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Homens e mulheres falam a mesma língua?

 

Kátia Kac Nigri
Psicanalista
Doutora em Psicologia da Personalidade e Social/UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Membro da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo (Rio de Janeiro, Brasil)
Associada do ISEPOL (Inst. Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana – www.isepol.com - Rio de Janeiro, Brasil)
e-mail: kkac@winco.com.br

Resumo

A partir de uma piada que circula pela internet, a autora utiliza autores como Freud e Lacan para discutir o aspecto de lixo e luxo do objeto causa de desejo e a necessidade de um discurso enganador no convívio com o semelhante em nossa contemporaneidade. Aborda a distinção entre homens e mulheres e por que seus discursos são diferentes. Conclui que os aspectos de lixo e luxo do objeto causa de desejo são universais que aparecem de forma distinta nas tribos dos homens e das mulheres. Na relação com seus semelhantes mostra, a partir desta piada, como os homens se agrupam e as mulheres não.

Palavras-chave:
psicanálise, objeto, desejo, sexuação.

 

Duas mulheres se encontram na rua, uma delas saindo do cabeleireiro.

Mulher 1: Olá, querida!!!! Você cortou o cabelo??
Mulher 2: Cortei, Amor!! Você nem imagina com quem. Com o Edson, aquele mago da tesoura.
Mulher 1: Maaaaaaraaaavilhooosooo! Ficou 10 anos mais moça. Essas mechas, que bárbaro!! Vou mandar fazer igualzinho. São luzes???
Mulher 2: Não menina, é uma técnica nova de clareamento que ele trouxe da Itália. Imagina que... blábláblá (meia hora depois...).
Mulher 1: Então tá bom, querida. Corre pra casa que teu namorado vai morrer de orgulho da mulher que tem.
Mulher 2: Ai amiga, te adoro!! Beijinhos!!

MULHER 1 SAI PENSANDO: Como essa perua ficou ridícula!! Será que ela não se enxerga? Não sei como aquele gato do namorado dela continua com ela. Se der mole eu agarro ele.
MULHER 2 SAI PENSANDO: Essa galinha deve estar morrendo de inveja do meu visual. Ainda quer fazer igual vê se pode!!! Com aquele cabelo que parece arame. Nem com implante!

Dois homens se encontram na rua, um deles saindo do barbeiro:

Homem 1: Opa!! E aí, seu filho da puta? Tava cortando o cabelo, né?
Homem 2: Não cuzão, tirei pra lavar!!!
Homem 1: Que merda de corte, hein? Tu tá parecendo um viado. O cabeleireiro entendeu PRA BICHA ao invés de CAPRICHA, é?
Homem 2: É... mas tua mãe gostou...
Homem 1: Falou, então!... Ah, manda um beijo pra aquela gostosa da tua irmã, viu?!
Homem 2: Vai se fuder, seu corno!! Até mais!!

HOMEM 1 SAI PENSANDO: Esse cara... Gente finíssima!!!!

HOMEM 2 SAI PENSANDO: Adoro esse cara.... Muito gente boa...

 

Introdução

Por que se ri desta piada? O que há de cômico e inusitado?

O presente artigo pretende, a partir de piadas sobre homens e mulheres, enviadas pela internet, indagar sobre o que aparece na contemporaneidade como algo fora de sentido, motivo de riso e de revelação. A partir desta piada que nos provoca, abordaremos o que nos faz pensar sobre as relações de objeto para os homens e para as mulheres. Assim, somos convidados a investigar o que há de irônico em nossa constituição e o que haveria de inusitado neste objeto.

Esta piada não trata da típica relação entre os sexos, mas deixa implícita a total diferença entre homens e mulheres. Onde se situa o inusitado neste chiste? Não é pelo jogo de palavras e significantes, mas pelo non-sense demonstrado na distância entre o que se pensa e o que se fala. Na ironia que se apresenta entre o que se diz e o que se pensa, fala-se uma coisa e se pensa no oposto. A mulher pensa uma coisa e fala outra, o homem fala uma coisa e pensa outra. A mulher elogia e o homem xinga. A mulher mostra o luxo, mas pensa no lixo e o homem fala do lixo, mas pensa no luxo. Formas de se abordar o objeto, entre o lixo e o luxo. Estas são as duas vertentes de uma mesma moeda de muito valor: o objeto causa de desejo. Entre o luxo e o lixo, onde se situa o objeto causa de desejo?

