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Desinserção fundamental e laço social

Fernanda Otoni de Barros-Brisset

Psicanalista praticante
Mestre em Psicologia Social/UFMG
Doutora em Sociologia e Política/UFMG
Professora do Curso de Psicologia/PUC-MG
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da
Associação Mundial de Psicanálise
Coordenadora do Programa PAI-PJ/TJMG
fernanda.otoni@terra.com.br

Resumo

Ao falar da desinserção, este artigo procurou colocar em relevo o fato de que em cada um há um resto que não se insere em nenhuma normatividade; eis o que faz de todos anormais. Todo mundo delira, mas é justamente por esse pedaço que causa em cada um sua desinserção ao social é que somos chamados a responder. Uma vinheta extraída da experiência no PAI-PJ do TJMG vira ilustrar esse argumento.

Palavras-chave: psicanálise, desinserção, lei, fora-da-lei, laço social.

 

Fundamental detachment and social bond

Talking about detachment, this article brings relevance to the fact that in each one of us there’s a small piece that doesn’t fit in any normativity; this is what makes us all abnormal. The whole world raves but that’s exactly through this piece, that causes the social detachment in each one, that we are called to respond. This argument will be illustrated by an extracted vignette from the Minas Gerais state’s Court of Appeal Program of integral attention to the court patient experience.

Key words: psychoanalysis, detachment, law, outlaw, social bond.

 

Désinsertion fondamentale et lien social

A propos de la désinsertion, cet article met en relief le fait que chaque sujet comporte un reste qui fuit toute tentative de normatisation ; c’est ce qui nous rend tous anormaux . Tout le monde délire, mais c’est de cette parcelle de désinsertion que nous sommes appelés a répondre. Cet argument sera illustré par un extrait de l’expérience dans le Programme d’Attention Intégrale au Patient Judiciaire de la Cour d’Appels de l’État de Minas gerais.

Mot clés: psychanalyse, désinsertion, loi, hors-la-loi, lien social.

 

Às vezes, muitas vezes, as politicas públicas de inclusão, tão em moda em nossa época, terão que considerar o ponto de exceção que inclui o sujeito na ordem das coisas, pois sua desinserção pode ser uma solução, um modo de vida. Jean Genet soube bem dizer o mal, o obsceno, esse indizível que o habitava e agitava-se em seus escritos seja na prisão ou mesmo fora dela. Esse desvio da norma, sua exceção, foi o que deu causa a seu estilo literário. Dar voz à sua desinserção foi justamente o que lhe fez viver.

Analisemos, por exemplo, a entrada dos loucos e infratores nas políticas públicas de assistência em saúde mental, principalmente aqueles que atravessam um momento considerado ‘grave’. A emergência desses casos nem sempre se faz sem ruídos e estranheza. Nesses momentos, fundamentalmente, o sujeito não responde às ofertas disponíveis na sacola da assistência em saúde mental, apresentando grande sofrimento, isolamento, episódios de agressividade, bem como observa-se uma reiterada recusa das ofertas do Outro. Esta situação, via de regra, configura uma redução dos recursos de sociabilidade e coloca muitas dificuldades no projeto de inserção (horizonte ideológico da política em saúde mental). É discurso corrente, nesses momentos, a sentença de que o lugar apropriado para essas pessoas é a prisão, o manicômio judiciário ou qualquer outro que esteja orientado pela política de controle e de segurança máxima.

Eis ai um impasse, um problema embaraçoso para os projetos de “inclusão” no atual modelo de assistência social e em saúde mental. Situações como essas interrogam o dispositivo, destacam seus furos, alojados que estão lá onde a oferta não os alcança. São casos onde eclode a angústia intensa e também causam muita angústia, pois o lugar da referência simbólica, não raro, resta vazio.

Então, uma pergunta: como um dispositivo de “inclusão”, como é qualificada a política atual de assistência em saúde mental substitutiva aos manicômios, pode acolher e dar lugar em seu dispositivo de rede ao que ali cessa de não se inserir? O acolhimento dos loucos infratores na rede de assistência, em momento grave, parece aqui exemplar.

