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Sobre o real sem sentido nas ciências em geral e na psicanálise em particular

 

Tania Coelho dos Santos
Pós-doutorado no Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Paris, França)
Professor Associado, nível II no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/ UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Pesquisadora do CNPQ nível 1 C (Brasil)
Presidente da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo (Rio de Janeiro, Brasil)
Presidente do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
E-mail: taniacs@openlink.com.br

Resumo

Este artigo reflete os resultados parciais de uma elaboração sobre a cientificidade da psicanálise. Coloca questões acerca da clínica borromeana e do último ensino de Lacan, reavaliando algumas de suas teses. Discute o uso da clínica psicanalítica clássica, dependente da distinção entre presença e ausência do Nome-do-Pai, e indaga o momento de fazer uso da clínica continuista ou borromeana, que relativiza e até prescinde da oposição estrutural entre neurose e psicose. Sustenta essa discussão retomando o paradoxo do sujeito da psicanálise. Apresenta um levantamento crítico de algumas afirmações lacanianas sobre a diferença entre psicanálise e ciência e conclui: não é que a psicanálise não seja uma ciência. O problema é que o advento da psicanálise exige rever radicalmente toda epistemologia positivista da ciência. É inadmissível que o campo das verdades científicas tenham o valor de certezas delirantes. Se a natureza é uma ficção, o saber da ciência só pode ter o valor de hipótese, portanto, tão irrefutável quanto a do inconsciente.

Palavras-chave: psicanálise, ciência, sentido, real.

 

Este artigo não é conclusivo. Reflete os resultados parciais de uma elaboração que ainda está em curso. Metodologicamente, somente se explica à luz da transferência com Freud e com as diversas reelaborações acerca da obra freudiana efetuadas pelo psicanalista francês Jacques Lacan. Minha transferência com Freud foi marcada pela viva interrogação acerca dos efeitos de uma análise sobre o modo como analisandos estabelecem seus laços sociais. Uma forma de resistência e de transferência negativa que se alimentava de meus restos transferenciais com Marx. Entre outras questões, eu me coloquei perguntas tais como: uma análise nos torna mais conservadores, mais inventivos, mais cínicos, mais isolados, mais engajados? Eu interrogava as razões políticas da prática psicanalítica e seus efeitos indiretos no tipo de sociedade que ela contribuía para construir. A leitura da genealogia de Michel Foucault me trouxe as ferramentas necessárias para repensar as relações entre o saber e o poder. A não separar ingenuamente ciência e ideologia e a não pensar os efeitos do poder de forma negativa. O poder é positivo, pode engendrar novos campos de saber. E o saber não é neutro, emerge sempre num campo onde há interesses e forças em oposição.

Eu não sabia, na época em que me coloquei estas questões, que o simples fato de colocá-las já era um efeito de minha percepção do declínio da função paterna, dos ideais, das tradições familiares e comunitárias. A aurora de uma nova época – a do Outro que não existe e seus comitês de ética1 – despontava no mesmo horizonte social onde no céu, outrora estrelado, brilhavam os restos da constelação de insígnias da ordem simbólica religiosa. Afetados pela desorientação diante da perda das referências tradicionais e da emergência de novos valores, muitos indivíduos foram buscar numa análise uma via para refazer ou para substituir as cartografias perdidas. Minha leitura de Freud e de Lacan é condicionada pela minha própria experiência destas transformações que me conduziram, como muitos outros, a buscar na psicanálise uma orientação.

Tomar o caminho da análise implicava em acreditar que a aparente desordem do mundo não era senão o efeito da minha própria desordem histérica. Muitos anos de análise, trinta e oito exatamente, foram necessários para decidir o que é que eu conservaria da velha ordem simbólica e o que é que, de bom grado, jogaria fora. Minha prática como analista foi extraída deste longo aprendizado. Desde que concluí minha análise, modestamente, venho me empenhando em transmitir o que ela me ensinou. Todas as sextas-feiras pela manhã, oralmente. E, durante os meus fins de semana, por escrito, pois escrever é o resto incurável do tratamento de minha histeria. O gosto pela letra, pela palavra escrita, expressão do sinthoma de um falassério2 que é um acontecimento de corpo: “Uma ideia, isso tem um corpo: é a palavra que a representa. E a palavra tem uma propriedade curiosa, é o que faz a coisa” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 11). E, por esta razão, “uma análise consiste em que se saiba por que se está empedrado” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 33). Algumas pessoas são fascinadas pelos grandes oradores. Não é o meu caso, confesso que não escuto e sou um pouco insensível à oratória. Prefiro os escritores e suas obras geniais. A obra de Freud, talvez por isso mesmo, me seja mais agradável que o ensino oral dos seminários de Lacan.

Acompanho a orientação lacaniana – significante que nomeia minha transferência com Jacques-Alain Miller – porém, minha transferência com Lacan é marcada por uma atitude bastante reservada. Depurada pela análise, esta atitude reflete meu desgosto pela retórica autoelogiosa de Lacan e minha preferência pela sobriedade do estilo de Freud, que foi também o que me atraiu na leitura dos cursos de Miller.

