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Psicanálise e laço social: interferências do paradigma clínico do sonho
no tratamento do sintoma

Jésus Santiago

Doutor pelo Departamento de Psicanálise de Paris-VIII
Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica / UFRJ
Professor Adjunto da Faculdade de Psicologia / UFMG
Psicanalista
AME da Escola Brasileira de Psicanálise
e da Associação Mundial de Psicanálise
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo

O interesse do texto é mostrar que as relações entre a psicanálise e o laço social devem ser concebidas pelo que se configura como o destino último do sintoma no transcurso do tratamento. No fundo, a expressão mais acabada desse destino do sintoma é o advento de uma nova forma de laço social, uma forma de discurso, a saber: o discurso do analista. Nesse sentido, a tese que se busca expor neste artigo é a de que o âmago das relações da psicanálise com o laço social diz respeito muito mais àquilo que é o produto último da psicanálise do que, por exemplo, às diferentes formas de aplicação terapêutica da psicanálise. Interessa-se assim, interrogar as relações da psicanálise com o laço social a partir do que é o sumo de sua própria invenção como discurso – a figura do analista e sua relação com a experiência do inconsciente – e não pelos momentos em que ela se apresenta no mundo como objeto das demandas sociais da civilização.

Palavras-chave: social, público, privado, sonho, inconsciente, sintoma.

 

 

Psychoanalysis and the social bond: interference of the dream clinical paradigm in the symptom treatment

The text proposal is to demonstrate that the relation between psychoanalysis and social bond must be seen as something which configures as the symptom's final destiny during treatment. Truely, the greater expression of this symptom's final destiny is the establishment of a new form of social bond, a speech form, known as the analyst's speech. Accordinly, the thesis the article looks for exposing is that the central point in psychoanalysis relations towards the social bond relates much more to what the final objective in psychoanalysis than to, for example, the different forms of psychoanalysis therapeutic applications. It is interesting, then, to question the psychoanalysis relations with the social bond from its very own creation as a speech - the analyst figure in your relation with the unconscious experience - and not by the moments it is presents as an object of the civilization social demands.

Key words: Social, public, private, dream, unconscious, symptom.

 

Psychanalyse et lien social: interférence du paradigme clinique dans le traitement du symptôme

Le but du texte est de montrer que les relations entre la psychanalyse et le lien social doivent être conçues par ce qui se démontre l’ultime destin du symptôme dans le cours du traitement. Finalement l’expression la plus achevée de ce destin du symptôme est l’avènement d’une nouvelle forme de lien social, une forme de discours, a savoir, le discours de l’analyste. Dans ce sens, la thèse que nous cherchons a exposer dans ce travail et la suivante : le noyau des relations de la psychanalyse avec le lien social a rapport bien plus avec ce qui est l’ultime produit de la psychanalyse que par exemple a ses différentes possibilités d’application thérapeutique. Il est ainsi intéressant d’investiguer les relations de la psychanalyse avec le lien social a partir de ce qui est l’essentiel de sa propre invention en tant que discours – l’image de l’analyste et sa relation avec l’ecpérience de l’inconscient – et non pas dans les moments au elle se présente au monde comme l’objet des demandes sociales de la civilisation.

Mot clés: social, public, privé, rêve, inconscient, symptôme

 

 

É sabido que, no último ensino de Lacan, o sintoma é considerado um conceito único, um conceito fundamental em torno do qual todos os outros sofreriam uma espécie de sobredeterminação. Evidentemente que uma tal focalização no sintoma acarreta inúmeras conseqüências, pois esta se deduz da oposição entre o que seria uma clínica propriamente estrutural e uma clínica do sintoma. Passar da estrutura ao sintoma acarreta implicações não somente com relação à questão diagnóstica, mas também na maneira em que se capta uma certa posição subjetiva, do que aparece como demanda do tratamento. Muda principalmente, o problema do final de um tratamento, considerando que o final, calcado no sintoma, desloca-se de um enfoque sob a égide do "regime do saber" para outro, concernente ao "regime de verdade" (Miller, 2010, p. 65-75).

O destino do sintoma

Certamente, uma via de abordagem das relações entre a psicanálise e o laço social é tratar o que se configura como o destino último do sintoma no transcurso do tratamento. Admitir que o sintoma sofre mudanças ao longo do tratamento supõe levar em conta o princípio de que, na clínica do sintoma, essas mudanças esbarram sempre com algo que não muda. Como me refiro, mais adiante, se existe a face do sintoma passível de sofrer mudanças ao longo do tratamento, existe também sua face imutável e impermeável aos instrumentos dos quais a psicanálise lança mão no âmbito do tratamento. Ao valer-me da expressão de destino do sintoma quero, portanto, interrogar-me sobre as relações entre a psicanálise e o laço social. É fato que, sob a ótica do ensino de Lacan, a finalidade última da psicanálise é a passagem de analisante a analista. Nesses termos, a finalidade do tratamento analítico é o advento de uma nova forma de laço social, uma forma de discurso, a saber: o discurso do analista.

