Introdução
“Todos os homens merecem ser felizes” – é o que ditam as utopias contemporâneas: a felicidade a qualquer preço. A sociedade contemporânea prega uma liberdade e uma felicidade “para todos” no ritmo da universalização dos direitos do homem. De acordo com Coelho dos Santos (2008), a disseminação da ideia de liberdade e igualdade entre os homens tende a apagar, de forma acentuada, as diferenças sexuais e geracionais, essenciais para os sujeitos.
Traremos aqui o recorte clínico de um caso atendido na Vara da Infância e Juventude - Teresópolis (RJ). Nossos objetivos são mostrar de que modo a perda precoce das duas mães e a ausência do pai, em sua função de proteger a criança da invasão de gozo, determinaram, para um menino, seu destino e como questões que tiveram seu início neste trabalho e foram solidamente observadas em outras pesquisas (Coelho dos Santos e Zeitoune, 2012) trouxeram consequências sobre sua sexuação. Nosso campo de reflexão está delimitado pela relação do sujeito com seu Outro. Mesmo quando um analista é chamado a intervir em serviços públicos, ou na sociedade, ele se dirige ao Outro.
Um analista que atua em uma Vara da Infância e da Adolescência recebe os sujeitos a partir de uma sentença jurídica. Portanto, ele estará sempre diante da alternativa entre acolher uma sentença judicial dada a um jovem pela justiça e a tarefa de buscar uma hiância no Outro para que um sujeito possa recuperar sua enunciação singular, haja vista que na definição de um ideal de felicidade “para todos”, que é exigência da coletividade, não cabe a desmesura pulsional que a psicanálise revela como falta de medida das paixões de um sujeito (Brodsky, 2009).
A psicanálise não está desvinculada da civilização, pois, não existe teoria do sujeito que não se relacione a uma teoria sobre a cultura (Miller, 2006). Jacques-Allain Miller nos ensina que sintomas, discursos e laços sociais são equivalentes. Por isso, precisamos pensar nas mudanças da civilização para afinar seus instrumentos de trabalho.
A pesquisa
Nossa pesquisa na Vara da Infância, que teve seu inicio no ano de 2003, se dedicou a receber crianças vítimas de perdas precoces de pai e/ou mãe, por morte e/ou abandono2. Nestes anos de trabalho junto àquelas crianças e adolescentes, verificamos uma estreita relação entre a dissolução dos laços familiares na tenra idade e o comportamento infracional. Estas perdas e suas consequências não são sem relação com o sexo do genitor perdido, com o da criança, assim como com a idade desta. Todos estes fatores trarão consequências sobre a sexuação das crianças.
Observamos ainda que, em sua grande maioria, as famílias atendidas pela Vara são desagregadas e deixam estas crianças mais expostas a uma invasão de gozo deslocalizado. Uma angústia intensa aparece frente à perda precoce em sua vertente real favorecendo a produção de uma ruptura de laços e/ou a eclosão de uma violência, não só dirigidas ao sujeito, mas também direcionadas à ordem social.
A perda precoce de um ou de ambos os pais faz com que as crianças muitas vezes fiquem entregues à própria sorte e a Vara da Infância e da Adolescência é frequentemente chamada a suprir a falta destes recursos. Nossa inserção como psicanalistas nessa tarefa nos desafia frente a inúmeras dificuldades. Nós nos deparamos com precariedades concretas tanto as materiais como as subjetivas causadas pelos danos sofridos. Nós, analistas, somos desafiados em nosso trabalho a não ceder à tentação de tratar estas precariedades com o assistencialismo.
Particularidades da Vara da Infância e Adolescência
A Vara da Infância e Juventude se particulariza por ter um caráter socioeducativo. Sua população alvo são crianças de 8 a 18 anos com distúrbios de comportamento e/ou infratoras que se encontram em estado de risco moral e social, sentenciados pelo ECA com medidas preventivas ou socioeducativas de liberdade assistida ou semiliberdade.