Neste artigo, exponho minhas questões acerca da clínica borromeana e do último ensino de Lacan. Reavalio algumas de suas teses conduzida pela necessidade de orientar minha prática como analista e responder aos dilemas que meus alunos me colocam. Preciso decidir, constantemente, quando e como fazer uso da clínica psicanalítica clássica, clínica sob diagnóstico que não prescinde da distinção entre presença e ausência do Nome-do-Pai. Mas, me pergunto quando lançar mão da clínica continuísta ou borromeana, clínica das suplências singulares que relativiza e até prescinde da oposição estrutural entre neurose e psicose. De um lado, não podemos reduzir a psicose a um déficit da função do Nome-do-Pai, desvalorizando a singularidade dos sintomas que lhes servem de suplência à inexistência, no real, de um significante que assegure a relação entre os sexos. Não me parece correto, por outro lado, reduzir o Nome-do-Pai a um sintoma como outro qualquer, sob pena de acentuarmos ainda mais a insuportável precariedade da realidade que é, tão somente, o laço social. É graças aos neuróticos que algumas ficções sobrevivem. O desejo e o amor entre homens e mulheres, a reprodução sexuada, o desejo de gerar filhos e o cuidado com as crianças sobrevivem porque o neurótico acredita que existe uma ordem natural. Estas ficções asseguram a diferença entre as gerações e a diferença sexual, fundamento do laço social. A neurose é uma construção simbólica, com valor de ficção, que serve para evitar o traumatismo do encontro com o real. Para o psicótico, diferentemente, o simbólico não é distinto do real. O simbólico é real, a palavra não se distingue da coisa. A aposta na orientação para o real, na via da psicose, nos levaria a um impasse quanto ao laço social, pois excluído como está do discurso, o laço social para ele não se sustenta.

Metáforas freudianas e lacanianas acerca do real e da realidade

Freud inventou a psicanálise a partir de sua clínica com a neurose. Lacan, diferentemente, desde sua tese de doutoramento, dedica-se à investigação da psicose. Para Freud, a fonte das suas metáforas metapsicológicas foram a física e a biologia de seu tempo. Como é do conhecimento geral, Lacan, por sua vez, serviu-se do estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, da linguística de Saussure e Jakobson, da topologia, da lógica e da matemática. Ao final de seu ensino, no Seminário XXIII: o Sinthoma, há referências, bem menos conhecidas e comentadas, à biologia genética, base da invenção da metáfora borromeana do real, em oposição ao um suposto primado do inconsciente na concepção freudiana:

  “Eu inventei o que se escreve como real. Naturalmente, o real, não é suficiente escrevê-lo real. Muita gente o fez antes de mim. Mas este real, eu o escrevi sob a forma do nó borromeano, que não é um nó, mas é uma cadeia que tem certas propriedades. Na forma mínima sob a qual tracei esta cadeia, é preciso ao menos três elementos. O real, isto consiste em chamar um destes três de real. Estes três elementos tal como eles estão enodados, em realidade encadeados, fazem metáfora. Não é nada mais do que metáfora da cadeia”(Lacan, 1975-76, p. 129-130).

O campo da psicanálise não se reduz aos sentidos das formações do inconsciente, decifrados pela interpretação. Existe alguma coisa para além das ficções elucubradas pela linguagem que é real. Indiscutivelmente, o que Freud entendia por pulsão remete à materialidade da energética no psiquismo:

  “[...] conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo” (Freud, 1915, p. 142).

Trata-se de uma metáfora energética das relações entre o corpo e a linguagem. Para Lacan, a cadeia borromeana é metáfora de alguma coisa que não passa de número, cifra. Pode-se traçá-las de muitas maneiras. O traço unário, por exemplo, é suficiente para indicar um número. Lacan nos propõe substituir a metáfora freudiana da energética pela metáfora da cadeia borromeana:

  ”O que chamamos de energética não passa da manipulação de um certo número de números de que é extraído um número constante. Freud referia-se a isso ao se referir à ciência tal como concebida em seu tempo. Fazia, assim, apenas uma metáfora. Ele [Freud] jamais fundamentou verdadeiramente a ideia de uma energética psíquica, sequer poderia sustentar tal metáfora com alguma verossimilhança. A ideia de uma constante, por exemplo, que ligaria um estímulo à resposta, é completamente insustentável” (Lacan, 1975-76, p. 130)

A crítica à ideia de uma constante se explica pela defesa de seu axioma “não há relação sexual”. Não existirá, na natureza, nenhum número de ouro que possa dar corpo a uma medida comum. O Nome-do-Pai e o significante falo não encontrariam seu fundamento na natureza. Esta curiosa leitura da energética freudiana não leva em conta que o princípio da constância – enunciado por Freud no início de sua investigação – difere do princípio do nirvana (pulsão de morte) que aparece ao final de sua obra. A constante, fundamento do princípio da constância, para Freud, não se encontra na natureza. Resulta da intervenção do próximo (Nebenmensch), outro de boa vontade que é responsável por efetuar a ação específica de que necessita o infante ainda incapaz, pressionado pelas exigências da vida, ação esta capaz de reduzir o mal-estar no interior do aparelho psíquico por meio da experiência de satisfação. A constante é uma exigência social. É preciso que o desejo do Outro – de um adulto – zele pela conservação da vida da criança. Esta ação específica é a condição de possibilidade do princípio do prazer – reprodução alucinatória da experiência de satisfação – em lugar da resposta desordenada que o bebê apresenta no início da vida. Por sua vez, o fracasso desta repetição alucinatória em promover a satisfação esperada abre as portas ao princípio de realidade. Prazer e realidade significam apenas laço social.

