.
Consequências psíquicas das separações
Diante do exposto acima, cabe perguntar: o que ocorre quando as famílias se desfazem ou mesmo quando elas nem chegam a se constituir enquanto tal?
O afeto proveniente da presença dos pais é o que permite à criança construir e ocupar imaginariamente um lugar privilegiado no desejo do Outro. A privação precoce dessa experiência retorna sob a forma de uma diversidade de sintomas na medida em que prejudica ou até mesmo impede a construção deste lugar libidinal imaginário necessário ao desenvolvimento da vida social como um todo.
Quanto mais precoce a perda relativamente à constituição familiar, mais difícil é para a criança simbolizar-se a “si mesma”, bem como aquilo que deve perder para constituir-se na perspectiva egoica. O lugar de objeto privilegiado na economia de gozo do casal parental é desconstituído, sofre fragmentações ou até mesmo pode ser impedido de ser suficientemente construído. A essa queda da criança em relação ao lugar de objeto privilegiado na economia de gozo familiar corresponde uma ausência de simbolização que se faz acompanhar por uma angústia igualmente irrepresentável, causa de um grande sofrimento para o eu e que se materializa em sintomas psicológicos, cognitivos, dificuldades no laço social, fracasso escolar, hiperatividade, déficit de atenção, fragmentação de si, indecisão, indiferenciação, inibição, ausência de desejo... Se a criança não consegue experimentar suficientemente os efeitos do seu lugar no desejo do Outro, o prejuízo em jogo é primariamente libidinal e não cognitivo, como pensa a psicologia. Ele atinge a constituição do eu e a sua relação com o inconsciente promovendo, como consequência, prejuízos na capacidade de simbolização, ou seja, na relação com a realidade.
Vinhetas clínicas
Caso 1: L., 17 anos:
Razão da procura pelo tratamento: obesidade e depressão.
História familiar: O pai de L. traiu sua esposa. Por isso, se separaram. Entretanto, paira a dúvida de que a mãe também tenha traído o marido. L. tinha apenas quatro anos, era muito agarrada ao pai, mas inicialmente tomou o partido da mãe. Mais tarde, ao saber da suposta traição por parte da mãe, preferiu deixar este assunto de lado para fazer do pai um algoz e, da mãe, uma vítima: a mulher deprimida, gorda e abandonada, com quem L. se identificava imaginariamente. Quando estava com a mãe, não podia falar nada que mostrasse seu apreço pelo pai sem desencadear ciúmes. O mesmo acontecia quando estava com o pai.
Sentido do sintoma: a obesidade funcionava como uma capa (de gordura) que impermeabiliza L. em relação aos queixumes e reclamações da mãe e também em relação à insistência do pai em ter a filha por perto, como se ela fizesse parte da outra família que ele constituiu. Impermeabilizada, ela não precisava se extrair dessas demandas e nem pensar sobre o lugar impossível que é convidada a ocupar. Por um lado, ela se dizia indiferente aos dois, mas, por outro, não conseguia deixar de ficar no meio do fogo cruzado entre eles, como objeto de amor exclusivo, destinado tanto ao uso de um quanto aos interesses do outro. A depressão era consequência da sua localização indiferenciada entre os pais e caracterizava sua posição de objeto sempre em queda.
Direção do tratamento: se ela não sabia quem foi o primeiro a “pular a cerca”, então, as posições de vítima e de algoz dadas por ela, respectivamente, à mãe e ao pai eram imaginárias. Isso significava que ninguém havia sido passado para trás. No lugar de permitir-se pensar sobre este equívoco e libertar-se da posição impossível que ocupava entre os pais, a paciente interrompeu o tratamento que, afinal, não era pago nem pelo pai nem pela mãe, mas por um tio. Ela não podia contar nem com o desejo deles em relação à sua saúde psíquica. L. sintomatizava a posição “impermeável” dos pais, que não querem saber nada sobre ela.
Caso 2: S., 15 anos:
Razões da procura pelo tratamento: fracasso escolar, irresponsabilidade, ausência de cuidados com seu corpo e suas coisas pessoais, raiva exacerbada, doenças frequentes; intitulava-se “o único que podia bater no irmão”.