Consideraremos, no desenvolvimento desse artigo, que a impossível “inserção” se faz quando a rede encontra-se aberta para suportar e conviver com o traço que cada um traz de estranho, de indomesticável, de singular. A contribuição da experiência analítica considera que para acontecer uma inserção razoável, de um sujeito qualquer, numa certa comunidade, e aqui, destacaremos aquela acolhida pelo guarda-chuva das políticas de assistência em saúde mental, será preciso considerar a desinserção fundamental que o constitui e isso se faz ainda mais evidente em situações de intenso sofrimento e grave desalojamento do Outro Social1.

Tomemos por chave de leitura o que indica o Seminário X, sobre a angústia, com o destaque para o seguinte trecho:

“[...] este lugar [...] o chamaremos por seu nome – é isso que se chama Heim [casa, lar, asilo]. [...] se esta palavra tem algum sentido na experiência humana, é o da casa do homem. Dêem à palavra casa todas as ressonâncias que quiserem, inclusive astrológicas. O homem encontra sua casa em um ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos [...]. Esse lugar representa a ausência em que estamos.” (Lacan, 1962-63, p. 57-58. Grifo nosso).









E me parece que esse funcionamento pode ser verificado desde os primeiros registros do encontro impossível entre os seres falantes, na fundação do que designamos por humanidade. A desinserção inaugura o princípio, está na origem da ordem das coisas.


O pecado original da desinserção

O que é original, segundo os textos bíblicos, é a marca que cada um carrega desde o nascimento, como resposta ao fato de Adão e Eva terem desejado e comido o fruto dito proibido. Por se determinar segundo uma ordem outra, manifestamente fora da lei, eles foram banidos do paraíso, como resposta à flagrante desinserção dos homens à ordem das coisas. Uma certa substância se agita no sujeito e revela seu desalojamento das propostas civilizatórias, o condena a carregar o traço singular de sua desinserção à toda e qualquer ordem presumida. Eis ai o que podemos conceber como a fonte do pecado. O paraíso não existe e cada um está condenado à responder neste mundo, a partir de sua desinserção, sua causa e seu pecado original.

O pecado e o crime são a expressão, dadas as coordenadas sociológicas de uma época, de um ato fora da lei, divina ou dos homens, ou seja, um ato que se desvia da ordem estabelecida entre aqueles que se encontram enlaçados em torno de certa referência de ordem social. Trata-se de um ato que traz à cena pública certo desacordo do sujeito com a ordem das coisas. O crime, quando é uma resposta ao real, revela que nada nessa ordem é natural. Se existe uma ordem social, sua possibilidade é efeito de um assentimento subjetivo às normas que estão dispostas para o arranjo do campo social, regulando o que em cada um se agita como fora da lei.

“Nada é mais humano que o crime” se consentimos que a humanidade é uma resposta ao inumano que agita a fonte do ser. Com o crime o sujeito faz um retorno à fonte e seu ato é um não às soluções civilizadas. O inumano, esse resíduo que não se inscreve, insiste como um resto irredutível ao qual a experiência humana tenta fazer borda. Diante do encontro com o real, esse resto pode aparecer na cena da vida.

O crime como resposta ao real se serve do húmus que habita e se agita na fonte do ser, apresentando na cena pública a verdade que a civilização não pode desfazer: na verdade há o gozo! Muitas podem ser as respostas diante do encontro do sujeito com o real, com o impossível, com o que não está escrito, mas que irrompe desvelando o desamparo primordial. Mas quando a resposta é um crime, ali é o gozo que se mostra desafiando as soluções e as identificações sociais.

Qual foi a resposta da civilização a isso? Diante do que não cessa, oferta-se a lei que regra o gozo! São Paulo, todos conhecem a máxima, diz que apenas conheceu o pecado por meio da lei. A lei, ao demarcar o campo do possível por exclusão, indica o campo do impossível. Quando a lei se inscreve, oferece uma via para regular o gozo, uma regra para fazer limite ao gozo todo.