A realidade de que se trata é a realidade da castração, que será renomeada por Lacan no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise com o termo aristotélico tiquê, que ele traduziu por encontro com o real. No coração da experiência analítica, a repetição é orientada pelo núcleo do real. O encontro com o real é um encontro marcado, ao qual somos chamados repetitivamente, mas que nos escapa sempre. O real está para além do autômaton, do retorno dos signos da experiência primeira de satisfação que regem o princípio do prazer. Pois o encontro primeiro com o real – o traumatismo – fica sempre velado pela função da fantasia. A função da tiquê, deste encontro faltoso com o real, diz respeito à atração do psiquismo pelo traumatismo. Existe no traumatismo uma necessidade – apesar de sua aparência acidental – dimensão inassimilável, um excesso que o princípio de realidade não vai poder absorver completamente. O princípio do prazer não será jamais suficiente para promover a homeostase, a subjetivação do trauma que insiste no coração dos processos primários. Por mais que o sistema da realidade se desenvolva, deixa uma parte essencial que é da ordem do real, prisioneira das cadeias do princípio do prazer. De certo modo, as exigências da realidade ficam a espera (unterlekt untertragen) dos encontros, isto é, dos pontos radicais no real. Encontro com o real que, graças a um fragmento acidental da realidade, nos desperta do sonho, desvelando a pulsão em vias de advir no avesso da representação. Eis porque, ao final de seu percurso, Freud reconhece que mais além do prazer, a resposta desordenada, não desaparece, e o princípio do prazer/realidade não domina todo o aparelho psíquico. Resta uma tendência compulsiva à repetição de um mesmo fracasso pois, segundo a metáfora energética que ele concebeu, a pulsão de morte comanda, em detrimento das exigências da vida, retornar ao inanimado.

Lacan se propõe a substituir a ideia testemunhada por Freud no “Projeto...” de figurar a memória como redes, pela sua “nova forma mais rigorosa, fazendo com isso alguma coisa que se encadeia no lugar de se trançar” (1975-76, p. 131). Nesta nova perspectiva, a pulsão de morte é ainda tomada como equivalente ao real, o que nos parece de acordo (e não em desacordo) com o ponto de vista freudiano:

  ”A pulsão de morte é o real na medida em que ele só pode ser pensado como impossível [...]. Abordar este impossível não poderia constituir uma esperança, posto que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser pensada é o fundamento do real” (Lacan, 1975-76, p. 125).

Diferentemente de Freud, Lacan não define a pulsão de morte como a tendência entrópica da energia que comanda retornar ao inanimado que é um estado de apaziguamento das tensões que precede o surgimento da vida. De acordo com Lacan, “Enfim, não é certo que o que digo do real seja mais do que falar a torto e a direito” (1975-76, p. 133).
Passo a desenvolver meu ponto de vista sobre o uso mais apropriado destas afirmações de Lacan. A fórmula lacaniana que me orienta nesta leitura é:

  “A hipótese do inconsciente, Freud o sublinha, não se sustenta sem o Nome-do-Pai. Supor o Nome-do-Pai, por certo, é Deus. É nisto aí que a psicanálise, por triunfar, prova que do Nome-do-Pai podemos também prescindir. Podemos prescindir, com a condição de nos servirmos dele” (Lacan, 1975-76, p. 136).

Quando o Outro não existe, quando o Nome-do-Pai é reduzido a uma ficção, um sintoma entre outros com função de suplência à relação sexual que não há, sem dúvida ele pode ser prescindível. Admito que seja preciso acompanhar Lacan em seu último ensino, quando a invenção de uma escrita borromeana lhe permite prescindir da energética freudiana, para que a experiência analítica responda à altura dos sintomas que não devem nada ao Nome-do-Pai. Mas argumento que só se pode prescindir de Freud e dessa constante que ele nos legou chamada Nome-do-Pai à condição de sabermos nos servir desta ficção indispensável à clínica psicanalítica com os neuróticos que preferem o bom senso à “inventividade”.

A função do Nome-do-Pai, ensina Lacan no Seminário 22: R.S.I., é recalcante:

  “O que Freud nos traz concerne ao que é o Outro, justamente isto, não existe Outro senão ao dizê-lo. Mas este Todo-Outro, é impossível dizê-lo completamente, existe um Unverdrängt, um inconsciente irredutível, e que este, dizê-lo, é falando apropriadamente, não apenas o que se define como impossível, como introduz como tal a categoria de impossível” (Lacan, 1974-75, aula de 17/12/1974, p. 37).