História familiar: Os pais se conheceram na faculdade. Ela engravidou e precipitou um casamento sem pensar nas consequências relativas à vida profissional de ambos. Ela foi vender sanduiche na praia, perdeu o bebê e colocou em risco a própria vida. Ao invés de fazer o luto da gravidez perdida e responsabilizar-se pelo que aconteceu, engravidou novamente. O marido abriu uma empresa. Ela não trabalhou até que S. tivesse quatro anos. Quando o dinheiro se tornou escasso, ela arrumou um emprego e começou a pensar em se separar. No lugar de analisarem a situação, o casal teve outro filho, mudou-se para um apartamento maior, ocupou-se com festas. Viviam como adolescentes irresponsáveis. A empregada mandava na casa e o segundo filho a chamava de “mãe”. A situação financeira piorou. Deixaram de pagar o aluguel e a empregada, que os processou. Mãe e filhos mudaram-se para a casa da avó materna. Ele foi para a casa da própria mãe. Contrariamente a ir trabalhar para restituir um lar à família, ele se separou e arranjou outra mulher que também quis filhos. Teve mais dois. Para pagar a pensão, ele vendeu o carro comprado com o dinheiro de uma herança da primeira mulher. Depois que o dinheiro acabou, não pagou mais nada. Ela assinou, “sem saber”, uma declaração na qual afirmava que os pagamentos da pensão dos filhos estavam quites.
Sentido do sintoma: A irresponsabilidade de S. sintomatizava a irresponsabilidade dos pais. Eles não cuidavam de nada, nem dos filhos. Se o mais novo chamava a empregada de mãe, por que S. não poderia julgar ser o único a ter ascensão hierárquica sobre o irmão? Por que não poderia se fazer passar pelo pai apagando a diferença geracional?
Caso 3: J., 23 anos:
Razão da procura pelo tratamento: muita ansiedade, solidão, relacionamentos amorosos muito conturbados, afastamento da família e vontade de retomar estes laços. Usa medicamento antidepressivo.
História familiar: Sua mãe engravidou com dezessete anos e casou. Quando o filho tinha pouco mais de um ano separou-se. J. foi viver com os avós maternos. A mãe engravidou novamente, casou e teve outro filho. Durante este casamento conheceu o terceiro marido. Aos quatro anos, J. já o chamava de pai, tal como chamou os outros dois que o antecederam. A vida amorosa de sua mãe estabilizou-se, mas J. tinha fortes crises de angústia e, por volta dos sete anos, desenvolveu tiques nervosos. Seu “pai” trabalhava fora do estado e voltava para casa às sextas-feiras. Aos sábados, levava os “filhos” para lanchar e comprar presentes. Em uma destas vezes, J. chegou à casa excitado, fazendo mil caretas. O “pai” perguntou se ele não havia gostado dos presentes. Surpreendido, J. respondeu que havia gostado sim. “Se você gostou por que faz tantas caretas?”. Era o início dos tiques. Pela primeira vez J. se deu conta de que não conseguia controlar os movimentos do seu rosto. Sentia-se tão feliz (excitado) com “aquele” pai que tinha medo de perdê-lo como ocorreu com os outros. Desde pequeno, J. sentia atração pelos meninos. Na adolescência começou a namorar uma garota da sua idade. Gostava dela, mas era ciumento e desconfiado de que ela o traísse. Tinham vida sexual ativa, porém o interesse pelos meninos permanecia. De vez em quando “ficava” com um. Entre os dezesseis e os dezessete anos teve a primeira relação homossexual. Tudo mudou. O prazer foi tão intenso que fez seu corpo tremer. Algum tempo depois fez uma “convulsão” que nunca foi diagnosticada como tal. Dormia ao lado da namorada quando, por duas vezes, começou a se debater como se convulsionasse. Não sabe o que aconteceu. Acordou machucado, chamou os pais. Foi socorrido e, em seguida, consultaram vários médicos. Fez exames. Diagnóstico: stress. J. desmanchou o namoro e resolveu assumir a homossexualidade. Os pais não aceitaram e sua vida virou de cabeça para baixo. Passou a chegar tarde, a desobedecer aos acordos, a levar amigos gays para dentro de casa e ficar trancado no quarto com eles. Acabou expulso de casa.
Sentido do sintoma: A desregulação da vida amorosa da mãe ocasionou a “ocupação” do lugar do pai de J. por outros dois homens em um espaço curto de tempo e, principalmente, em uma idade muito precoce. Como consequência da precariedade da função paterna, ocorreram prejuízos na estruturação narcísica, responsáveis pela desregulação que se manifesta na autonomia que o corpo de J. adquire periodicamente (os tiques) quando está em situações de stress. Sob o fenômeno da convulsão paira a hipótese de que tenha servido sido o suporte de uma espécie de eviração. No lugar da identificação ao pai, a regressão da libido a um estágio primitivo o levou a identificar-se à mãe e, como consequência, à escolha objetal homossexual. Ou seja, um enorme prejuízo no tratamento da realidade. Por isso, J. tem dificuldade para tratar a diferença entre o que espera e o que encontra, principalmente nas esferas amorosa e sexual. Sem a mediação do falo simbólico, tudo é tratado no eixo imaginário, o que o torna sempre suscetível aos fenômenos de fragmentação, aos pensamentos de traição, à desconfiança, à rivalidade e à vontade de destruição.