A tese que busco expor neste artigo é a de que o âmago das relações da psicanálise com o laço social diz respeito muito mais àquilo que é o produto último da psicanálise do que, por exemplo, às diferentes formas de aplicação terapêutica da psicanálise. Interessa-me, assim, interrogar as relações da psicanálise com o laço social a partir do que é o sumo de sua própria invenção como discurso – a figura do analista – e não pelos momentos em que ela se apresenta no mundo como objeto das demandas sociais da civilização. Nesse sentido, o campo da saúde mental se define por meio de práticas que nada têm a ver com o tratamento que a psicanálise confere ao sintoma. As práticas da saúde mental são distintas do que visa o discurso analítico na medida em que padecem das exigências do Estado contemporâneo e, de alguma maneira, suas ações implicam ter que lidar e corresponder com essas demandas do Estado (Miller, 2007-08).

Linguagem pública e linguagem privada

Afirmar que o analista opera segundo a modalidade de um discurso, nesse caso o discurso do analista, supõe levar em conta a maneira como a psicanálise concebe as relações entre a linguagem como experiência pública e a linguagem como experiência privada. Éric Laurent esclarece que a linguagem privada define suas unidades significantes a partir dos dados do sentido e das experiências corporais provenientes das representações mentais. Por outro lado, se a linguagem é pública o sentido de suas unidades significantes emerge das convenções do Outro, das metáforas depositadas em um momento dado da civilização. O ponto de vista da psicanálise sugere uma topologia particular do que é a experiência de passagem do privado ao público que não se contenta, de modo algum, com a mera disjunção entre esses dois domínios (Laurent, 2004, p. 116).

Importa salientar que a experiência do íntimo, do subjetivo, presente, por exemplo, na experiência de gozo particular da fantasia, não se inscreve inteiramente no campo da linguagem privada e nem tampouco apenas no âmbito do público. Se as formações do inconsciente se apresentam, como é o caso do sonho, como algo da ordem de um conteúdo mental representacional latente, ou seja, referido ao campo da enunciação, isto não quer dizer que não tenham relação com a finalidade própria da psicanálise enquanto discurso. A formulação que emerge aqui é a de que se o saber analítico constrói a partir do campo da enunciação, isto não quer dizer que a psicanálise se mostre restrita ao domínio da linguagem privada. Importa salientar os inúmeros exemplos dos sonhos em que Freud, ao longo da sua obra, recorre a esta dimensão da enunciação. Pode-se perguntar, inclusive, acerca da extensão e do alcance do valor de verdade que Freud confere à enunciação, principalmente, quando ele afirma que o analista é alguém que se forma a partir da interpretação de seus próprios sonhos.

linguagem privada                 linguagem publica
conteúdo latente                  conteúdo manifesto
enunciação                          enunciado
verdade                                saber


Signo das mutações subjetivas


É próprio da clínica psicanalítica tratar o sintoma por intermédio do que se coloca como esse fator chave da enunciação, particularmente, pelo que neste campo se expressa por meio das formações do inconsciente. Sabe-se da importância que os sonhos e sua interpretação adquirem no âmbito da invenção do aparato clínico psicanalítico, até então inédito, aparato que Freud inaugura no início do século XX. Quem pode desconhecer que o sonho da injeção de Irma constitui o momento fecundo que inaugura o surgimento da posição ética do psicanalista encarnada por Freud? Basta ainda considerar a preponderância dos sonhos nas construções dos grandes relatos clínicos da obra de Freud, notadamente, no caso Dora, no Homem dos Ratos e no Homem dos Lobos.  

Questiono, em especial, as relações que os sonhos e sua interpretação mantêm com a incidência transformadora do tratamento psicanalítico sobre o sintoma. Vale lembrar, a propósito, a frequência com que se constata, no ensino dos AE, a presença de um sonho memorável como referência marcante de que o trabalho analítico promoveu a passagem do psicanalisante à sua autorização como psicanalista. Cabe inclusive perguntar se o andamento do tratamento analítico não acarretaria, no momento de seu desfecho, uma redução do sentido conferido aos sonhos. É o caso de referir-se, assim, ao modo como o sonho se apresenta como um elemento decisivo em algum momento da formação analítica – por exemplo, o momento da emergência de uma situação de angústia – ou, mesmo, como índice de dissolução de alguma identificação. Há, também, os sonhos memoráveis que, muitas vezes, acontecem antes do tratamento analítico ou os que sinalizam e circunscrevem a insistência repetitiva do sujeito. 

Várias são as questões que surgem a partir da formulação dessa interferência singular do sonho na formação do analista. Não há dúvida de que tal relação causal é mais evidente no caso do sintoma e de suas transformações no decurso do tratamento analítico. Enfim, o trabalho de interpretação dos sonhos constitui-se, na experiência da análise, numa espécie de signo das fixações e mutações das formações sintomáticas de um sujeito. É como se os sonhos constituíssem uma espécie de marcadores destas mutações. Assim, se explica, portanto, o meu interesse em indagar sobre a diferença substancial entre o sonho e o sintoma, embora ambos sejam, efetivamente, formações do inconsciente. Aliás, trata-se de um problema que, ao longo obra de Freud, de diversas maneiras, não cessa de ser retomado.