Temos aqui uma via para orientar o fora da lei, uma subtração na vertente do puro gozo. Quando a lei faz borda ao gozo, localiza esse continente. Cada sociedade apresenta as modalidades pelas quais se orientam para civilizar a pulsão, demarcando as fronteiras e os territórios que orientam o fora da lei numa época.

Concordamos com Lacan quando afirma que o crime e o criminoso não podem ser concebidos fora de sua referência sociológica (Lacan, 1950a, p. 128). Dito de outra maneira: após um crime, a lei estabelece a punição, um modo do humano de reintegrar-se à ordem viva ao responder por seu ato fora da lei. A lei humaniza! É Lacan quem diz que:

“toda sociedade, por fim, manifesta a relação do crime com a lei, através do castigo cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo. [...] Este assentimento subjetivo é necessário à própria significação da punição” (Lacan, 1950a, p. 128).





Isso quer dizer que é importante que o sujeito localize o que de seu gozo ali se apresenta, localize o detalhe que o deserta, deserda, que o desinsere da casa do Outro e por esse furo isso escapa à lei; trata-se da responsabilidade. “Supondo-se que o homem se faça reconhecer pelos seus semelhantes pelos atos cuja responsabilidade ele assume” (Lacan, 1950b, p. 127).

Mas as relações de cada sociedade com o crime e o castigo apresentam o modo de convivência desejável orientado pelos ideais de sua época e a concepção de homem que a concerne, apontando o modo de resposta que designa em cada um as coordenadas de laço social. Por isso a afirmativa de Lacan de que “a responsabilidade, isto é, o castigo, é uma característica essencial da ideia de homem que prevalece numa dada sociedade” (Lacan, 1950a, p. 139).

Podemos dizer que a relação do crime com a responsabilidade se faz ao reconhecermos que o sujeito só será chamado a responder pelo que, do seu modo, escapa à lei, ou seja, cada um responde na sociedade que o acolhe pela expressão desse resíduo irredutível do seu ser no seu humano.

A responsabilidade reintegra o inumano, esse resto, no sentido vivido atribuído ao laço social; ao responder pelo detalhe singular do seu “jeito de ser”, essa coisa indizível, que escapa aos modos consentidos de sociabilidade, reedita-se o assentimento do sujeito ao laço social, seu laço ao Outro, às regras do Outro Social.


A resposta brasileira ao que escapa ao conjunto normativo

O Código Penal designa à sociedade brasileira o conjunto de normas que definem os diversos tipos de crimes e, caso sejam praticados, quais as consequências que quem o praticou terá que sofrer em suas relações com seus semelhantes no espaço público onde habita. Trata-se da resposta da sociedade brasileira para aqueles cujo ato foi designado como fora da lei.

No Código Penal Brasileiro, a todo crime corresponde uma pena específica. A pena é atribuída ao responsável pelo crime, seu autor, por meio da qual ele responde por seu ato publicamente. O Código Penal é construído em torno do conceito de responsabilidade. É uma resposta da sociedade à resposta do sujeito, que, por sua vez, o levara a responder por sua resposta diante da resposta do Outro social. Não preciso dizer muito para deixar clara a função de laço social em torno da responsabilidade. Trata-se de um laço ao Outro. Responsabilidade, afinal é isto: a condição humana de responder ao mundo público do Outro pelo ato que, da sua posição de sujeito, da sua condição singular, escapou à lei de uma dada ordem social.

Ao falar da desinserção social colocamos em relevo que em cada um há um resto que não se insere em nenhuma normatividade; eis o ponto que faz de todos anormais. Todo mundo delira, mas é justamente por esse pedaço que causa em cada um sua desinserção ao social que somos chamados a responder. Laurent, em conferência no Rio de Janeiro em 2008, afirma que o que designamos por laço social é da natureza do semblante, o consentimento do sujeito a uma subtração de seu gozo para fazer caber sua irregularidade constitutiva no mundo público do Outro.