O sentido cômico está em parecer que a verdade da piada é outra. Porém, a dúvida que fica é se realmente é outra, o que nos leva a pensar na necessidade de um discurso enganador para que homens e mulheres se relacionem e se comuniquem. A inserção no mundo presume uma certa mentira, um jogo de enganos.

Assim, propomos duas questões importantes: a primeira diz respeito ao objeto causa de desejo com sua faceta de luxo e de lixo, e a segunda diz respeito aos enganos necessários para que haja a relação de mulheres com mulheres e dos homens com os homens. Por que os discursos são tão diferentes?

No tocante ao objeto do desejo, pretendemos desenvolver o tema para chegarmos ao entendimento do significado do luxo e do lixo do objeto causa de desejo e diferenciá-lo para homens e mulheres. No tocante ao jogo discursivo de engano, pretendemos demostrar o que está em jogo na necessidade de produção deste engano.


O objeto: entre o luxo e o lixo


A piada apresentada pode nos confundir, pois não se trata da escolha amorosa de um homem ou de uma mulher, mas de como as mulheres se agrupam e como os homens se agrupam. Se é que se agrupam! De qualquer forma, estamos lidando com objetos, no sentido da relação de um sujeito mulher com um objeto mulher e de um sujeito homem com um objeto homem. Estamos lidando com a relação especular, entre semelhantes.

Sobre o tema da amizade entre semelhantes, podemos inferir que haja traços recalcados de desejos sexuais infantis. Ao pensarmos nesta linha, o que está recalcado nesta piada e nos faz rir? Qual seria o aspecto do desejo sexual recalcado? O relacionamento amoroso com o parceiro de mesmo sexo? Será que é isso? Vamos deixar esta questão aberta por enquanto para pensarmos na questão do objeto.

A primeira relação de objeto seria especular. O sujeito se relaciona com aquilo que ele vê, ele ama o que vê. O texto de Freud (1914) sobre o narcisismo pode ser considerado como o texto que trata do nascimento do amor. No início havia o autoerotismo anterior à nova ação psíquica chamada narcisismo, que se caracterizava pela satisfação das pulsões de forma desordenada. A mãe, uma das figuras que ocupam o lugar do Outro do discurso, ajudava aquele corpo fragmentado a encontrar satisfação em suas pulsões, através da fase oral, do prazer no orifício oral, a partir da amamentação e oferecendo o uso da chupeta, à qual muitos transferem ao dedo. Quando ocorre a ação psíquica do narcisismo, as pulsões passam a se orientar a partir de um objeto. A libido passa a se endereçar a um objeto como um todo. O sujeito é levado a identificar-se com esta imagem totalizada de objeto para agradar as pulsões. Haveria, assim, um esboço de um eu que não deve se confundir com o sujeito. Este objeto total é amado pelo amor de si mesmo. Lacan (1949), no texto do estádio do espelho, apresenta a pulsão escópica no prazer do encontro com a imagem de si mesmo. A libido passa a ser orientada em torno desta imagem de si mesmo que seria o eu ideal. O eu ideal é diferente do eu real fragmentado e anterior ao momento que foi promovida esta ação psíquica chamada narcisismo. O amor de si mesmo daria certa consistência a este eu que ordenaria as pulsões em sua busca pela satisfação. Esta ação psíquica seria o narcisismo primário, nele ocorre o nascimento do objeto total que ordena as pulsões e produz uma identificação a uma imagem de eu, isto é, de eu ideal.

Esta ação psíquica parece acontecer magicamente, como uma evolução natural da espécie humana, em que de repente o bebê se percebe como um corpo unificado. No entanto, sabemos que há uma pessoa, representada por uma voz que diz para aquele sujeito que aquela é a sua imagem. Esta voz, que se repete muitas vezes, autentica a imagem que dá consistência ao eu do sujeito. Esta voz não apenas produz a unificação de um corpo que organiza as pulsões, ela também impõe algumas leis, criando assim, o ideal do eu. O sujeito quer ser amado pelo seu ideal do eu, agir em conformidade com ele, ter os valores que lhe são atribuídos. O eu do sujeito nasce em uma posição de objeto que é autenticada pela voz do Outro.