Sobre este ponto, continua Lacan, a religião é mais verdadeira do que a neurose, pois ela recalca o fato de que não é verdade que Deus seja somente duro como ferro: “Ela diz que ele ex-siste, que ele é a ex-sistência, por excelência, quer dizer que ele é o recalcamento em pessoa, ele é mesmo a pessoa suposta ao recalcamento” (Lacan, 1974-75, aula de 17/12/1974, p. 37). Sem o Nome-do-Pai, o imperativo do gozo individualista se impõe em detrimento da regulação pelos ideais coletivos, dos costumes, das tradições e das filiações. O Nome-do-Pai é o significante da lei, sinônimo da interdição e do sentido sexual do inconsciente. A pluralização dos modos de fazer suplência à relação sexual que não há nos obriga a relativizar a oposição entre neurose e psicose, admitindo que esta última não é, simplesmente, uma falta da neurose onde, de direito, ela deveria sempre estar. Porém, não se pode advogar ingenuamente a equivalência entre todas as soluções sintomáticas que um sujeito inventa, sem que nosso relativismo coloque em risco o valor para a civilização das ficções que asseguram o laço social.

Se reduzimos a psicanálise a uma experiência do real – de falar a torto e a direito – não eliminamos dela o valor da clínica sob diagnóstico e dos propósitos terapêuticos do tratamento e da retificação das relações de um sujeito com o real? Que real? O da natureza humana, o real do desamparo (Hilflosigkeit), da ausência de aparelhagem que nos torna dependentes do Outro e sujeitados ao campo da fala e da linguagem. Desembaraçada deste real, que é afinal de contas o real da ciência, a psicanálise se torna uma prática que prescinde inteiramente do nome do seu inventor. Ela deixa de ser freudiana, o que para alguns psicanalistas lacanianos não é problema algum. Afinal, Freud foi responsável por introduzir o inconsciente – isto é, as ficções que o homem inventa para suplementar seu desamparo – no campo da ciência. Se esta última sonhava em reduzir seu objeto à natureza, acreditando que a ideia de natureza é independente e exterior ao campo da fala e da linguagem, depois da psicanálise não é mais possível ignorar que esta ideia é apenas uma crença (um desejo). Quando somos cientistas, acreditamos que a natureza existe e que em parte está submetida a leis que podem ser descobertas e formalizadas. Mas, atravessados por uma análise, não ignoramos que as leis do inconsciente circunscrevem um vazio radical de sentido. Não são senão ficções, elucubrações sobre o inconsciente real que ex-siste. Logo, espera-se de um psicanalista que ele saiba que o saber da ciência, por mais exato e universalizável que seja, não passa de uma ficção do espírito humano. E, neste sentido, não existe nenhuma diferença entre o real da ciência e o real da psicanálise. Recordo em favor do meu argumento, as palavras do próprio Lacan: “Por mais que o imaginário seja esfoliado, não se obtém mais do que sua redução ao fantasma. O importante é que a ciência, ela mesma não é senão um fantasma e que a ideia de um despertar seja, falando apropriadamente, impensável” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 15).

Por esta razão, advogo a soberania da clínica psicanalítica, clínica estrutural sob diagnóstico, da qual se espera a decifração do sentido dos sintomas, a redução das ficções inconscientes e o encontro com o real sem sentido. Significa defender que a neurose é natural? A pergunta não é nova nem inocente e Lacan a responde conforme se segue:

  ”Ela não é natural, senão porque no homem, existe um Simbólico. E o fato de que há um Simbólico implica que um significante novo, ao qual o eu, quer dizer a consciência, se identificará, mas o que é próprio ao significante, que eu chamei pelo nome de S1, é que não existe uma relação que o defina, a relação que ele tem com S2: S1→S2. É na medida em que o sujeito é dividido entre este S1 e este S2 que ele se sustenta, de sorte que não podemos dizer que seja somente um destes significantes que o representa” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 13).

Depois de nos explicar que o que faz da neurose a natureza do homem é sua condição de sujeito dividido entre dois significantes, Lacan insiste na questão: a neurose é natural?:

  “Seria o caso de definir a natureza da natureza. O que é que pode ser considerado a natureza da natureza? Nada além disto, que existe alguma coisa da qual nós imaginamos que podemos dar conta por meio do orgânico, quero dizer, pelo fato de que existem seres vivos, mas, que existem seres vivos, não somente não é óbvio, como também foi preciso elucubrar toda uma gênese, quer dizer, que o que chamamos de genes certamente quer dizer alguma coisa, mas não é senão um querer dizer” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 13).

Ele conclui argumentando que a elucubração criacionista ou a evolucionista acerca da origem da vida são, de todo modo, hipóteses. Eu insisto que não é preciso insistir – como é costume entre os lacanianos – sobre a diferença entre a psicanálise e a ciência. Afinal, a ideia de natureza não é mais que uma ficção, uma hipótese, tanto quanto o inconsciente. É nesta ficção que implica um sujeito dividido entre dois significantes, que se apoia a clínica clássica ou clínica estrutural.

Reconheço, entretanto, que mais além da clínica psicanalítica, a experiência psicanalítica nos confronta com significante sozinho, sem Outro, isto é, ao gozo irredutível com o real. A clínica borromeana – definida como uma prática de tagarelice – nos permite abordar o incurável em jogo no prolongamento das análises dos próprios analistas e que nos conduz à invenção do sinthoma e ao passe. O mais real na clínica psicanalítica estrutural são os efeitos terapêuticos que resultam da decifração dos sintomas pela interpretação e o tratamento do excesso de sentido até o encontro com o significante puro, sem sentido. Mas uma análise não nos torna mudos. O fato de que o real não tem sentido não cala o ser falante. Por isso, na psicanálise enquanto uma experiência, o mais real é o gozo tagarela do ser falante, que não tem sentido e não se reduz por meio da interpretação e é, para falar apropriadamente, incurável.