A população atendida caracteriza-se, em sua maioria, por serem famílias com muitas dificuldades seja em sua condição financeira, na forma como seus membros se organizam, seja quanto ao nível de escolaridade. Esta precariedade de funcionamento recai sobre o cuidado com as crianças e se estende à capacidade de reflexão e ao uso das palavras, o que tem efeitos diretos sobre a condição de elaboração de seus conflitos.
Uma leitura da sociedade brasileira
Segundo Almeida (2007), a população brasileira se divide em dois estratos: um escolarizado e outro pouco ou não escolarizado. Isto faz aparecer modos de inserção e funcionamentos diversos para estas duas camadas de nossa sociedade. Na Vara da Infância e Juventude atendemos, principalmente, a um estrato de população que possui uma baixa escolaridade. São famílias em que é contundente a fluidez dos laços afetivos e/ou sexuais, em que as crianças ficam entregues ao sabor da emergência ou do rompimento destes laços. Assim, recebemos famílias desagregadas, crianças muitas vezes abandonadas à própria sorte, inseridas em uma sociedade que, segundo Bauman (1998), é regida pelas leis de consumo, em que não existem modelos, a não ser o de usufruir mais e mais dos objetos.
Trata-se de uma sociedade que, segundo Lipovetsky (2005), é regida pela lei igualitária que contamina os papéis familiares, ficando apagadas as diferenças geracionais e sexuais, apagamento que provoca um desordenamento importante na vida daqueles sujeitos.
Uma das características da sociedade contemporânea é o declínio dos lugares de autoridade cujos efeitos recaem sobre a função paterna, enfraquecendo sua efetividade, o que deixa os sujeitos mais entregues às exigências da sociedade de consumo, para as quais não existem normas muito firmes, exceto o imperativo de se poder aproveitar ao máximo as cartas de que se dispõe.
Lacan (1972), ao se referir aos discursos como diferentes modalidades de laço social, nos fala que o que caracteriza o discurso capitalista é a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico da castração. Ele acrescenta que todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chama de coisas do amor (Lacan, 1972), deixando o sujeito mais entregue ao seu movimento pulsional sem a regulação promovida pelo pai, pelo universal da castração.
Na contemporaneidade, muitas vezes, a lei que incide sobre o gozo do sujeito já não provê mais do Nome-do-Pai. Seguidamente faz-se, então, necessário substituí-lo por um ordenamento jurídico (Brodsky, 2009). No caso que apresentaremos, esta máxima se particulariza para um sujeito e sua família e, com isso, a prometida felicidade tornou-se uma questão judiciária. Se a lei deve ser para todos, o modo de subjetivá-la é particular a cada sujeito. Ela está situada na relação de cada sujeito com o seu Outro.
A constituição da realidade psíquica
A constituição do aparelho psíquico para Freud (1895) tem seu início na primeira experiência de satisfação. Freud fala que as excitações endógenas, das quais um bebê não tem condições de se livrar sozinho, promovem uma sobrecarga no aparelho psíquico que buscará uma descarga. Esta urgência na busca de uma descarga por parte da criança estará entrelaçada e depende da resposta de um semelhante para que esta possa sobreviver.
A realidade psíquica se forma a partir das respostas dadas para o alívio da tensão, dos cuidados que vão promovendo os caminhos e suas facilitações. Estas facilitações cavam trilhamentos através dos quais um bebê vai conhecendo modos de se desvencilhar de seus incômodos que irão tecer sua maneira de interpretar e, consequentemente, responder ao mundo. A partir da leitura lacaniana do texto freudiano, podemos afirmar que um sujeito é banhado pelos significantes que vêm do campo do Outro e com eles vai criando ferramentas através das quais fará uma representação parcial de seu desamparo original. Estes primeiros cuidados dispensados ao bebê também o imergem num mar de palavras e sons para os quais ele não possui meios de interpretar. Os significantes vão assim preenchendo as lacunas deixadas pelo encontro com o impossível de representar.