No Seminário 5, Lacan (1957-58) questiona a constituição da realidade pela criança a partir da relação dual com o objeto materno. Se a criança só tivesse esta experiência a partir da satisfação que obtém da mãe, esta relação ficaria não dedutível. Segundo o autor, a primeira simbolização já comporta em si uma espessura de irrealidade, posto que a satisfação da necessidade deve incluir o desejo do Outro materno que a criança tem diante de si. Neste sentido, já existe uma relação triangular. A relação não é simplesmente o objeto que a satisfaz ou não a satisfaz.

A estrutura apresentada pelo estádio do espelho seria uma forma do sujeito apreender a realidade, a partir da imagem. Sendo assim, toda realidade seria virtual. Em 1957, Lacan afirma que “[...] A imagem tem a propriedade de ser um sinal cativante que se isola da realidade, que atrai e captura uma certa libido do sujeito” (Lacan, 1957, p. 233), um certo número de referenciais, que permite ao vivo ir organizando mais ou menos suas condutas.

O sujeito só se entrega, só passa a demandar, porque tem de satisfazer o desejo do Outro, pretendendo iludir este desejo. O júbilo da imagem no espelho está neste jogo. A criança conquista uma imagem do corpo em algo que, ao mesmo tempo, existe e não existe, em seus movimentos e nos movimentos do que o acompanha diante do espelho. A realidade é virtual, irrealizada, a ser conquistada.

O falo imaginário, ao qual a criança poderá se identificar para satisfazer o desejo da mãe, ainda não está situado em seu lugar. Mesmo assim, o estádio do espelho seria primordial para a abertura às possibilidades imaginárias. Como consequência do estádio do espelho, temos dois movimentos de abertura para a criança, diria de inserção no mundo: primeiro, a constituição da imagem do corpo como ilusória, porém referência que o sujeito terá da realidade e, o segundo, a possibilidade de realizar suas primeiras identificações do eu. A questão é que o sujeito encontra uma imagem que não está pronta, ele terá que defini-la, identificá-la, conquistá-la e subjetivar esta imagem como parte de si. Assim, a criança poderá identificar-se com vários elementos multiplicados de significantes da realidade. Estes seriam hieróglifos, representações que pontuam a sua realidade com certos referenciais. Ele ficaria recheado de significantes se não houvesse o limite com a formação do ideal do eu.

O ideal do eu surge como um organizador, ditando uma lei de inserção do sujeito no mundo da linguagem. Este passaria da assunção da imagem à demanda, com tudo que isto comporta. “O sujeito se identifica com o ideal do eu, ao ir em direção ao simbólico” (Lacan, 1957, p. 235).

A identificação ao ideal do eu já presume que haja a entrada do pai enquanto lei, o Nome-do-Pai, apresentado por Lacan. “Se a identificação do ideal do eu se faz no nível paterno, é precisamente porque, nesse nível, o desapego é maior no que concerne à relação imaginária do que no nível da relação com a mãe” (Lacan, 1957, p.235)

O pai, que intervém como proibidor, faz com que o objeto do desejo da mãe deixe de ser somente imaginário e passe à categoria simbólica. A identificação da criança com o objeto de desejo da mãe será virtual, possível e ao mesmo tempo ameaçadora. Esta ameaça é levada à destruição pela intervenção simbólica do Nome-do-Pai. A presença dele não se faz progressivamente, mas de maneira abrupta e decisiva. O pai intervém com sua pessoa, sendo assim um núcleo significante capaz de constituir o núcleo da identificação máxima: o ideal do eu.

O sujeito pode se reconhecer em um lugar de eu, como um elemento significante, e não mais o elemento imaginário em relação com a mãe. Assim, a criança passa a se compor com identificações de objetos que estão além do objeto imediato, mãe, remetendo para o que está para além dela: o pai. Neste ponto, haveria o encontro do imaginário com o simbólico, da imagem do corpo com o significante que o representa. Seria um ponto de báscula. Da imagem nasce a palavra.

Em “Psicologia de grupo e análise do eu”, Freud (1921) relaciona o lugar do objeto de investimento do sujeito com o ideal do eu. O objeto, ao ocupar o lugar do ideal do eu do sujeito, faria com este se identificasse com ele. O eu se enriquece com as propriedades introjetadas do objeto enquanto ideal do eu. Uma outra forma de relacionar o objeto ao ideal do eu é a de considerar que o objeto teria o que falta ao sujeito para poder ser o ideal do eu.

