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Psicanálise, adolescência e singularidade: algumas ponderações éticas

Aline Guimarães Bemfica
Psicóloga
Psicanalista
Professora e supervisora da Universidade Presidente Antônio Carlos / Barbacena (MG, Brasil)
Mestre em Letras/Teoria da literatura / UFMG (MG, Brasil)
e-mail: alinegbem@yahoo.com.br

Resumo

A psicanálise está às voltas com o processo civilizatório e com as modalidades de enlaçamento do sujeito ao universal social e jurídico. Entretanto, esse compromisso com o sujeito em suas modalidades de enlaçamento ao Outro remetem também a algumas considerações acerca do incurável e do impossível. Nesse texto pretendemos, a partir da experiência com adolescentes em cumprimento de medida judicial, traçar uma discussão acerca da psicanálise e seus princípios éticos visando localizar, em Freud e Lacan, algumas referências fundamentais face ao que seria uma prática orientada pela singularidade.

Palavras-chave: psicanálise, adolescência, singularidade, enlaçamento.

 

É possível verificar, na atualidade, uma convocação crescente da prática e do saber psicanalíticos no trabalho com os adolescentes e as políticas nas instituições e nas cidades. Entendo que essa convocação à psicanálise faz uma exigência aos analistas, a saber: a sustentação de sua práxis, a partir do ponto singular de cada sujeito nos enlaçamentos1 possíveis com o corpo sócio-político. A partir dessa orientação e, especialmente, tendo como referência a experiência no atendimento e acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medida judicial, o objetivo deste texto é contribuir com algumas ponderações acerca da psicanálise nas instituições de forma a localizar algumas referências éticas da sua práxis.

O lugar ofertado à singularidade e à particularidade dos usos que o sujeito pode fazer do meio em que vive conduz a uma ponderação inicial: a orientação pelo sujeito/adolescente e seus modos de solução não prescinde de uma prática pautada pelas normas jurídicas e constitucionais de nosso país e pelo acesso aos direitos e recursos oferecidos por uma dada sociedade. Nesse sentido, a psicanálise está às voltas com o processo civilizatório, com as formas de enlaçamento do sujeito ao social, com as modalidades de inclusão das particularidades de cada um no universal social e jurídico.

Em meu trabalho, desenvolvido com adolescentes autores de atos infracionais, acompanhei alguns casos que me interpelaram exatamente no ponto onde nenhum enlaçamento parecia possível. Essa constatação permitiu conjugar a orientação freudiana que localiza no campo do pulsional a necessidade de um princípio de regulação pelo desejo e pela lei. Essa orientação deve estar referenciada à dimensão do intratável, do incurável, do que é fundamentalmente singular ao sujeito. Temos aqui um tensionamento: há algo do sujeito que não é regulável e que, entretanto, faz exigências de se apresentar: o caráter associal da pulsão. Nesse sentido, como conjugar a singularidade e o universal da lei?

No trabalho no campo das políticas públicas destinadas aos jovens localizo a seguinte orientação: se a satisfação pulsional não obedece completamente à lei, na medida em que aponta para um mais-além do princípio regulador2, as políticas destinadas aos jovens operam, paralelamente, com as modalidades de enlaçamento e desenlaçamento face a essa errância (errância do pulsional que habita o sujeito): caótica, mortífera, embora vital, pulsante. Mas, esse enlaçamento possível, está também referenciado ao campo social e jurídico.

A relação com a lei jurídica, simbólica, sofreu alterações. E os excessos manifestados nas respostas dos adolescentes (também nos atos infracionais) parecem não ter onde se alojar. Um adolescente afirma: “a lei é branda e a medida é treta!”. Assim, ele expressa a não incidência da letra da lei sobre seu percurso infracional e denuncia um tipo de relação - pautada num discurso cínico do “como se”3 - estabelecida entre os adolescentes e as práticas jurídicas e das práticas jurídicas em relação a toda uma sociedade.