Mas essa operação não se faz sem perturbação, sem tensão, sem a marca de um resto que não cessa de tentar não se inscrever. Lacan diz que “a responsabilidade corresponde à esperança, que palpita em todo ser condenado, de se integrar num sentido vivido” (Lacan, 1950b, 131). Trata-se de saber fazer com o que não se insere, de encontrar um modo de responder por isso causando um “a mais” de vida. A responsabilidade do sujeito corresponde à sua resposta diante desse desalojamento infinito. Construir uma resposta que tenha cabimento no social torna-se imprescindível. Contudo, em nossa sociedade, nem todos são considerados suficientemente humanos para responder por seus atos, por sua posição singular. Verificamos uma exceção nos casos dos inimputáveis. Trata-se de uma exceção perigosa, como pretendo demonstrar.

Inimputabilidade: exceção perigosa

A “inimputabilidade” no Código Penal Brasileiro é especialmente entrelaçada aos casos de “doença mental”. Nesses casos, o indivíduo será considerado inimputável, ou seja, irresponsável juridicamente, em razão de sua “doença mental”. Isso quer dizer que, no entendimento do legislador, quando um crime é cometido em consequência de uma perturbação mental, o sujeito não terá como responder por seu ato.

Não é por acaso que somente a tais casos o Código Penal Brasileiro presume a periculosidade. Podemos, sim, presumir que o irresponsável, aquele que é considerado sem condições de responder por seu ato, é exilado e fixado a um predicativo – “perigoso” – que designa, por consequência, a condição desumana e, portanto, extremamente perigosa.

Ao alojar no saber psiquiátrico os atos desalojados do sentido, os atos fora de sentido, o texto legislativo se abre ao campo da exceção, patologizando o crime. A ciência psiquiátrica fornece ao processo penal um laudo sobre a incapacidade do acusado de responder pelo caráter ilícito de seu ato em razão de sua doença mental. A partir desse momento, o acusado entrará na categoria dos irresponsáveis, os inimputáveis. Ele recebe uma absolvição imprópria e uma sanção penal consistindo em medida de segurança por tempo indeterminado, o que corresponde a uma contradição em se tratando do Direito Penal Brasileiro, que não admite pena de prisão perpétua. Deve-se a isso a exceção desses casos em que a medida de segurança é mantida durante o tempo em que durar a periculosidade presumida do indivíduo.

Aos irresponsáveis não será atribuída a responsabilidade de ser autor do crime. Trata-se de um crime cuja autoria está comprometida em função da doença mental. Esse vazio de responsabilidade acompanha a suposição de um indivíduo intrinsecamente perigoso. Nesse momento, para o direito não existe um sujeito de direitos e deveres perante a lei; apenas se verifica a presença ou não da doença mental. E enquanto não cessar seu estado de exceção, os “perigosos” estarão sob a tutela do direito, em parceria direta com a psiquiatria. A foraclusão do sujeito pela ciência é a responsável pela produção de teorias que sustentam que o “irresponsável doente mental e perigoso” seja exilado nos hospitais psiquiátricos judiciários até que cesse sua periculosidade.

Resumindo, eis o cenário que se apresenta a partir desse estado de exceção: no Código Penal Brasileiro, a periculosidade é atribuída a qualquer um que não seja considerado responsável por seus atos em razão de sua doença mental. A desresponsabilização do sujeito tem por consequência lhe destinar uma existência desumana.

Nós não consentimos à tese de que existam sujeitos intrinsecamente perigosos e afirmamos que aprisioná-los nesse estado de exceção é o que se apresenta como extremamente perigoso. Pois a lógica aqui é aquela da segregação. Descortinar as coordenadas subjetivas de um crime não é razão para desumanizar o criminoso.

Sem a responsabilidade, o sujeito não existe. O predicado generalizado de periculosidade atribuído àqueles considerados inimputáveis quando cometeram seus crimes sequestra a condição de sujeito daquele que, pela via do crime, apresenta sua condição singular. Infelizmente, descartar o perigoso tem sido uma tese muito atual. A solução de aprisionar nos manicômios judiciários ou penitenciárias especializados, a fim de isolar aqueles que escapam aos dispositivos de controle, pode conduzir ao pior. No lugar de encontrar um modo de enredar esses sujeitos a um sentido social, onde cada um busca se ajeitar com o que em si não encontra inserção no Outro social, a saber sua singular exceção, o que tem sido proposto é justamente a redução do sujeito à condição de dejeto. Dito de outra forma, as respostas de sujeito são ignoradas pelas práticas institucionais, fabricando no coração do tecido social um lugar de segregação. A experiência analítica ensina que dizer não à segregação é acolher o traço de cada um que surge da marca de sua desinserção original.