Neste ponto, faz-se necessário uma distinção. Ao identificar-se com um objeto o que ocorre é uma modificação no eu para assemelhar-se com o objeto e um afastamento deste objeto enquanto objeto de investimento amoroso. Ao se identificar com o objeto, este perde seu interesse sexual. No enamoramento o que ocorre seria uma fascinação e uma entrega do sujeito ao objeto que traria como consequência um empobrecimento do eu. Sendo assim, ou ele se identifica com o objeto ou investe nele. Neste ponto, gostaríamos de levantar uma questão complicada, pois aparentemente parece haver apenas dois tipos de relação com o objeto: identificar-se com ele ou investir nele. Ao identificar-se, o eu do sujeito se enriqueceria com as qualidades introjetadas do objeto em si; ao investir no objeto haveria um empobrecimento do eu, como se o eu se esvaziasse, se perdesse, para investir no objeto. Isto levaria a uma questão no tocante à posição do amor. Ao amar, investir no objeto, o eu se empobreceria? Sem querer escrevi embobreceria, acho que embobecer seria empobrecer?! Talvez só embobecer... Se houver apenas duas possibilidades de relação com o objeto: uma, que há um ganho na identificação e outra, uma perda, no investimento, então, nos investimentos amorosos só haveria perda? Assim, o que de fato se perde e o que se ganha? Uma imagem de eu?

Freud (1921) chama-nos a atenção para o fato da permanência dos laços libidinais entre as pessoas se dever às pulsões libidinais inibidas em seus objetivos, havendo componentes puramente afetuosos. Inibidos não querem dizer recalcados. Isto nos indica que as pulsões podem ser freadas, inibidas. As pulsões inibidas em sua finalidade são as que permitiriam os laços sociais, ou seja, os laços amorosos duradouros sem finalidade sexual. Freud buscou entender como poderia haver relações duradouras após a satisfação sexual, pois algo mais deveria existir para manter as relações.

Ainda neste texto, Freud (1921) aborda a questão do hipnotizador. Por que as pessoas se submeteriam a ele? O autor designa a palavra ‘mana’ para dizer deste quê que atrai os sujeitos, uma espécie de magnetismo que poderia ser encarado como uma espécie de tabu. Algo que hipnotiza, fascina e é perigoso.

O lugar do hipnotizador é comparado ao da transferência no dispositivo da experiência analítica. A tarefa seria a do hipnotizador se colocar no lugar dos pais do sujeito, despertando uma parte da herança arcaica que o tornaria submisso aos genitores. Uma reprodução da relação com o pai, personalidade perigosa e predominante, a quem possuía uma atitude passivo-masoquista (Freud, 1921, p. 161). O ‘mana’ teria semelhança com o lugar do pai arcaico, o pai da horda primitiva apresentado no texto “Totem e tabu” (Freud, 1913). A submissão ao pai da horda, que insere o sujeito na civilização, se daria por um suposto amor que eles gostariam de receber deste pai primevo. Podemos entender esta estória criada por Freud como uma forma lógica para tentar compreender o momento inaugural da inserção do homem na cultura. Anotações relativas aos seminários do ISEPOL, ministrados por Tania Coelho dos Santos entre 2010 e 2011, permitem afirmar que, com Lacan, será a linguagem que irá inaugurar esta entrada. Podemos dizer que é a voz que introduz a ação psíquica do narcisismo primário. É a voz e a língua que organizam, ordenam e dão consistência ao eu, legitimam um certo lugar de eu.

O mundo da língua confere o poder às palavras para dissolver as angústias e mortificar os prazeres. Elas tentam traduzir os momentos, porém são falhas e incapazes de imprimir à vida todas as suas cores. Uma vez aderindo ao mundo das letras o sujeito se submete a isso. É este o pai da horda. O pai da horda é a linguagem, o que marca o mundo humano de trocas, enganos, atos falhos e revelações.

Este ‘mana’ pode ser entendido como uma voz que fascina e é perigosa, pois remete ao momento de submissão à linguagem, ao mundo humano, com todas as suas letras. ‘Mana’ é uma voz, um eco, qualquer coisa, até mesmo esvaziada, sem precisar ser nada muito específico, cheio de qualidades ou atribuições. Não é um ideal do eu cheio de atributos idealizados, mas qualquer coisa, absolutamente contingente que aparece na hora que se está pronto para ouvir.

Neste sentido, podemos entender o objeto com seu luxo e seu lixo. Ele se mascara com os atributos maravilhosos de um ideal cheio de idealizações, porém são apenas máscaras, semblantes de qualquer coisa esvaziada e contingente que está ali na hora que se está pronto para captar. É lixo porque é esvaziado de sentido. Ele atrai porque se está olhando para ele.