Outro impasse apresentado pelos adolescentes diz respeito ao limite da inscrição do sujeito no corpo sócio-político, na via de um lugar simbólico (possibilitador de reconhecimento), no qual haveria uma palavra de ordem que fizesse barra ao que na adolescência se apresenta excessivamente. No trabalho desenvolvido com os adolescentes em questão e na interface com o discurso jurídico, constatamos que não há palavra de ordem que sustente, suficientemente, uma economia do gozo.

Esses dois impasses apresentados pelos adolescentes em face ao cumprimento de uma medida judicial evidenciam a necessidade de repensar como a psicanálise pode contribuir com as políticas públicas ao ofertar a particularidade de seu trabalho a um jovem. A partir do trabalho com os adolescentes (em sua vertente clínica e política) recortei três vias de trabalho referenciadas a partir das seguintes perguntas:

  • A psicanálise na instituição: algum lugar para o sujeito?
  • A realidade psíquica requer algum respaldo na realidade social?
  • A psicanálise, ao trabalhar apenas na legitimidade da singularidade, incorre no risco de se alienar em um discurso pretensamente ético e eficazmente alienante e ortopédico?

Entendo que essas perguntas apresentam a atualidade das práticas psicanalíticas quando perpassadas pelas questões sociais e políticas de nosso tempo. Ao mesmo tempo, essas questões apontam uma delicada diferença entre uma prática ética e uma prática pautada no romantismo do “fazer o bem”, na qual se apresenta o compromisso alienante de uma pretensa singularidade que prescinde de uma articulação ao Outro. Nesse sentido, em que medida a aplicabilidade da lei pode ter como efeito a construção de um espaço no qual a lei do desejo possa fazer valer a sua letra?


Marcações éticas e políticas da psicanálise x ortopedias de modo de viver e fazer


Pensar acerca da contribuição da psicanálise nas instituições públicas exige que possamos situar nosso compromisso ético como analistas e como cidadãos. Nesse sentido, não há como desconsiderar, no campo da política da psicanálise, as orientações tecidas por Sigmund Freud e Jacques Lacan ante os imperativos terapêuticos (aqueles que apontam a cura e o bem-estar como única resposta para o sofrimento psíquico).

Podemos localizar em Freud uma referência, dentre outras, à ética da psicanálise, na medida em que oferta ao mal-estar e à economia pulsional um lugar privilegiado na organização psíquica. A aposta freudiana no inconsciente, em sua posição ética que oferta um lugar para o incurável do sujeito, inclui: a demarcação do fazer analítico pautado por uma subversão do saber, a radicalidade do desejo inconsciente (que fala para além do corpo do sujeito); a impossibilidade de tudo dizer e a economia pulsional. Essas referências constituem o próprio limite da psicanálise e sua condição de possibilidade.

Sustentar a radicalidade do desejo inconsciente exigiu, inicialmente, uma torção referente ao saber e à verdade, demarcadas anteriormente pelo discurso médico instituído. Foi a partir da discussão entre a terapêutica (extinção do sintoma) e a psicanálise que Freud pôde assinalar um dos primeiros pontos fundamentais de sustentação de uma política propriamente psicanalítica, a saber: a diferenciação entre a ambição terapêutica e a prática analítica, demarcadas a partir de uma mudança fundamental no campo da técnica – da sugestão à técnica analítica.

Em sua conferência “Sobre a psicoterapia” (Freud, 1905), ao discorrer acerca das causas orgânicas das doenças e do poder terapêutico das palavras, Freud faz uma preciosa distinção entre o método da sugestão e o método analítico. Recorrendo às artes da pintura e da escultura, ele delimita duas técnicas distintas em sua natureza e objetivos: a pintura como uma técnica do enxerto, do depósito, do novo a ser trazido de fora, que permite alguma forma na tela em branco; e a escultura, que remete ao trabalho de extração, lapidação, corte.

A prática da sugestão impõe uma forma prescrita face ao mal que assola o sujeito: o terapêuta teria a chave que conduz ao bom caminho. Trata-se aí de um método pré-psicanalítico, cuja visada é ortopédica. No campo dos discursos, que visam ofertar ao sujeito uma saída, localizamos o discurso pedagógico e o discurso jurídico. Ao imporem um saber que não inclui o sujeito – o saber que lhe é próprio – e o impossível, esses discursos operam na vertente da ortopedia.