Sabemos que nos atos cometidos por sujeitos psicóticos verifica-se a procura de uma solução extrema para dar um ponto de basta à angústia insuportável. Clinicamente, ali verificamos uma passagem ao ato; o sujeito respondeu a uma situação para ele vivida como muito perigosa: a passagem ao ato é uma resposta do sujeito à manifestação de angústia extrema em sua relação com o Outro ou mesmo na relação com seu semelhante.

Juridicamente, entretanto, o psicótico será considerado ele mesmo perigoso e, portanto, irresponsável em razão de sua perturbação mental. Para o direito, o indivíduo é intrinsecamente perigoso, absolutamente desgarrado da possibilidade de responder ao Outro; um indivíduo sem retorno, sem laço, desprovido de qualquer humanidade.

Nossa experiência clínica nos permite afirmar que podemos ler essa situação, o crime, a partir de outras coordenadas. O ato foi uma resposta a uma situação de tensão no laço do sujeito, momento de intensa angústia, na qual passar ao ato, desgarrar-se do Outro, foi uma solução extrema.

Após o ato, como efeito mesmo de sua condição humana, podemos esperar um retorno ao Outro, ainda que não mais do mesmo jeito. Sabemos que a passagem ao ato é uma morte do sujeito, puro ato, triunfo da pulsão de morte. Entretanto, a clínica com esses sujeitos assim o confirma – que se o ato é um suicídio do sujeito, após o ato nasce um novo sujeito, mas jamais do mesmo jeito. Trata-se de uma nova amarração.

Sabemos das consequências mortíferas para um sujeito de se fixar no estado de exceção. Orientados pelas coordenadas subjetivas em causa no caso a caso, afirmamos que existem outros modos de tratar a relação do sujeito com a lei. Aqui uma aposta se faz, dispensando o predicado da periculosidade para abrir espaço à singularidade do caso a caso, um por um, aberto aos modos, inéditos e plurais, com que cada um responde por sua condição singular, de sujeito a sujeito (Lacan, 2001).

É possível pensar a responsabilidade na psicose quando consentimos que somente se é responsável na medida de seu saber fazer. Cada um quando responde, o faz desse lugar, porque não há Outro do Outro para pronunciar o último julgamento (Lacan, 1975-76, p 61). Contudo, com Lacan sabemos que todo ato tem o lugar de um dizer. “Isto quer dizer que não é suficiente que haja um fazer para que haja um ato, não é suficiente que haja movimento, ação, é necessário que haja também um dizer que enquadre e fixe este ato” (Miller, 2006, p.27).

A responsabilidade na medida de seu saber-fazer

Nos últimos dez anos, a experiência demonstra que é possível, mesmo nos casos mais difíceis, encontrar um modo de ligar o sujeito ao Outro. É um trabalho que encontra seu lugar no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) como órgão auxiliar dos juízes criminais. Sua experiência decorre da pratica feita por vários. Encontra-se ligado à rede pública e municipal de saúde mental de Belo Horizonte, dentre outros setores assistenciais e comunitários. Chama-se PAI-PJ e quer dizer Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário. Tais pacientes são portadores de sofrimento mental e infratores, geralmente psicóticos, ainda que tenhamos recebido cada vez mais casos de neurose graves e toxicomanias.

O juiz encaminha ao PAI-PJ alguns sujeitos psicóticos que cometeram crimes visando a um acompanhamento até o fim do processo judicial. O serviço conta com dezenas de colaboradores – psicólogos, assistentes sociais e advogados – que têm a orientação lacaniana como bússola para a condução dos casos. Trata-se da clínica da psicose elucidada por Lacan, uma clínica orientada pelo real do sintoma, que oferece as coordenadas subjetivas de orientação caso a caso.