A soma das representações e do irrepresentável irá compor a realidade psíquica, a fantasia. As representações terão a função de interpretar as experiências traumáticas da primeira infância, ou seja, do encontro de um sujeito com a castração. Tudo o que se articula de significante cairá sob o golpe da função da castração, ficará algo irrepresentável que será da ordem de um vazio estrutural. Este resto ininterpretável será para Freud o motor da pulsão de morte e, para Lacan, terá equivalência à definição de real.
Este encontro com a diferença sexual provocará um recolhimento de significantes na tentativa de recobrir o real da estrutura. Estes significantes orientarão um sujeito em direção ao Outro e engendrarão seu próprio gozo. O real manda toda a significação e o paradigma do um laço social a ser instaurado (Lacan, 1972).
A entrada no campo da linguagem deixará marcas, como a incorporação da palavra do Outro num tempo de uma impossibilidade de decifração e que acabará por construir uma lei insensata, o supereu.
Supereu como imperativo de gozo:
Em “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1895) escreve que o desamparo original de um sujeito é a fonte primordial de seus motivos morais. Assim, a prematuridade orgânica de uma criança a leva a depender e ter que buscar palavras e meios para interpretar sua inserção no campo do Outro. No entanto, como neste primeiro momento não consegue decifrar o que lhe vem do Outro, ela incorporará palavras as quais lhe faltam o sentido. Aqui se dará a construção do supereu feito de uma lei insensata e longe das significações.
Para Freud, o supereu nasce da tentativa de representar o desamparo original. Lacan dirá que o supereu atesta a divisão do sujeito causada pela sua inscrição na linguagem, que terá como consequência o atravessamento do corpo vivo pelo significante e sua consequente desnaturalização.
Lacan (1953) dirá que esta lei dada pelo significante puro - S1 - regerá o imperativo superegoico. Desta forma, o supereu se constituirá como um imperativo. Figura feroz imaginária que aparece sob a forma de um S1, um capricho sem lei do desejo materno, uma voz insensata não regulada pelo gozo fálico, que ordena ao sujeito: goza!
Lacan diz que o supereu é um imperativo coerente com a noção da lei. Lei em suas duas vertentes, tanto de interdição quanto de exortação ao gozo. Assim, ele traz consigo uma lei da interdição do incesto, mas que também porta a sua própria destruição ou desconhecimento (Lacan, 1953-54). Trata-se de uma lei que não se pode nem mesmo exprimir, que se reduz ao “Tu deves” e se liga ao que há de mais devastador nas experiências primitivas do sujeito, ligadas aos traumatismos primitivos, sejam eles quais forem (Lacan, 1953-54, p.123).
Esta lei superegoica não estará regida pelo principio do prazer. É assim que Freud partirá dos conceitos de pulsão de morte e do masoquismo para deixar claro que um sujeito não quer, obrigatoriamente, seu bem, porque está tomado por suas exigências pulsionais. Lacan mostra como a pulsão agita um sujeito e o força a encontrar um modo de funcionamento para seu corpo desnaturalizado de suas necessidades e tomado pela linguagem. Lacan nos fala que o supereu possui uma gulodice que irá testemunhar a ferocidade do sujeito consigo mesmo manifestada seja pela inibição, seja pela compulsão.
Serão as exigências pulsionais, promovidas entre o corpo e o psíquico, que farão o sujeito tentar se desvencilhar de seus desconfortos através de renúncias - ledo engano neurótico este, pois que quanto mais renuncia, mais é exortado a renunciar.
O supereu é regido por uma lei de ferro atrelada a um outro ao qual o sujeito é mais apegado que a si mesmo e que está situado na posição de mediação entre o sujeito e si mesmo, assim como entre o sujeito e seu semelhante (Lacan, 1953-54). Ou seja, a tese de Lacan é a de que para além de ser um dos nomes do inconsciente freudiano, o supereu atesta a divisão do sujeito entre desejo e gozo.
A sexuação
Lacan escreve a respeito do supereu como uma função: “[...] deve ser tomado como uma manifestação individual, ligada às condições sociais do edipianismo [...]” (Lacan, 1950, p. 136). Como pensar então a função do supereu na estrutura psíquica de um sujeito inserida na sua relação com o par parental?