Psicanálise: teoria, ensino, clínica e transmissão

Para fundamentar meu ponto de vista, preciso urgentemente me esclarecer acerca de que teoria do real nos servimos na psicanálise hoje, seja para ensiná-la enquanto um corpo de ferramentas conceituais e clínicas, seja para transmitir aquilo que não se pode ensinar, o saber fazer do psicanalista. Para isto, não se pode desconsiderar as diferentes dimensões em jogo neste campo. Como em qualquer ciência, existe o esforço de formalização da teoria. Enquanto uma prática com raízes no campo da medicina, existe nela também alguma coisa que não se ensina, a arte de ler o sintoma. Não se ensina, mas se pode transmitir, e é por esta razão que não existe nenhum analista que não seja a consequência boa ou ruim de sua própria análise. Devemos a Lacan a tese de que toda análise é didática, pois só termina com a produção de uma analista. E, o que é um psicanalista? Um psicanalista é um sinthoma. Um sinthoma é o resto de satisfação pulsional rebelde à civilização que não pode ser modificado pela interpretação. Um analista é alguém que pode, finalmente, reconciliar-se com o que resta de seu sintoma. O resto sintomático é o resíduo incurável do acontecimento traumático que terá sido o primeiro encontro do significante com real. Encontro que inaugurou o modo singular pelo qual um ser falante goza do seu corpo. Silenciosos ou tagarelas, os “sinthomens” restam marcados pela divisão (Spaltung) e, do final da análise, espera-se que surja um saber fazer com isso. O que é que pode haver de científico nisto? E em que medida a psicanálise pode prescindir do real da ciência? Até que ponto este real lhe é essencial e absolutamente necessário saber servir-se dele? Para além do real da ciência, como conceber a especificidade do real que a psicanálise circunscreve? É o que me proponho a esclarecer, lembrando que numa análise – diferentemente do podemos fazer no campo da ciência – não nos desvencilhamos da dimensão da verdade (ficção), uma vez que não pretendemos e não podemos abolir o gozo que se obtém com isso.

Toda a questão do estatuto da psicanálise no campo da ciência poderia, a meu ver, ser resumido na aposta lacaniana formulada em suas conferências pronunciadas em Saint-Anne e reunidas sob o título de O Saber do Psicanalista: “Será que há necessidade de demonstrar que há na psicanálise, fundamentalmente e primeiramente, um saber.” (Lacan, 1971-72a, aula de 04/11/1971, p. 16) Este saber, Lacan assim o define:

  “[...] a novidade é que o que a psicanálise revela é um saber não sabido por si mesmo. [...] Se o inconsciente é algo que surpreende é porque esse saber é outra coisa, é esse saber do qual nós temos uma ideia, aliás tão pouco fundada desde sempre, posto que não é à toa que se evocou a inspiração, o entusiasmo, desde sempre, isto é, que o saber não-sabido de que se trata na psicanálise é um saber que se articula, exatamente, estruturado como a linguagem” (Lacan, 1971-72a, aula de 04/11/1971, p. 17).

Um saber estruturado como a linguagem, saber inconsciente, reduz-se à ficção? Como situá-lo, relativamente ao real da ciência?

A psicanálise, ainda de acordo com Lacan, diferentemente da revolução copernicana e da darwinista, teria engendrado um saber cujo estatuto é inteiramente novo e, que por esta razão, acarretou um novo tipo de discurso. Nele, a fala define o lugar do que chamamos de verdade. A verdade é o que tem estrutura de ficção, logo, também, de mentira. A verdade só diz a verdade, quando diz: eu minto. É possível, por outro lado, que a verdade diga a verdade, sem que ela saiba que o faz. Só se alcança a verdade, enquanto um saber inconsciente, por intermédio da denegação. Que relação então se estabelece entre a verdade mentirosa e o real? Veremos que Lacan sustenta que o real só pode ser abordado pela via do matema. Finalmente, é questionável que o uso do matema em psicanálise possa resultar numa ciência. Que saber é este o do psicanalista? A psicanálise é realista, idealista, racionalista ou nominalista?

Penso que é preciso retomar esta questão partindo do paradoxo do sujeito da psicanálise. Esta prática opera sobre o sujeito da ciência. A psicanálise não é a linguística, mas o saber inconsciente estrutura-se como a linguagem. O que é que faz da linguística uma ciência? É o que Lacan avança nestas conferências:

  “Eu me servi disso porque era realmente necessário para introduzir o que concerne ao discurso analítico, servi-me sem escrúpulo das trilhas que teriam podido se exaltar cedo demais e fazer vocês retornarem à lama cotidiana, eu lembrei que não se afirmou coisa alguma digna desse título linguístico como ciência, não se afirmou coisa alguma que pareça ter a língua, nem mesmo a fala, como objeto, não se afirmou senão na condição de jurarem entre si, entre linguistas, de nunca, nunca mais – porque não fizemos outra coisa durante séculos – nunca mais, nem de longe, fazer alusão à origem da linguagem” (Lacan, 1971-72a, aula de 03/02/1972, p. 61)

Retomando a questão da originalidade do discurso analítico, se a psicanálise é um discurso – como todos os discursos, ergue-se à frente do muro da linguagem – o que por si só já nos exigiria extraí-la do campo da ciência:

  “O que eu gostaria de dizer mais livremente é que fazendo alusão, nesse escrito, ao discurso analítico, sobre o qual eu me encontro em posição de abrir o caminho, é evidentemente na medida em que o considero como constituindo, pelo menos potencialmente, essa espécie de estrutura que designo com o termo discurso, isto é, aquilo pelo qual, pelo efeito puro e simples da linguagem, se precipita num laço social. Isso foi percebido sem necessidade da psicanálise. É exatamente o que chamamos na linguagem corrente, ideologia” (Lacan, 1971-72a, aula de 4/05/1972, p. 96).