Isso exige dos operadores desta rede o esforço necessário para a construção do caso clínico na prática da supervisão, bem como na formação de sua análise pessoal. Trata-se, em cada caso, de acompanhar o sujeito psicótico em suas respostas diante do Outro da Justiça e da comunidade da qual participa. Nesse serviço, o acompanhamento é o eixo estratégico para a condução da direção do caso, orientado pela posição do sujeito.

O programa faz uma oferta de secretaria ao sujeito e ele pode dela se servir para construir seu laço social e, então, regular sua relação com os outros na medida de seu saber fazer. A orientação aqui é pensar a responsabilidade na medida do saber fazer. “O que é que é o saber fazer?” (Lacan, 1975-76, p. 61), interroga-nos Lacan. Vamos tentar nos aproximar de uma resposta a essa pergunta a partir de uma vinheta da prática.

R. recusava todo tipo de tratamento, argumentando que não tinha necessidade de se tratar por estar “em plena posse de suas faculdades mentais”. Lacan mesmo já nos disse, certa vez, que quando escutarmos alguém se dizendo completamente são de suas faculdades mentais, estaríamos diante de um paranoico. É o caso!

Angustiado e ameaçado ante a posição invasiva de sua mãe, foi pego pela polícia por ter tentado matá-la, assim como aos seus vizinhos, fazendo explodir um botijão de gás e colocando fogo em sua residência. Após o ato, R. é contido pela polícia e chega algemado ao Centro de Referência em Saúde Mental de Belo Horizonte (CERSAN). Foi considerado um sujeito extremamente perigoso, pois já havia passado ao ato algumas vezes e havia proferido numerosas ameaças à própria mãe. Permaneceu no CERSAN durante quinze dias, em hospitalidade noturna e, após esse período, foi proposto a ele retornar à sua residência e continuar o tratamento no modelo da “permanência dia”.

Isso tudo aconteceu enquanto tramitavam os procedimentos judiciários, antes mesmo de R. ser chamado para audiência. Porém, não retornou à residência de sua mãe, pois seu pai havia alugado um barracão, bem próximo do CERSAN, para que pudesse ser acudido pelo serviço e permanecer longe da mãe. Contudo, R. se tranca em seu barracão e recusa todo e qualquer contato com outras pessoas, fosse de sua família ou dos auxiliares do serviço de saúde mental. Ele permanece trancado durante muitos dias, sem abrir a porta para ninguém. Nenhuma palavra, nenhuma resposta, nenhuma abertura ao mundo do Outro. A equipe do CERSAN, preocupada com o risco de uma nova passagem ao ato, comunica ao juiz o perigo daquela situação. O juiz encaminha o caso ao PAI-PJ, solicitando nosso acompanhamento, considerando o caso de altíssima periculosidade.

De fato, o direito intervém quando um assassinato, uma tentativa de homicídio, uma agressão corporal, um roubo, etc., perturbam a vida da cidade, perturbam a ordem social. Quando o inumano irrompe na cena pública, o direito é chamado. É assim nos dias que correm, ou melhor, na modernidade. O direito é hoje um dos recursos simbólicos de nossa época. No Estado moderno o conjunto de dispositivos normativos que compõem o discurso do direito é responsável pela regulação da vida social, na esfera publica. O direito apresenta a lei àqueles que passam ao ato fora da lei.

A introdução do direito com seus rituais e dispositivos pode representar a dimensão do Outro que apresenta a lei. Se a passagem ao ato é uma ruptura com o mundo público do Outro, uma ruptura do laço social, quando a passagem ao ato é um crime, o sujeito, mais cedo ou mais tarde, terá que se haver com esse Outro. Se o sujeito vai dele se servir, é no caso a caso que poderemos verificar a resposta do sujeito a esse encontro. Mas fato é que o Outro, representante da lei, se apresenta ao sujeito que fez um ato fora da lei. Na clínica da psicose, esse encontro tem consequências.