O complexo edipiano, ou seja, o mito das relações do sujeito com seus semelhantes, se enlaça ao complexo de castração e é para Freud o responsável pelo laço entre a esfera social e a vida psíquica. As relações e a inserção do sujeito no laço social se pautam pela maior ou menor eficácia de suas identificações. A identificação primária trata do laço de incorporação com o pai. Ela é resultado do amor ao pai e anterior a qualquer escolha de objeto. A identificação sexual será fruto do entrelaçamento entre o complexo de Édipo e o complexo de castração. A diferença sexual será, portanto, o ponto de real no corpo sobre o qual um sujeito terá que encaminhar sua resposta sintomática a seu destino.
O encontro com a diferença sexual no corpo aparece muito cedo na vida de uma criança. Deparar-se com esta diferença engendra uma série de perguntas sobre a sua origem que inclui questões sobre a sexualidade de seus pais, sobre sua concepção e sua chegada ao mundo. Desta maneira ele se localizará na historia deste casal. O lugar que uma criança ocupa para seus pais será o índice do desejo que a engendrou. Seu valor fálico estará assim entrelaçado à sua identificação sexual mais adiante. Será com estas respostas encontradas e tecidas pelo sujeito que este poderá fazer uma ideia a respeito de sua posição de objeto e de sua posição de gozo que o levarão a nomear este real enigmático, ponto impossível de sua origem (Lacan, 1973).
Quanto ao pai, Lacan (1956-57) escreve que uma de suas funções é a de interditar, seja privando a mãe do gozo do filho, seja separando o filho de sua mãe. Por outro lado, sua função é a de amor. É a transmissão do falo feito pelo pai que permite ao menino se separar do lugar fálico ocupado por ele na relação com sua mãe. É função do pai dar potência à metáfora paterna e auxiliar um filho a se desidentificar do falo para que possa subjetivar a castração. Será o pai portador do significante da exceção que poderá substituir o enigma do desejo do Outro, nomeando o gozo.
Ao falar sobre a clinica da sexuação em seu último ensino, Lacan (1974-75) apontará o pai como desejante e uma criança como fruto de uma causa. Uma criança nascerá do desejo de um homem por uma mulher, do desejo desta mulher tanto pelo falo de seu parceiro quanto pelo seu desejo de filho (falo). Uma criança será produto do mal entendido entre os sexos e um representante representativo de um fora do sentido que o sexual traz em seu bojo.
O Nome do pai ou o “nomear para” materno
O Nome-do-Pai em Lacan aparece conceituado a partir da interdição do incesto, pivô da lei primordial que barra o gozo do pai da horda e institui a ordem entre as gerações. Lacan fala de uma relação entre o amor e a castração, lugar este, muitas vezes, sustentado pela figura do pai. O Nome-do-Pai será destacado por Lacan como o significante que ordena a cadeia, opera a possibilidade do laço social entre os seres humanos, seus engajamentos e diferenças e insere o sujeito na cultura, no campo do Outro da linguagem. Portanto, o Nome-do-Pai ordena o campo do Outro fornecendo-lhe um sentido.
Lacan (1974-75), ao partir da potência do pai vivo e encarnado, do pai desejante, dirá que é preciso que uma mãe empreste consequências à palavra do pai para que ele possa vir a funcionar para um sujeito. Esta mulher, ao consentir o valor fálico que este homem possui para ela, potencializa este homem como pai de seu filho. A função do pai não só separará este filho de sua mãe, como o conduzirá ao laço social.
Lacan (1969) nos mostra como uma criança vem responder ao que há de sintomático na estrutura da família, à verdade do casal parental. A verdade do casal aparece ali onde o sujeito coloca em causa a metáfora paterna, ou seja, a substituição do desejo enigmático da mãe por um significante que é o Nome-do-Pai. Não haverá substituição metafórica possível se a mediação da função do pai não operar junto ao desejo da mãe.