Então, a psicanálise não seria uma ciência porque, como qualquer outro discurso, engendra um laço social e uma ideologia.

Esta oposição entre ciência e ideologia é consistente com a tese de Canguilhem acerca do corte epistemológico entre a ciência e a opinião, o senso comum, a tradição, os interesses que nascem e sustentam o mundo humano e o laço social. A ciência, de costas para o mundo, aborda o real como uma construção da razão. Ao supor que o real é racional, que se pode abordá-lo com os instrumentos da lógica, da topologia e da matemática, revela-se que não há saber – por mais científico que seja – que não se fundamente na crença. Tendo a pensar que a crença na racionalidade do real é a religião do cientista. Acho que Lacan percebeu isso: “Eu gostaria de fazê-los observar que aquilo que chamamos de ‘o razoável’ é um fantasma. É manifesto no começo da ciência” (1977-78, aula de 15/11/1977, p. 10). Michel Foucault, igualmente, rejeitou a distinção entre ciência e ideologia, argumentando que o saber não é o outro do poder. Ou, traduzindo, o saber não é o outro dos apetites e interesses em jogo no laço social. Não existe saber científico que não emane das correlações de poder que se enfrentam numa dada civilização. Herdeiro de uma tradição filosófica nietzschiana, Foucault abraça a tese de que não há conhecimento sem interesse. E isto me parece bem de acordo com a minha posição de que existe uma crença, uma aposta em jogo no discurso científico: a de que o real enquanto tal é impossível, logo só se pode abordá-lo por meio dos artifícios da razão. O que as ciências em geral deixam de lado, uma vez que isso não lhes interessa, é que o sujeito extrai uma satisfação, ele goza com o sentido do real. E é disso que o saber da psicanálise, em particular, se ocupa.

A tese de que o real é impossível é central no campo da psicanálise. Freud, primeiramente, encontrou esta impossibilidade quando decifrou a natureza ficcional do traumatismo de sedução sexual. Proton pseudos, verdade mentirosa, índice de que o real, isto é, a origem do desejo sexual, é impossível de saber. Muito mais tarde, reconhece o caráter acéfalo da pulsão, desligado da lógica da reprodução e da conservação da vida. A pulsão de morte é o outro nome do traumatismo da pulsão. Freud não abriu mão, com boas razões para isso, de que a psicanálise deveria submeter-se à visão de mundo (Weltanschäuung) da ciência. Acreditava que o mérito da disciplina que ele acabava de inventar foi ter descoberto a eficácia da realidade psíquica na produção do sintoma. Lacan, por sua vez, ao longo do que convencionamos chamar de seu primeiro e segundo ensino, se não considerasse que a psicanálise era uma ciência, mas apenas um discurso, como explicar seu esforço incansável em produzir estruturas, matemas, figuras topológicas e construções lógicas, para formalizar e transmitir integralmente os problemas da clínica psicanalítica? Como interpretar esta proposição – no Seminário 16: d’un Autre à l’autre – de que “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras?” (1969-70, p. 16).
Seu ensino é marcado pela insistência em reduzir o mito à estrutura e o sentido ao real fora do sentido. Isto é justamente o que caracteriza a ciência a qual, diferentemente dos discursos, não tem sentido:

  “Que a ciência repouse, não como se diz sobre a quantidade, mas sobre o número, a função e a topologia é o que não deixa dúvida. Um discurso que se chama ciência encontrou o meio de se construir atrás do muro. Só que acredito dever nitidamente formular, e nisso creio estar de acordo com tudo que há de mais sério na construção científica, que é estritamente impossível dar ao que quer que se articule em termos algébricos ou topológicos, a sombra de um sentido” (Lacan, 1971-72b, aula de 03/02/1972, p. 68-69).

Apesar da assiduidade com que a expressão “discurso da ciência” comparece no ensino de Lacan, algumas vezes afirma que a ciência não é um discurso: “Mas, na frente do muro, acontecem coisas, e é o que chamo discursos.” (Lacan, 1971-72b, aula de 03/02/1972, p. 69). Tudo que se escreve reforça o muro da linguagem, pois se nunca nada tivesse sido escrito, não se teria dado um passo no sentido de olhar além do muro: “Além do muro, para lhes dizer logo, não há que saibamos, senão esse real que se assinala justamente pelo impossível de atingir além do muro. Nada menos que o real” (Ibid., p. 68). Pode-se transpô-lo, é o caso do que faz a lógica, um discurso que se sustenta ao pé do muro e que é o suficiente para dar conta do número. Este, por sua vez, é o primeiro passo da matemática:

  “O que posso dizer é que, em todo caso, a clivagem do muro, o fato de que haja algo instalado na frente, que chamei de fala e linguagem, e que é por um outro lado que isso trabalha, talvez matematicamente, é bem certo que nós não podemos imaginar outra coisa” (Lacan, 1971-72b, aula de 03/02/1972, p. 68.).