Não recuamos diante dos casos criminais endereçados pela Justiça, mas nos recusamos a oferecer uma resposta sobre a periculosidade ao oferecer um acompanhamento seguindo a pragmática do caso a caso. O que ensina o caso de R.?

O praticante responsável pelo acompanhamento de R. por meio do TJMG apresenta-se em sua residência. Quando anunciou que estava ali por causa de uma determinação do juiz, R. lhe abre a porta. Quando é convidado a ir ao PAI-PJ, responde: “Eu não tenho roupas para ir à Justiça, eu não tenho calça comprida. Para ir à Justiça eu tenho que ir arrumado”. R. começou a frequentar o PAI-PJ nos dias combinados. Ora sim, ora não. Lá ele reivindicava seus direitos. Carteira de identidade, de trabalho, de motorista. Direitos que, segundo ele, a mãe havia sequestrado dele, tratando-o como doente mental.

No PAI-PJ ele declara a quem o acompanha que deseja escrever sua defesa. Ele pretende entregá-la pessoalmente ao juiz porque conhece os seus direitos. Sua preocupação é que a verdade seja dita. R. começa a falar em sua defesa. No PAI-PJ, o acompanhamento o auxilia nessa construção. Lá ele se diz um homem com sensibilidades especiais. Ele escuta vozes que ninguém escuta e vê para além do que as pessoas veem. Por isso, a mãe acredita que se trata de um doente mental. “Ela me faz engolir medicamentos que me transformam num idiota na mão dos outros. Eles querem sequestrar a minha identidade”. A praticante acolhe seu sofrimento ao lhe dizer que “pode ser que as pessoas não tenham a capacidade de compreender a sua sensibilidade”. Isso o pacifica.

Em seguida, o psiquiatra do CERSAN informa que R. o procurou pedindo um medicamento, “muito levinho”, contra ansiedade e que o ajudasse a ter mais paciência com sua “pobre” mãe. No PAI-PJ ele diz que gostaria de ter uma audiência com o juiz, pois já estava pronto para falar sua verdade. R. procura fazer uso dos dispositivos jurídicos. Encontrar o Outro, na forma da lei, teve, em seu caso, uma função de grampo. R. pôde encontrar lugar no aparelho da linguagem, nos códigos do juiz, um ponto de conexão do seu modo singular de gozo com o mundo do Outro, afastando-o da solidão de seu gozo e reconectando-o ao mundo.

Esses dispositivos permitiram a R. que qualquer aspecto da sua posição fosse apresentado e regrado pelo Outro por meio da linguagem, podendo se servir desse falar ao Outro. Os praticantes, no PAI-PJ, no lugar de semblante de objeto, servem ao sujeito consentindo com os artifícios que ele inventa. Secretários do alienado, feito objeto, a serviço do sujeito que busca os meios de se inscrever no laço a um Outro que o suporte.

O ato jurídico como operador clínico: um artifício

No dia da audiência, R. se veste com roupas adequadas e, com seus meios, apresenta-se ao juiz para responder por seu ato. Ele responde a todas as questões. Mas, antes do fim da audiência, pede a palavra ao juiz e dita a seguinte frase: “Escreva aí: eu gozo plenamente de minhas faculdades mentais”. R., na medida de seu saber fazer, dá o seu testemunho, responde por sua posição e o assina.

Então?... “O que é o saber fazer?”, pergunta Lacan. Ele responde: “é a arte, o artifício, o que dá à arte seu valor de destaque, porque não há Outro do Outro para operar o último julgamento. Isto quer dizer que há qualquer coisa da qual podemos gozar.” (Lacan, 1975-76, p 61). No Seminário 20: mais, ainda (1972-73), Lacan disse que o que é procurado, mais que qualquer outra coisa no testemunho jurídico, é o poder de julgar o que é do seu gozo. O objetivo é que o gozo se confesse justamente porque ele pode ser inconfessável. A verdade procurada é essa, a da relação com a lei que regra o gozo.

Depois da audiência, R. não mais falou de seu ato ou do juiz. Falava de seus projetos, de seus planos para o futuro. Atualmente, não deve mais nada à Justiça. Trabalha como garçom de um café, faz tratamento para o que chama “sua ansiedade” e se diz melhor. Vive um pouco distante de sua mãe e afirma que eles não falam a mesma língua.