No “Prefácio à Juventude desorientada, de Aichhorn” (Freud, 1925), Freud aponta justamente as três tarefas impossíveis – educar, curar e governar – ao comentar a incidência da psicanálise e sua “aplicação”:

“Não é de admirar [...] que tenha surgido a expectativa de que o interesse psicanalítico nas crianças beneficiaria o trabalho da educação, cujo objetivo é orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem.

Minha cota pessoal nessa aplicação da psicanálise foi muito leve. Em um primeiro estádio, aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis – educar, curar e governar.” (Freud, 1925, p. 341)

A questão que já podemos salientar em relação à política da psicanálise é: como cada uma dessas profissões se situa diante do impossível? Podemos dizer que Freud avançou ao levar em conta o impossível, o intratável, o incurável, ofertando uma prática e uma teoria que não só responde a isso (ao Isso), mas que o inclui como fundamento. Ou seja, no trabalho analítico, há um dizer, uma apropriação e uma elaboração do que se emite, mas há um ponto obscuro, relativo a isso que não se revela todo, que é inconfessável.

Portanto, a psicanálise pressupõe o insignificantizável, o que resta: o pulsional. No que diz respeito à construção de um saber acerca do sofrimento e do sintoma, Freud constatou que não se trata, na prática analítica, de um juízo emitido por outrem ditador da justa medida do sofrimento; não se trata da imposição de verdades ou de saídas. Assim, ele chega a afirmar, em seu texto “O mal-estar na civilização”, que cada um deve saber de que forma pode ser salvo: “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo” (Freud, 1929, p. 103).

Continuando seu trabalho de tessitura da/na prática e teoria psicanalítica, em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (Freud, 1912), Freud afirma que o grande perigo da psicanálise seria a perspectiva da ambição terapêutica da cura, a qual compara à ambição educativa, cujo objetivo seria o enquadramento, a imposição da forma a ser prescrita, a via do bem-fazer e do como fazer. Pois, no campo das prescrições, não há lugar para a singularidade. Ao discorrer sobre a política lacaniana na atualidade, em “Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI” (Miller, 2009a), Jacques-Alain Miller propõe uma discussão acerca desta política, assinalando uma diferença radical entre o ser e o devir.

Em relação à função e à posição do analista, a vertente do ser localiza a perspectiva identificatória, enquanto que a vertente do devir aponta para um “mais-além” de qualquer elucubração de saber, que estaria pautado em um modelo prescrito acerca da operatividade desta função. Na esteira da orientação tecida por Lacan, Miller assinala que uma política lacaniana engloba alguns aspectos, a saber: a implicação da psicanálise com as questões contemporâneas, o primado da singularidade e o engodo do “ser analista” (termo ao qual contrapõe o desejo do analista). Fundamental também assinalar a marcação política em relação à herança freudiana, no que configura um campo da política da psicanálise: “Uma política da psicanálise que, nessas circunstancias inéditas, preserve para o futuro a herança que recebemos de Freud por meio de Lacan” (Miller, 2009 a, p. 15).

Ainda no campo do tratamento analítico, em “Mais além do princípio do prazer” (Freud, 1920), a perspectiva da cura é balizada por uma crítica ao trabalho analítico na vertente da decifração e da recordação: “o paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha recalcado, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial” (Freud, 1920, p. 29).

Nesse sentido, isso que escapa, o que não é possível dizer todo e que causa efeitos faz referência ao mais além (mais, ainda), acentuando aí o conceito de “compulsão à repetição”, isso que deriva da “natureza mais íntima das pulsões”, que extrapola o princípio do prazer. No campo da economia psíquica e da regulação suposta pelo princípio do prazer há o que não se regula, estranho ao sujeito, fora da lei, fora da rota. Algo que não pode ser dominado, que remete ao “mal”: a transgressão, exigindo alguma satisfação. Entretanto, a dinâmica libidinal segue seu curso conectando-se, desconectando-se. Mas, sem nenhum enlaçamento no qual esse estranho (o pulsional) possa se alojar, prevalece o reino solitário e silencioso da pulsão de morte.