Muito embora, como já assinalei, isto não o impedisse de declarar: “Se o chamado Sócrates pode sustentar um discurso, o qual não é por nada que está na origem do discurso da ciência, é por ter feito vir ao lugar do semblante, o sujeito” (Lacan, 1971-72b, aula de 03/03/1972, p. 79).

Se existe um discurso da ciência, sua relação ao real não é, de todo, a mesma que a do discurso analítico. Essencialmente, porque Lacan define o discurso de Sócrates como fundado no ódio à mulher. Como se poderá extrair dos excertos que se seguem, o real em jogo no saber do psicanalista, funda-se na inexistência da relação sexual:

  “O real ao qual me refiro, e isto em conformidade com tudo que é recebido da análise, isto é, nada está garantido pelo que parece o fim, a finalidade do gozo sexual, a saber, a cópula, sem estes passos confusamente percebidos, mas nunca realçados, em uma estrutura comparável àquela de uma lógica e que chamamos castração” (Lacan, 1971-72b, aula de 02/12/1971, p. 38).

A despeito disso, o saber do psicanalista não é um “não-saber”. Situado entre saber e verdade, o inconsciente é estruturado como lalíngua: “Bem, lalíngua não tem nada a ver com o dicionário, qualquer que seja. O dicionário tem a ver com a dicção, isto é, com a poesia e com a de persuasão” (Lacan, 1971-72b, aula de 04/11/1971, p. 15). Interessa-nos destacar que, nesta aula, a afirmação de que “isto não tem nada a ver com o inconsciente: [...] o inconsciente tem a ver de início com a gramática, tem também um pouco a ver com a repetição, isto é, com a vertente inteiramente contrária àquilo para que serve o dicionário” (Ibid., p. 15). Nesta aula, Lacan prossegue sua exposição defendendo que a gramática e a repetição são uma vertente completamente diferente da invenção e da persuasão e conclui: “Eu não sei porque, contrariamente ao que é ainda muito difundido, a vertente útil na função da lalíngua, a vertente útil para nós psicanalistas, para aqueles que lidam com o inconsciente, é a lógica” (Ibid., p. 15).

E, se a psicanálise é um discurso totalmente novo, o que vem a ser um discurso? Um discurso equivale à fala? É sua relação com a verdade e sua estrutura de ficção, que define o discurso? Vejamos:

  “E o que define um discurso, o que se opõe à fala, digo, porque é isso o matema, digo que é o que determina para a abordagem falante, o que determina o real. E o real do qual eu falo é absolutamente inabordável, exceto por uma via matemática, a saber, como referência para o fato de que não há outra via senão este último discurso, entre os quatro, aquele que defini como o discurso analítico e que permite de um modo, seria excessivo dizer que é consistente, muito pelo contrário, por uma hiância, e propriamente aquela que se exprime pela temática da castração, que podemos ver de onde está assegurado o real, que mantém todo este discurso” (Lacan, 1971-72b, aula de 02/12/1971, p. 38).

Ancorados ao real da castração, os matemas que orientam o saber do psicanalista, não alcançam colmatar a hiância, a disjunção do gozo sexual:

  ”Embora a primeira coisa a demonstrar seja precisamente a dissociação, e é evidente que a questão, a única questão, a questão muito interessante, é saber como algo que podemos momentaneamente, dizer correlativo desta disjunção do gozo sexual, seja algo que chamo lalíngua, evidentemente, tem uma relação com algo do real, mas daí que isso possa conduzir aos matemas que nos permitem edificar a ciência, esta é verdadeiramente a questão” (Lacan, 1971-72b, aula de 02/12/1971, p. 40).

Em que pese o fato de que a verdade não é o real, o ser falante, em sua abordagem ao sem sentido do real, não pode prescindir da verdade, na medida em que nela ele encontra um saber – fantasmático ou delirante – que lhe proporciona um gozo. O que mais me interessa elucidar, portanto, é esta diferença essencial entre o “sem sentido” da construção científica do real e o “real sem sentido” da psicanálise: o de um saber que não se sabe, se goza.

  Para concluir, no “Seminário XXIV: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre”, Lacan declara:
“A psicanálise – eu o disse e eu o repeti recentemente – não é uma ciência. Ela não tem seu estatuto como ciência e não pode senão aguardá-lo, esperá-lo. Mas é um delírio do qual nós esperamos que ele porte uma ciência. É um delírio do qual esperamos que se torne científico. Podemos aguardar muito tempo. Podemos aguardar muito tempo, eu digo por que, simplesmente porque não há progresso e aquilo que esperamos não é forçosamente aquilo que recolhemos. É um delírio científico portanto, e esperamos que ele porte uma ciência mas isso não significa que jamais a prática analítica portará esta ciência” (Lacan, 1976-77, aula de 11/01/1977, p. 52).

Toda ciência é um delírio ou a esperança de que a psicanálise produza algum saber científico é que pode ser classificada como delírio?