R. encontrou, desse modo, uma forma singular de funcionamento para alojar a sua desinserção original, tornando suportável o convívio da sua “estrangeirisse” no social.

Síntese

A política de “inclusão” tem sido o S1 que agencia o discurso ideológico, institucional, gerencial, no momento atual. Contudo, um certo embaraço perturba o debate político travado entre os partidários da defesa social e aqueles dos direitos humanos. Ele se instala no impasse que surge quando eclode a pergunta sobre a periculosidade do louco e do infrator em situação de crise, de grave sofrimento mental. Um sujeito assim seria portador do direito de usufruir das politicas públicas vigentes para todos ou, nesses casos, deve-se fazer valer o princípio da excepcionalidade, a saber, aplicar a exceção à regra?

Para a experiência analítica, cada caso é um caso, o universal é a singularidade do sujeito. Estamos orientados quando ao princípio da desinserção fundamental.

A política da psicanálise orienta-se pelas respostas do sujeito, do seu esforço em alojar o singular do gozo numa solução que lhe seja satisfatória, numa amarração que chamamos de laço social. Porém, quando essa amarra se torna frouxa isso é sinal da gravidade da angústia, índice da (des)inserção do sujeito decorrente da precariedade dos seus recursos de sociabilidade. Nesse caso, pode ocorrer a ruptura do laço social.

Este artigo pretendeu investigar como as práticas orientadas pela lógica da inserção nas políticas públicas, sejam elas criminais, sociais ou de saúde, convivem com a emergência da (des)inserção fundamental do sujeito no momento de “crise”.

Verificamos que a oferta da psicanálise, dentre os vários discursos que cruzam este campo feito por muitos, pode causar a porosidade necessária na política para suportar o saber fazer do sujeito com o que em si não se insere na lógica do “para todos”.

A novidade é considerar a dimensão subjetiva inédita que se apresenta em cada caso, situação e lugar. É preciso estar atento à pragmática em jogo em cada caso. Isso requer a possibilidade de ofertar ao sujeito condições para que ele possa fazer uso do seu “saber fazer” com o gozo para montar, ao seu modo, um laço possível na cidade.

Em oposição à periculosidade, mantemos a ideia de responsabilidade, sem a qual, nos diz Lacan, “a experiência humana não comporta nenhum progresso” (Lacan, 1950b, 127). Não existe sujeito sem responsabilidade; a humanidade de sua condição humana advém de sua resposta ao pecado que o constitui, causa de seu estilo e desinserção original.

Para concluir, chamo o poeta: “Cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é” (Caetano Veloso).


Notas

  1. Outro Social: Conjunto de significantes e de objetos à disposição em determinada época, de onde as práticas culturais, sociais e institucionais montam seus discursos e obras a partir dos significantes mestres que agenciam sua experiência cotidiana, suas rotinas, seus produtos.

Referências bibliográficas


LACAN, J. (2001). Autres écrits. Paris: Seuil.


LACAN, J. (1966). Écrits. Paris: Seuil.

LACAN, J. (1950a) “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, in LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 127-151.

LACAN, J. (1950b) “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, in LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 127-131.

LACAN, J. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.

LACAN, J. (1975-76) O seminário, livro 23: o sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MILLER, J.-A. (2006) “Jacques Lacan: remarques sur son concept de passage à l’acte” in Mental. Bruxelas: Nouvelle Ecole Lacanienne, v. 12, n. 17, 2006, n. 17, avril / 2006, p.27-34.

MILLER, J.-A. (2008) “Rien n’est plus humain que le crime”, in Mental. Bruxelas: Nouvelle Ecole Lacanienne, n. 21, novembre / 2008, p. 32-45.

 

Citacão/Citation: BARROS-BRISSET, F.O. Desinserção fundamental e laço social. Revista
a
SEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
30/01/2010 / 01/30/2010.

Aceito/Accepted:
05/05/2010 / 05/05/2010.

Copyright:
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