Na mesma época, Freud escrevia também seu texto “O estranho”, para se referir ao que é estranho e, paradoxalmente, mais familiar ao sujeito, o que o termo em alemão – Unheimlich – traduz por trazer no bojo da palavra o radical casa, familiar (heim) e sua negação (un)4.

A partir da localização do estranho (do pulsional), entra em cena a presença de algo não significantizável e a perspectiva de uma economia que inclui os modos de satisfação, a imparidade de cada um. Nessa via, opera-se uma modificação face aos objetivos da psicanálise. Como arte interpretativa, inicialmente, ela teria como função (também como pretensão) tornar consciente todo o material inconsciente. Essa seria a vertente da cura. Entretanto, o pulsional introduz a vertente do incurável: um ponto de subversão da psicanálise. Temos aí, apresentada por Freud, a perspectiva localizada por Lacan, na qual a cura vem como acréscimo e não como objetivo da psicanálise.

Em 1932, na “Conferência XXIV, Explicações, aplicações e orientações”, uma das vias apontadas por Freud em relação à responsabilidade e à política da psicanálise fundamenta-se, rigorosamente, na perspectiva que instaura a neurose e o sintoma como algo necessário, que tem sua razão de existir, e não como algo que deva ser extinto ou expurgado.

Em Freud, podemos ler, na construção de suas orientações, o esforço constante (e isso diz de seu desejo) de marcar a autoridade da experiência do analista com seu inconsciente. Portanto, se há algum saber no qual se funda a psicanálise, este diz respeito à experiência do inconsciente.

Em relação a Freud, podemos dizer que o trato com seus pacientes e com as questões clínicas próprias trouxeram outro ponto de construção concernente à política da psicanálise: ela se funda, rigorosamente, em princípios, mas não se atém a padrões. Assim, podemos ler quando ele afirma que, diante da “diversidade das constelações psíquicas envolvidas”, temos que levar em consideração “a plasticidade dos processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes que não suportam em sua inventividade qualquer mecanização da técnica” (Freud, 1913, p. 135).

Em “Variantes do Tratamento Padrão” (Lacan, 1955), Jacques Lacan, ironicamente, brinca com os significantes variantes e padrão, a fim de situar o compromisso da psicanálise com o sujeito, com o desejo. Trata-se de desmistificar uma prática que proponha a solução em outro lugar que não a do próprio sujeito, constatação que acompanha a tão conhecida frase “pela nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (Lacan, 1955, p. 873). Orientar-se pelo sujeito assinala uma política que engloba alguns aspectos:

  • a singularidade;
  • o questionamento da pressa em concluir, pautada no bem-fazer e no desejo de curar ou de salvar;
  • a não existência de padrões e a eminência de uma ética do desejo;
  • a diferenciação entre a experiência analítica versus a pretensão intelectualista psicanalítica, a partir da qual a psicanálise incorreria no risco de degradar-se “numa imensa barafunda psicológica”. (Lacan, 1955, p. 339).

Se a psicanálise se depara com fatores como a “brevidade do tratamento”, demandas institucionais corretivas, práticas normalizadoras, discursos normatizadores, sentimo-nos convocados a nos perguntar acerca da posição da psicanálise face aos discursos tomando como referência inicial o “discurso do mestre” (do inconsciente), pois, conforme afirma Lacan, é a partir do discurso do mestre que se demonstra a torção própria do discurso da psicanálise (Lacan, 1970).