Assim, retornemos à piada apresentada que mostra a forma como as mulheres se dirigem a outras e homens a outros. Podemos destacar os aspectos de luxo e lixo de um mesmo objeto. A beleza que é falsificada e o babaca que é maneiro. Facetas do mesmo objeto se despindo de suas máscaras. Neste aspecto, podemos dizer que as duas facetas do objeto são universais.

No Seminário 5, Lacan (1957-58) aborda o aspecto duplo do significante que representaria o sujeito a partir de sua fantasia fundamental. Este significante conteria os dois valores: agalmático e profano.

“Precisa-se de nada menos do que isso para compreender por que o significante, a partir do momento em que é introduzido, tem, fundamentalmente um valor duplo. De que modo se sente o sujeito, afetado como desejo pelo significante, na medida em que é ele que é abolido, e não o outro que detém o chicote imaginário e, é claro, significante? Como desejo, ele se sente escorado naquilo que como tal o consagra e o valoriza, ao mesmo tempo que o profana. Há sempre, na fantasia masoquista uma faceta degradante e profanadora que indica ao mesmo tempo a dimensão do reconhecimento e o modo de relação proibido do sujeito com o sujeito paterno. É isso que constitui o fundo da parte desconhecida da fantasia” (Lacan, 1957-58, p. 255).












Assim como Freud (1913) cria a estória da horda primitiva para entender o que leva os sujeitos a se inserirem na cultura, Lacan (1957-58) cria na lógica do fantasma, ou da fantasia fundamental, a fórmula do que haveria de mais arcaico nos sujeitos ao terem de se submeter à língua: a busca do encontro com a célula inaugural da união de sua imagem totalizada com o significante, sendo o sujeito em sua divisão relacionado com o objeto que é ele mesmo nesta representação.

A questão que fica é se o sujeito, ao demandar, fala no lugar de sujeito ou no de objeto? O objeto seria um significante e, como tal, se apresentaria com sua duplicidade de mensagem e significação.

O sujeito se divide por conta deste objeto que o funda e contém esta duplicidade. O objeto que o funda já é um significante que conteria o duplo valor: agalmático e profano, o luxo e o lixo.

Assim, no jogo das relações entre pessoas, ao deparar com o objeto que serviu de mana, que o atraiu, seja pela via identificatória ou pela via de investimento, o objeto pode aparecer com seu valor agalmático e esconder o seu lado profano. Ele pode ser mostrado pelo seu lado profano, mas ter seu valor agalmático. O objeto conteria estes dois aspectos de lixo e luxo, características que o torna universal para ambos os sexos. Estes aspectos não se distinguem para homens e mulheres, porém a forma como eles os veem e os apresentam seriam diferentes.


O objeto para os homens e para as mulheres


Como pensar na posição do objeto para o homem e para a mulher? Lacan (1972) nos apresenta as fórmulas quânticas da sexuação. Em nossa civilização, a proliferação de discursos que buscavam igualar os sexos fez com que novas falas surgissem para reafirmar e recolocar cada um em seu lugar. Lacan, no Seminário 20: mais ainda, capítulo VII, intitulado “Letra de uma carta de almor”, cria um quadro para os seres que habitam a linguagem. Nele haveria as únicas definições possíveis da parte dita homem e da parte dita mulher.  Estas definições seriam os modos lógicos como homens e mulheres operam no mundo da linguagem. Reportemos ao quadro, apresentado na página 105 deste seminário, para pensar na questão do objeto.



Segundo Nigri (2001), o objeto causa de desejo fica inscrito do lado direito, ou seja, do lado da mulher. Isto se dá porque o objeto a não é identificável, ele escapa à fálica. A mulher fica situada como semblante do objeto a para quem está do lado do homem. O homem acha que a mulher faz semblante de objeto a, pois o objeto se situa do lado da mulher. Assim, para o homem, o objeto falta sempre, pois ele está do lado da mulher. Para a mulher o objeto não falta, porém falta-lhe ser inteira. Assim, surge a questão a respeito deste lugar de objeto para a mulher: ela pode fazer-se de objeto para um homem, mas não seria esta a posição em que ela goza. Ela goza em relação ao falo e ao S(), duas posições distintas e diferentes da posição em que elas se colocam em relação aos homens. Ou são eles que as colocam neste lugar?