Se a prática, isto é a clínica, jamais portará uma ciência qualquer que seja, qual é a natureza do saber do psicanalista? Trata-se de ficções e de elucubrações de saber que não alcançam jamais a dimensão de um saber no real? Em seu seminário intitulado O momento de concluir, a questão retorna da seguinte maneira:

  “O que tenho a lhes dizer, é que a psicanálise é para ser levada a sério, apesar de que não é uma ciência. Não é mesmo uma ciência de jeito nenhum. Pois, o mais enfadonho, como mostrou superabundantemente o assim chamado Karl Popper, não é uma ciência porque é irrefutável” (Lacan, 1977-78, aula de 15/11/1977, p. 9).

Após o levantamento crítico de uma quantidade tão expressiva de afirmações de Lacan sobre a diferença entre a psicanálise e a ciência, eu concluo que a problemática precisa ser invertida. Não é que a psicanálise não seja uma ciência. O problema é que o advento da psicanálise nos exige uma revisão radical de toda e qualquer epistemologia positivista da ciência. Se a psicanálise deve ser levada a sério, como Lacan advoga, se ela traz alguma coisa nova sobre o enraizamento do saber no inconsciente real, na pulsão, num “saber que não se sabe”, não se pode admitir que o campo das verdades científicas tenham o valor de certezas delirantes. Se a natureza é uma ficção, o saber da ciência não pode ter outro valor senão o de hipótese. E, nesse sentido, é tão irrefutável, ou se preferirmos, não é irrefutável de modo algum, quanto o saber inconsciente. O que me conduz a interrogar a epistemologia lacaniana. Que teoria da ciência é essa que parece desconhecer os efeitos do advento da psicanálise sobre o campo da filosofia? Que estranha insistência em recusar, inclusive, as teses de Foucault que revogariam a necessidade de opor a verdadeira ciência aos discursos? Teses que deveriam nos conduzir, de modo muito mais fundamentado, a admitir que a ciência também é um discurso e que por esta razão não é o contrário da ideologia, nem do laço social. Somente então, caberia perguntar de que ideologia científica o discurso analítico participa. Ou, se preferirmos, que nova ideologia científica a psicanálise contribuiria para fundar?

Notas

 
  1. Este é o título de um Curso ministrado por Jacques-Alain Miller em colaboração com Éric Laurent, em 1996-97, no Departamento de Psicanálise de Paris VIII.
  2. Sobre isso ver Coelho dos Santos, 2010.


Referências Bibliográficas

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LACAN, J. (1968-69) Le séminaire, livre 16: d’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006.
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________ (1976-77) Le Seminaire. Livre XXIV: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Paris: Éditions de La Association Freudienne Internationale, s/d.
________ (1977-78) Le Seminaire XXV: le moment de conclure. Paris: Éditions de La Association Freudienne Internationale, s/d.


Resumos

On the meaningless real in science in general and in psychoanalysis in particular

This article reflects the partial results of an elaboration on the scientificity of psychoanalysis. It raises questions about the borromean clinic and Lacan’s last teaching, reevaluating some of his theses. There is a discussion of the use of classical psychoanalytic clinic, depending on the distinction between presence and absence of the Name-of-the-Father and questions the time to make use of the continuist clinic or borromeana clinic that relativizes and even does without the structural opposition between neurosis and psychosis. The article founds this discussion by resuming the paradox of the subject of psychoanalysis. It presents a critical survey of some of Lacan’s statements about the difference between psychoanalysis and science and concludes that psychoanalysis is not a science. The problem is that the advent of psychoanalysis requires to radically revise any positivistic epistemology of science. It's inadmissible that the field of scientific truths has the value of delirious certainties. If nature is a fiction, the knowledge of science can only bear the value of the hypothesis, therefore as irrefutable as the unconscious’s nature.

Key words: psychoanalysis, science, sense, real.


Sur le réel dépourvu de sens de la science en général et la psychanalyse en particulier

Cet article présente les résultats partiels d'une élaboration sur la scientificité de la psychanalyse. Soulève des questions sur la clinique borroméenne et le dernier enseignement de Lacan, réévaluant certaines de ses thèses. Traite de l'utilisation de la clinique psychanalytique classique, qui dépend de la distinction entre présence et absence du nom du Père, et interroge le moment de faire usage de la clinique continuiste ou Borroméenne qui relativise et même renonce à l'opposition structurelle entre la névrose et la psychose. Soutient cette discussion em reprenant le paradoxe sur le sujet de la psychanalyse. Présente une analyse critique de certaines déclarations faites au sujet de la différence entre la psychanalyse lacanienne, la science et conclut: ce n’est pas vrai que la psychanalyse n'est pas une science. Le problème est que l'avènement de la psychanalyse demande de réviser radicalement toute épistémologie positiviste de la science. Il est inacceptable que le champ des vérités scientifiques aient la valeur de certitudes délirantes. Si la nature est une fiction, la connaissance de la science ne peut avoir que la valeur d’hipothèse, donc, aussi irréfutable que l'inconscient.

Mots-clés: psychanalyse, la science, sens, réel.
 


Citacão/Citation: COELHO DOS SANTOS, T. Sobre o real sem sentido nas ciências em geral e na psicanálise em particular. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 21/10/2012 / 10/21/2012.

Aceito/Accepted: 04/12/2012 / 12/04/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.