No discurso do mestre ou do inconsciente, encontra-se no lugar do agente, de um agenciamento, especificado por Lacan, o significante mestre, S1. Este significante apresenta-se marcado por uma ambiguidade ao representar o sujeito e marcar sua divisão. Essa perspectiva de incidência e novos encadeamentos, essa torção que acompanha o giro do discurso do mestre para o discurso do analista pode ser assinalada como demarcação do plano da política da psicanálise. Lacan, inclusive, afirma ser “em torno disso que se dá o jogo da descoberta psicanalítica” (Lacan, 1969-1970, p. 83). Nesse sentido, ele introduz também, em sua orientação, a “recusa” do predicado, da lógica do ser, instaurando a seguinte demarcação: nenhum predicado basta (Lacan, 1972-73, p. 17). Espaço aberto, desde Freud, para a verdade do inconsciente.

Por sua vez, no discurso analítico, um agenciamento realizado a partir do objeto a, sustentado pelo saber (S2), interpela o sujeito em sua divisão, produzindo o significante mestre (S1). Significante com o qual a relação do sujeito com a verdade pode ser balizada, na medida em que um saber sobre a verdade do sujeito pode se dar, em seu meio-dizer, localizando a verdade como não-toda.

Nas instituições jurídicas e nas mais diversas abordagens acerca do adolescente, do infrator, entre outros, proliferam saberes que formam discursos instituídos sobre o sujeito5, ao modo mesmo de um tribunal, e, contrariamente, o discurso analítico se especifica e se distingue “por formular a pergunta de para que serve essa forma de saber, que rejeita e exclui a dinâmica da verdade” (Lacan, 1969-70, p. 85), da verdade do sujeito. Poderíamos, então, afirmar que a prática analítica, articulada ao campo social, político e jurídico (tomados aí como discurso), deve sustentar a seguinte orientação-questão: o sujeito nunca é tutelado?

Trabalhar no campo social e político exige uma preocupação com a garantia dos direitos e deveres do cidadão, desde que estejamos avisados que o sujeito de direito, quando é tutelado, inclusive, perde seus direitos. Daí, talvez, algo como um “sujeito-cidadão” (Garcia, 2000, p. 23) possa se constituir, não sem o quantum de subversão que uma política do desejo e do sujeito nas instituições requer.

Consentir com o que não se regula, com o que é intratável, oferta à psicanálise um campo de trabalho muito particular. No texto “O mal-estar na civilização” (Freud, 1927), Freud discorre acerca da regulação da vida pelas instâncias da família e do Estado, apontando, exatamente, o que escapa a qualquer regulação. No entanto, ele aponta também para a possibilidade de satisfação pulsional em suas vissicitudes e nos enlaçamentos. Esta pode ser tomada como fundamental na (des)construção do processo civilizatório.

Em “Por que a guerra”? (Freud, 1932) e em “Franco intercâmbio de ideias” com Albert Einstein, Freud vê-se embaraçado diante da pergunta formulada pelo físico a respeito da instauração da paz mundial. O psicanalista contrapõe a essa pergunta à discussão acerca do direito, conjugando-o à violência e ao poder e assinalando – face ao que é instituído por essa instância reguladora –, mais além da punição, as possibilidades e modalidades de satisfação pulsional através da arte, da ciência, da educação.

A referência ao conceito de pulsão de morte é fundamental nesse texto por contrabalancear a incidência do discurso jurídico sobre o campo pulsional, na medida em que o direito tem como objetivo regular os excessos do mundo humano. Ao incluir a satisfação como orientação face ao que não se regula, o que não tem governo, o que não se educa, Freud introduz uma importante demarcação da singularidade que pode ter incidência no campo das políticas destinadas à juventude.

Ou seja, Freud insere a legitimação dos modos de satisfação pulsional (singular a cada um) ampliando as investigações acerca das modalidades de enlaçamento do sujeito ao social, ao Outro. Essa vertente do pensamento freudiano pode ser verificada em Jacques Lacan, no Seminário 20, a partir da referência ao conceito de usufruto:

“Esclarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto – é uma noção de direito, não é? – reúne numa palavra o que já evoquei em meu seminário sobre a ética, isto é, a diferença que há entre o útil e o gozo. O útil serve para quê? É o que não foi jamais bem definido, por razão do respeito prodigioso que, pelo fato da linguagem, o ser falante tem pelo que é um meio. O usufruto quer dizer que podemos gozar de nossos meios, mas que não devemos enxovalhá-los [...] É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (Lacan, 1972-73, p. 11).