Lacan deixa ao encargo do Nome-do-Pai a lei simbólica, fazendo deste a condição de emergência do gozo fálico e do desejo. A metáfora paterna coloca em questão o valor fálico de uma criança para o Outro - momento em que se articula, para um sujeito, a confrontação enigmática e angustiante com o desejo do Outro, que a mãe encarna. No entanto, a significação fálica não é suficiente para legalizar todo o gozo no corpo de uma criança. Temos aqui um limite da resposta fálica em tomar para si todo real emergente da confrontação com o desejo do Outro. É preciso que outros mecanismos de regulação possam aparecer para darem conta deste gozo que escapa à regulação fálica que possibilitem uma resposta determinante para o funcionamento psíquico.
Lacan (1974-75) estabelece o pai no final de seu ensino pela via do amor e do laço social. O pai precisa saber que será digno do respeito e do amor quando se responsabilizar pela tarefa de afrontar a questão do gozo de uma mulher e de seu próprio gozo. A relação entre o amor e a castração é então uma consequência do amor que sustenta o Nome-do-Pai. Para dar peso a esta função, Lacan nos diz que será preciso que uma mulher, aquela que encarna o Outro, a voz para um sujeito, transmita, traduza e confira potência a esta função para o sujeito. Desta maneira ela possibilitará que o Nome-do-Pai ganhe uma função através dos desfiladeiros do significante.
Quando o Nome-do-Pai falta para metaforizar o desejo da mãe é preciso que algum outro nome venha enodar a estrutura. Todavia, nem toda nominação abre a dimensão do amor. A perda do que suportaria a dimensão do amor, o Nome-do-Pai, se substitui por uma função que é a do “nomear para”. Ser “nomeado para algo” traduz uma ordem que substitui o Nome-do-Pai. Nesta perda do que sustentaria o Nome-do-Pai, a mãe bastará então por si só, escreve Lacan, para designar seu projeto para seu filho. Não seria este “nomear para” um signo de uma degeneração catastrófica para um sujeito? (Lacan, 1973-74).
A perda precoce
As crianças afetadas pela perda precoce dos laços parentais enfrentam a dificuldade de efetuar um trabalho de luto. Esta falta de elaboração deste trauma faz com que o real em jogo promova diversas respostas nocivas a elas mesmas pela via da destrutividade de suas exigências pulsionais.
Em suas observações de crianças pequenas que haviam sido separadas de seus pais, Hélène Deutsch (1936) constatou que na primeira infância as crianças teriam uma enorme dificuldade de traduzir em palavras a dor da perda de uma pessoa amada.
Para Lacan (1938), a estrutura narcísica que forma o eu não se encontra constituída antes da idade de três anos. Esta constituição é essencial para formatar a reação frente ao traumatismo, que não está, na primeira infância, suficientemente aparelhado para esta tarefa. A dificuldade de suportar a pressão do luto faz com que apareçam sintomas específicos, segundo Deutsch, como a apatia (psicose) e as anomalias de caráter. Frente a este excesso que ultrapassa o suportável para o aparelho psíquico, algum tipo de mecanismo de autopreservação narcísica é usado pela criança como defesa contra a dor.
Freud (1893) define o trauma como um excesso de tensão junto ao aparelho psíquico. O trauma da perda precoce seria então uma vivência que provoca uma intensidade de estímulo no aparelho psíquico e se transforma em transtornos para a economia energética do aparelho psíquico, independente da lógica de funcionamento do principio do prazer. Este acontecimento da perda precoce faz com que os sujeitos se fixem nas defesas narcísicas o que vem perturbar, de maneira grave, os mecanismos de identificação sexuada de um sujeito, sua escolha de um tipo sexual e de um parceiro. O encontro com a sexualidade na adolescência será margeado por estes acontecimentos. Não há como abordar a perda e a sexualidade senão pelos laços encarnados para cada sujeito.