Magno (1979) aborda o homem como aquele que está no campo da fala, ele “falou e disse”; já a mulher está não-toda na fala, a fala dela transborda no “falar pelos cotovelos”. Desta forma: qual a relação de homens e mulheres com a fala e a língua? Existe o gozo de lalíngua, mas este seria distinto para homens e mulheres posto que a fala é afirmativa nos homens, mas nas mulheres é tagarelice, é blábláblá.

Se a fala da mulher transborda e é tagarelice, isto significa que a sua fala é vazia? O que ela pode obter com a fala? Através da fala ela busca o objeto que lhe dará suplência para sentir-se inteira. E o homem, com o “falou e disse”? Ao falar ele se endereça a um objeto impossível, posto que está do lado feminino; assim, ele só conseguirá semblantes meio desarrumados. Magno (1979) diz que do lado masculino encontramos a impossibilidade e do feminino a insatisfação. Estes são modos lógicos de homens e mulheres operarem com seus objetos. O objeto para o homem estaria ocupando a posição feminina, portanto seria inexistente e faltoso. O objeto para a mulher deverá comparecer através de palavras de amor para fazerem suplência ao significante que lhe falta para que ela se sinta inteira. Neste caso, ficaria insatisfeita porque, para sentir-se inteira, ela ocupa um lugar aberto, nunca fechado.

Considerando a mulher como aquela que não existe, como podemos pensá-la enquanto sujeito da enunciação em sua fala? Devemos pensar na fala como aquilo que fala em mim. O sujeito não sabe o que fala. Ao enunciarmos, estamos ocupando uma posição de objeto, ou seja, é enquanto objeto que se fala – trata-se do outro que habita em mim, ou melhor, o inconsciente.

A questão dA mulher deveria ser pensada como “cada mulher”, uma a uma. Não há como pensar em uma definição para a mulher, ela não é representável, não existe. Entretanto, cada mulher existe uma a uma como sujeito da enunciação. Ela também é sujeito, mas uma a uma. A tagarelice seria este gozo da fala. Não é uma fala vazia em que não há quem enuncia, há uma mulher que fala.

Sobre a piada, podemos ver o sentido do blábláblá da tagarelice feminina? O encontro com a outra faz com que ambas exercitem o falar por falar. É o puro prazer da falação. Toda fala é demanda e toda demanda é demanda de amor. Neste sentido, ao falar, ocupando a posição do objeto que fala nela, ela demanda ser amada, fazendo suplência ao seu ser que comporta o belo e o feio, a verdade e a mentira, o vazio e o cheio.

E o homem? O homem falou e disse. O que representa essa xingação para o homem? Pensei na contemporaneidade e no carioca malandro para quem xingar é ser maneiro, estar antenado, ser macho. O palavrão é um significante do macho, do homem, uma fala que os agrupa, considerando-os um conjunto total. É a língua do macho. Sem ofender, são apenas palavras, significantes que os une em um grupo, fazendo deles Um. Penso nos meninos quando estão chegando à puberdade.  Para eles, o palavrão é uma forma de identificação, formam o grupo dos que falam palavrão, dos que são machos. Pedem para uma menina falar palavrão para rirem dela, incluindo-as fora do grupo. É feio, não é coisa de menina.


Concluindo...


O que é uma piada? É um retrato do contemporâneo. Só se ri porque o riso revela algo que diz respeito a um real que está dentro e está fora de nosso alcance. Ele só tem graça no tempo em que foi produzido. Como nos diz Lipps:

“Um chiste diz o que tem a dizer, nem sempre em poucas palavras, mas sempre em palavras poucas demais, isto é, em palavras que são insuficientes do ponto de vista da estrita lógica ou dos modos usuais de pensamento e expressão. Pode-se mesmo dizer tudo o que se tem a dizer nada dizendo” [...] [os chistes] “devem apresentar alguma coisa ocultada ou escondida” (Lipps, apud Freud, 1905, p. 26).







Podemos relacionar o lugar de objeto do qual falamos, este outro que fala em mim quando enunciamos, com o objeto causa de desejo? Trata-se de dois lugares distintos? Fala-se enquanto objeto porque nossa fala supõe a tribo do Outro, ela já inclui o Outro e seu desejo. Para esta fala ter sentido, ela precisa ser autenticada pelo Outro, sendo assim, quem enuncia já deve supor o que seja necessário para que a fala seja autenticada. É como a ideia de quem veio ao mundo primeiro: o ovo ou a galinha? É uma estrutura, sem antes e sem depois. Será o Outro que dará significação ao que está sendo demandado, apesar de nunca conseguir satisfazer a necessidade que está por trás da demanda. E o objeto causa de desejo? Ele está em jogo. O filho ou a filha ocupam o lugar de falo para a mãe, isto já confere ao lugar de filho o de objeto causa de desejo.