O ponto de vista da libido
Freud observou que uma parcela do que originalmente foi objeto do interesse autoerótico pode obter acesso à organização genital subsequente. A ação da função fálica não impede o transporte de parte do autoerotismo para a fase seguinte. Como consequência, este deslocamento arrasta consigo a manutenção de um tipo de funcionamento arcaico característico da intensa ligação primária da criança com a mãe. O conhecimento destas conexões profundas é, na verdade, o que permite ao analista orientar-se “nas fantasias dos seres humanos, nas suas associações, que são tão influenciadas pelo inconsciente, e na sua linguagem sintomática” (Freud, 1933 [1932], p. 126).
Para Lacan, todo “sujeito quer ser o que é o desejo da mãe” (1957-58, p. 466) porque é a localização de algo relativo ao desejo materno que põe em ação o trabalho de unificação pulsional que situa a criança como ego ideal, objeto amado pela mãe. Só que nas etapas pregenitais da libido está em jogo um modo de regulação pulsional ainda não regido pela primazia do falo, ou seja, estas etapas estão aquém da sexuação. Por isto, configuram-se como circuitos caracterizados pela ambivalência e pela indiferenciação entre a criança e sua mãe. Esta ambivalência permite que o amor e o ódio sejam alternados sem que haja diferença entre eles. A ausência de separação é o suporte de todos os fenômenos imaginários que surgem na relação com o semelhante. Quando a mediação fálica executada pela função paterna é precária ou ausente:
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“[...] a distância com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe [...] deixa[m] a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o ‘objeto’ da mãe”, só lhe restando a função de revelar a verdade desse objeto ao realizar a sua presença na fantasia materna” (Lacan, 1969, p. 369). |
Nota
- Este artigo resulta da pesquisa “A constituição científica do homem moderno”, desenvolvida por mim no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Estácio de Sá. Ele contém parte de dois outros: A) “Um caso de agressividade infantil como sintoma do erotismo uretral materno”, apresentado no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado entre os dias 06 e 09/09/2012, em Fortaleza (CE), na mesa redonda Efeitos de regulação do excesso: intervenções do analista na clínica de hoje, coordenada por Tania Coelho dos Santos e da qual também participaram Maria Cristina Antunes e Andréa Martello; e B) “De que sofrem os filhos de pais separados?”, apresentado no II Simpósio do ISEPOL, realizado noAuditório do Hospital Copa D’Or (RJ), em 23/06/2012.
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Resumos
What do the children of divorced parents suffer?
Psychology classifies and quantifies the emotional and cognitive losses in children as the effect of parental separation, but it does not investigate the role of the family in the constitution of the subject and the nature of psychological suffering in children. Psychoanalysis defines the subject by the non equivalence between genders. So it considers the link between a man and a woman as a symptomatic one. The family’s structure consists of the Name-of-the-Father, Mother's desire and the object a (the child, a symptom of its parents). To enter the social bond the child must symbolize through the Oedipus myth, the secret of the enjoyment of the parental couple. The couple’s divorce destabilizes the child’s substitute function to the non sexual relation. Psychoanalytic clinic shows the impasses to symbolize the place of parental symptom when it is lost. A libidinal impoverishment is produced in the unconscious relation and ability to. Fragments of clinical excerpts display the effects of this disturbance in libido’s economy.
Key words: psychoanalysis, psychology, family divorced, symptom.
Quelle est la souffrance des enfants de parents divorcés?
La psychologie classe et quantifie les pertes émotionnelles et cognitives sur les enfants, de la séparation des parents, mais est muet sur le rôle de la famille dans la constitution et la nature subjective de la détresse psychologique des enfants. La psychanalyse définit le sujet par des non-équivalences entre les sexes. Donc, il comprend comme symptomatique le lien entre un homme et une femme. La structure familiale est composée du nom du Père, du Désir de la Mére, et de l’objet a (l'enfant, symptôme des parents,). Pour entrer dans le lien social l’enfant doit symboliser, par le biais du mythe d'Œdipe, le secret de la jouissance des parents. La séparation du couple déstabilise la fonction supplémentaire de l'enfant de la non relation sexuelle. La clinique psychanalytique montre les impasses pour symboliser la place de symptôme parental quand il est perdu. Se produit un appauvrissement libidinal de l'inconscient et de la capacité sublimatoire. Fragments cliniques illustrent les effets de cette économie libidinale
Mots-clés: psychanalyse, la psychologie, la dissolution de la famille, symptôme.
Citacão/Citation: LOPES, R. G. De que sofrem os filhos de pais separados? Revista aSEPHallu, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 21/10/2012 / 10/21/2012.
Aceito/Accepted: 14/12/2012 / 12/14/2012.
Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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