No trabalho com adolescentes, o uso que cada um pode fazer da instituição e da cidade (em sua reinvenção cotidiana) acompanha a legitimação de um certo modo de satisfação, ou seja, de um assentimento, no que ele inclui o “direito-ao-gozo” (Lacan, 1972-73, p. 11). Entretanto, essa perspectiva de trabalho acompanha a aposta de cingir, a cada vez e a partir de cada caso, os limites de uma psicanálise. Para os analistas persiste a seguinte orientação: que se possa verificar os princípios da psicanálise face às modalidades discursivas e produtoras de práticas segregatórias que se apresentam pautadas numa certa primazia da singularidade.


Notas

1 - A esse respeito ver Coelho dos Santos (2002). No campo dos enlaçamentos possíveis e da irredutibilidade fundante do real, assinalamos, conforme a citada autora, a seguinte perspectiva: “O último ensino de Lacan é o resultado ao qual ele chega e o comunica através das figuras dos nós, do enlace, do desenlaçamento irredutível que seria de estrutura. Mas esse enlaçamento é um desenlaçamento" (Coelho dos Santos, 2002, p. 14).

2 - Faço alusão aqui ao texto freudiano “Mais-além do princípio do prazer” (Freud, 1920), considerado como um texto fulcral na teoria psicanalítica, na medida em que introduz o conceito revolucionário de pulsão de morte, dando lugar ao excesso pulsional, àquilo que não tem “cabimento”.

3 - Acerca dessa temática remeto o leitor ao livro Clínica do Social, de Célio Garcia, reeditado em 2011.

4 - A esse respeito, conferir Portugal (2006).

5 - A esse respeito conferir, em “A ciência e a verdade”, o seguinte trecho: “Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação – nas quais a teoria em curso não deixa de ser reincidente – de encarnar ainda mais o sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta” (Lacan, 1965-66, p. 873). No original, observamos melhor que a errância aí diz respeito a toda tentativa de encarnar o sujeito: “Quoi qu’il en soit, je pose que toute tentative, voire tentation où la theorie courante ne cesse d’être relapse, d’incarner plus avant le sujet, est errance, - toujours féconde en erreur, et comme telle fautive. ” (Lacan, 1965-66/1966, p. 859)


Bibliografia


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Resumos


Psychoanalysis, Adolescence and singularity: some ethical considerations

Psychoanalysis is related to the civilizing process and procedures for intertwining the subject to social and legal universe. However, this commitment to the subject in its mode of lacings, with the other, also remits to some considerations about the incurable and impossible. In this text we want, from experience with adolescents in compliance with judicial measures, to trace a debate of psychoanalysis and its ethical principles aiming to screen in Freud and Lacan, some fundamental references in relation to a practice that would be guided by uniqueness.

Keywords:
psychoanalysis, adolescence, singularity, lacings.


La psychanalyse, l'adolescence et de la singularité: quelques considérations éthiques.


La psychanalyse n'ignore pas le processus civilisateur ni les modalités d'enlacement du sujet à l'universel social et juridique. Toutefois, cet engagement avec le sujet dans ses modalités d'enlacement à l'Autre nous conduit aussi à des considérations à propos de l'incurable et l'impossible. Dans ce texte nous voulons, à partir d'une expérience avec des adolescents soumis à un contrôle judiciaire, soulever une discussion portant sur la psychanalyse et ses principes éthiques dans le but de cerner, chez Freud et Lacan, quelques références fondamentales face à ce qui pourrait être une pratique orientée par la singularité.

Mots-clés
: psychanalyse, adolescence, singularité, enlacement.


Citacão/Citation:
BEMFICA, A.G. Psicanálise, adolescência e singularidade: algumas ponderações éticas. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 12, mai. a out. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 22/02/2011 / 02/22/2011.
Aceito/Accepted: 24/05/2011 / 05/24/2011.
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