Vinheta Clinica
Pedro é encaminhado à Vara aos 8 anos de idade pela escola, por ter agredido gravemente as professoras. Ele acaba internado em uma instituição para menores, mas é retirado dali por ter vida sexual com os outros meninos desta casa. O pai adotivo, por sua vez, diz não ter mais autoridade sobre ele e o “entrega” aos cuidados da Justiça.
Pedro é filho de Maria e de pai desconhecido. Ele é adotado por João quando tinha dias de vida. Eles estavam todos em uma festa, quando Maria, que acabara de ter o bebê, deseja sair para outros festejos e diz em uma roda que daria uma mamadeira de bebida a Pedro para que ele dormisse. João diz à Maria que não lhe permitiria fazer isto com Pedro, ao que ela responde: “então fica com Pedro para você”.
Nesta nova família, Pedro tem João como pai, Lúcia como mãe e uma irmã. Lúcia tem muitos amantes. Pedro assiste a tudo isto muito incomodado. Essas traições redundam na separação do casal. Ao separar-se, Lúcia leva os filhos consigo, mas ao se envolver com um traficante é ameaçada de morte e os devolve ao pai quando Pedro tinha 8 anos. Este é o momento de desencadeamento dos desmandos de Pedro.
Aos 13 anos, Pedro começa a frequentar boates gay, a se drogar e se alcoolizar. Apesar de ter uma noção do que acontece com Pedro, o problema, para seu pai, é que ele não quer trabalhar.
“Vagabundo”, seja por não querer trabalhar ou por ser promíscuo em sua vida sexual, será o significante mestre que tem a força de uma lei superegoica para Pedro. Assim, ele e as duas mães serão “vagabundas”.
O pai, que, em um primeiro momento, comparece retirando Pedro da devastação da primeira mãe, no momento de sua separação de Lucia, fica devastado junto com Pedro, ou seja, eles “não valem nada” para a “vagabunda”. É assim que Pedro interpreta seu abandono e o do pai. O pai então devastado pela separação desta mulher deixa de comparecer em sua função de fazer barreira ao imperativo superegoico que rege a vida de Pedro: “vagabunda”.
Conclusão
No discurso pós-moderno, o que comanda o sujeito é o objeto de consumo que vem no lugar do ideal do eu, levando-o ao comando do imperativo de obter o gozo máximo. Pedro tenta gozar da vida sem limites, o que o leva a caminhos destrutivos.
Se no primeiro abandono de Pedro, o pai comparece barrando a “vagabundagem” desta mulher e retirando Pedro do lugar de nenhum valor para esta mãe, no segundo abandono, o pai e Pedro ficam devastados pela “vagabundagem” de Lúcia. É neste momento que ele começa a agredir mulheres na escola. É quando entra no campo da sexualidade que ele toma para si o significante que entrelaça suas duas mães.
Segundo seu relato, Pedro se torna a própria “vagabunda” para os homens nos bailes que frequenta. É o significante que o sexua. Esta alienação significante ao Outro materno que acolheu sua demanda, que subjetivou seu ser, aparelhou seu gozo frente ao real em seu corpo no encontro com a sexualidade na adolescência e também com o que ele encontrou de real na sua relação com este Outro.
Frente à devastação amorosa, o declínio da função do pai de interdição e de acolhimento, deixou um espaço aberto à descrença e o sujeito ficou então vulnerável aos seus imperativos de gozo. Esta descrença torna o sujeito pouco flexível para admitir uma função reguladora que venha lhe proteger da lei de ferro do supereu (Laurent, 2010).
Já que o pai é devastado pelo amor, a mãe, neste caso, basta por si só para designar para Pedro seu projeto “vagabunda”. Pedro se identifica ao objeto perdido que traz consigo o imperativo superegoico “vagabunda”, o que restitui uma ordem.
Alguns adolescentes, como é o caso de Pedro, se confrontam com uma tensão que surge pela falta de palavras que possam vir a traduzir o que lhes acomete no corpo e nos pensamentos (Lacadée, 2007). Frente à precariedade da função paterna, Pedro acabou por adotar alguns comportamentos de risco frente aos excessos pulsionais.