A coisa vai se complicando... Podemos dizer que o que se recalca é o lugar de falo da mãe, ou é o que organiza? O narcisismo enquanto operação seria uma espécie de colagem do objeto causa com o objeto da imagem fálica? Quando se enuncia o que fala em nós seria deste lugar de objeto causa de desejo do Outro, o qual não se consegue capturar, alcançar, dar sentido? Então o lugar de objeto e objeto causa de desejo seriam os mesmos?

Quem enuncia é um sujeito na posição de objeto. Ele enuncia para quem? Ele leva em consideração para quem enuncia? A quem ele se endereça? Faz diferença se é para um homem ou para uma mulher? Provavelmente sim. Há um entendimento de como a tribo dos homens fala e a das mulheres também. Mas elas fazem tribo? Existe a tribo das mães que falam de seus falos, filhos, maridos e empregadas, casa, etc. Discursam sobre seus objetos. Isto confere às mulheres um lugar de identificação. Por que, então, dizer que não se agrupam? A mulher, ao elogiar, se identifica sem se identificar. Ela fala de dentro para colocar-se de fora. Já o homem, faz grupo, enuncia.

Assim, podemos dizer que o que estaria em jogo nas diferentes formas de enunciar seria a posição deste homem e desta mulher e a relação de cada um com a posição de objeto que ocupam em seu fantasma. Ao lidar com o mesmo, o que eles veem seria a própria imagem especular, ao passarem ao dito, estariam falando ao outro algo de si mesmos. Talvez seja este o recalcado da piada: quem é a bela? Quem é a horrorosa? Quem é o que é bicha? E o maneiro?


Referências bibliográficas


FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente, in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1998, vol. VIII.

FREUD, S. (1913) Totem e tabu, in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, 1998, p. 17-192.

FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução, in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, 1998, p. 85-119.

FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do eu, in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVIII, 1998, p.91-184.

LACAN, J. (1949) El estadio del espejo como formador de la función del yo [je] tal como se nos revela em la experiencia psicoanalítica, in Escritos 1. Madri, Espanha: Siglo Veinteuno Editores, 1994, p.86-93.

LACAN, J. (1957-58) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

LACAN, J. (1972-73) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

MAGNO, M.D. (1979) O Pato Lógico. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986.

NIGRI, K.K. (2001) O desencontro amoroso na contemporaneidade: uma visão psicanalítica. Tese de doutorado. Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio do Janeiro, RJ.



Resumos:


Men and women speak the same language?


From a joke circulating on the Internet, the author uses authors as Freud and Lacan to discuss the aspect of waste and luxury of the object cause of desire and the necessity of a discourse misleading in conviviality with the similar in the contemporaneity. Discusses the distinction between men and women and because his discourses are different. Concludes that the waste and luxury aspects of the object cause of desire are universal and appear differently in the tribes of men and women. The relationship with their similars shows, from this joke, how men do a group and women do not.

Keywords:
psychoanalysis, object, desire, sexuation.


Les hommes et les femmes parlent-ils la même langue?


De une blague qui circule sur l'internet, l'auteur utilise auteurs comme Freud et Lacan pour discuter de l'aspect de déchet et luxe de l'objet cause du désir et la nécessité d'un discours trompeur dans le contact avec lesemblable dans la contemporanéité. Elle discute de la distinction entre les hommes et les femmes et parce que ses discours sont différents. Conclut que les aspects de déchet et de luxe de l'objet cause du désir sont universels et se présentent différemment dans les tribus des hommes et des femmes. La relation avec ses semblables montre, à partir de cette blague, comme les hommes sont groupés et les femmes ne le font pas.

Mots-clés:
psychanalyse, objet, désir, sexuation.


Citacão/Citation:
NIGRI, K.K. Homens e mulheres falam a mesma língua?. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 12, mai. a out. 2011. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 12/11/2010 / 01/02/2011.
Aceito/Accepted: 10/02/2011 / 02/10/2011.
Copyright: © 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.