A gravidade da fragmentação familiar, das perdas e o declínio dos lugares de autoridade provocam em Pedro uma descrença nos semblantes do Nome-do-Pai, acabando por estar entregue aos imperativos de gozo do comando materno, que o leva a um empuxo à morte que coloca em risco sua própria vida em forma de infrações. Pedro denomina a primeira mãe como louca, sofre pela segunda, que o deixou por ter se colocado em risco de morte, e não consegue entender porque João não reage à separação de sua mãe Lúcia. Pedro relata que o que mais lhe afeta é o abandono de Lúcia. Ele não aceita, desde muito pequeno, sua “vagabundagem” amorosa que a leva a abandonar os filhos. Pedro narra que também para Lúcia ele e seu pai “não valiam nada”.
É preciso que Pedro possa encontrar, com o trabalho analítico, novas palavras que lhe permitam separar-se dos significantes “vagabunda” e “não valer nada” que constituíram sua identidade até então, para ter de fato condições de localizar-se na partilha sexual do mundo adulto, em uma nova posição subjetiva diante do Outro, fazendo um bom uso das cartas que dispõe.
Notas
- Texto advindo do Projeto de Extensão na Vara da Infância e Juventude de Teresópolis (RJ) em acordo com a Associação Núcleo Sephora de Pesquisa\UFRJ. Apresentado no ENAPOL (V Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana), junho/2011, Rio de Janeiro.
- Os principais resultados desta pesquisa foram publicados em Coelho dos Santos e Freitas, 2007.
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Acessado em 24/05/20011.
MILLER, J.-A.; MILNER, J.-C. (2006). Você quer mesmo ser avaliado? Barueri: Ed. Manole.
SORIA, N.D. (2011) Nudos del amor- para uma clinica de la pareja – sintoma. Buenos Aires: Del Bucle.
Resumos:
The psychoanalysis and the legal order in a Court of Childhood and Youth
This text is the result of the research project coordinated by the author in the Court of Childhood and Youth from Teresópolis, in Rio de Janeiro. This project is dedicated to the care children and young people who have suffered early loss of the parents by death or abandonment. As a result of this research, we have found that this is the main etiological factor in play in depressive states that determine risk behaviors such as infracional acts and exposure to maltreatment. In this article, the author examines the psychological effects of premature loss of father or of mother in the light of the sexuation clinic and the superegoic imperative that articulates the sexuated position of a subject. Wherever the name of the father is not the main guidance of the psychic functioning, works what Lacan calls the maternal “name for".
Keywords: psychoanalysis, grief, infracional act, sexuation, Name-of-the-Father, superego.
La Psychanalyse et l'ordre juridique dans unTribunal de l'Enfance et de la Jeunesse
Ce texte est le résultat du projet de recherche coordonné par l'auteur dans le Tribunal de l’Enfance et de la Jeunesse de Teresopolis, à Rio de Janeiro. Ce projet est dédié au traitement des enfants et des jeunes qui ont souffert la perte précoce de ses parents par la mort ou l'abandon. En tant que résultat de cette recherche, nous avons constaté que celui est le principal facteur étiologique en jeu dans les états dépressifs qui déterminent les comportements de risque comme des actes d’infraction et l’éxposition à des maltraitances. Dans cet article, l'auteur examine les effets psychologiques de la perte précoce de père ou de mère à la lumière de la clinique de la sexuation et de l’impératif superégoique qui articule la position sexuée d’un sujet. Lá où le Nom-du-Père n’est plus l’ordenateur prínceps du fonctionnement psychique, fonctionne ce que Lacan apelle comme le “nomer pour” maternel.
Mots-clés: psychanalyse, deuil, acte d'infraction, sexuation, Nom-du-Père, surmoi.
Citacão/Citation: FREITAS, R.G.A.F. Psicanálise e ordem jurídica em uma Vara de Infância e Juventude. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 12, mai. a out. 2011. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 19/05/2011 / 05/19/2011.
Aceito/Accepted: 14/08/2011 / 08/14/2011.
Copyright: © 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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