Sinn e Bedeutung do sintoma

Parece-me esclarecedor, no entanto, abordar essa distinção entre o sonho e o sintoma pelo viés da indicação, proposta por Lacan na “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975, p. 10), de que Freud trata o sintoma como uma formação do inconsciente segundo duas vertentes, o Sinn (sentido) e a Bedeutung (termo cuja tradução se mostra difícil, nas línguas latinas, pois equivale tanto a ‘significação’ quanto a ‘referência’) (Lacan, 1975, p. 11). Segundo Lacan, essa dupla vertente do sintoma faz-se presente na obra de Freud, de modo explícito, nas “Conferências Introdutórias à Psicanálise”, particularmente na “Conferência 17 – O sentido do sintoma” (Freud, 1916-17, p. 305) – e na “Conferência 23 – Os caminhos de formação dos sintomas” (1916-17, p. 419). Sinn e Bedeutung são duas vias para tratar as relações de igualdade entre o ‘nome’ e a ‘coisa’ numa dada proposição. No caso do Sinn, sobressai na proposição a dimensão do sentido e, no caso da Bedeutung, destaca-se a referência ou a coisa. Logo, Sinn e a Bedeutung não se confundem, pois se a primeira vertente resulta do efeito de sentido, do que se determina com base no significado, a segunda, diz respeito à relação com o real. Logo, sob o título “O sentido do sintoma”, Freud explicita que é por meio do sentido que o sintoma revela sua face interpretável. Como formação do inconsciente, é o sentido do sintoma que também delimita aquilo que J.-A. Miller (1995, p. 419) passou a denominar de ‘inconsciente-interpréte’ ou ainda de ‘inconsciente transferencial’.

Sintoma, fantasia e fixação

Por outro lado, na segunda conferência – “Os caminhos de formação dos sintomas” –, Freuddiscute a Bedeutung do sintoma, ou seja, que a referência do sintoma se ancora nas fixações libidinais mais precoces do sujeito. Nesse particular, cabe ressaltar que a fantasia se faz presente, pois é ela que desempenha um papel de abertura, de janela para o real em jogo no sintoma. Não há como desconhecer que o trabalho analítico sobre o real do sintoma passa, necessariamente, pela lógica de construção da fantasia.

Aliás, é preciso assinalar que num primeiro momento dessa elaboração, presente nessas duas “Conferências Introdutórias”, Freud entrevê uma equivalência simplória entre a realidade e a fantasia (1916-17, p. 428). Pouco a pouco, esclarece, então, que a fantasia se configura como uma tela, como um véu diante do que é verdadeiramente, segundo ele, o real – isto é, a fixação libidinal (1916-17, p. 433). A Bedeutung do sintoma depreende-se das fixações de gozo, cujo substrato é sempre o encontro traumático do sujeito com algum excesso libidinal. Esta vertente da Bedeutung configura-se, assim, como a principal fonte do que se opõe ao ao “inconsciente-intérprete” (Miller, 1995, p. 419), a saber, o inconsciente real:


É nesse sentido que, na “Conferência 17”, Freud (1916-17) lança mão de duas vinhetas clínicas, para mostrar que o sentido dos sintomas remonta sempre à “realidade sexual” do sujeito, realidade que, no fundo, é fantasística e cuja origem consiste em alguma referência a uma experiência anterior. Nesses exemplos, fica nítido o quanto a vinculação entre o sentido e o libidinal se apresentam de um modo articulado nas formações sintomáticas. A Bedeutung é concebida como uma vivência anterior, que assume, para o sujeito, um valor traumático. É por essa razão, também, que, na “Conferência 23”, Freud (1916-17) se ocupa plenamente com a questão do trauma e seus efeitos sobre o inconsciente. E deduz daí o princípio de que, sob cada sintoma neurótico, há sempre um trauma, bem como o de que toda neurose contém uma fixação dessa índole.

Ainda assim, Freud introduz outro princípio concernente ao sentido dos sintomas – ou seja, o de que o sentido destes aparece sempre como algo desconhecido para o sujeito, princípio que se traduz na afirmação taxativa de que, para que um sintoma se produza é preciso que este seja inconsciente (Freud, 1916-17, p. 305). A tese é, pois, a de que não se formam sintomas a partir de processos conscientes. Isto quer dizer que o sintoma é concebido como uma mensagem s(A) que se articula na própria estrutura significante do sujeito e, ao mesmo tempo, está dirigida ao Outro (A). O sintoma não apenas é uma significação, senão também uma relação entre uma significação e a cadeia significante insconsciente.



Por consequência, o sentido do sintoma é considerado como a parte interpretável do sintoma, ou seja, se o sintoma é mensagem dirigida ao Outro, ele é, por sua vez, interpretável pelo Outro.

Dizer que a formação de um sintoma se baseia na enunciação inconsciente do sujeito contraria, totalmente, a tentativa contemporânea do discurso da ciência de fundar uma linguagem universal do sintoma – o Manual Estatístico de Diagnóstico (DSM). Postular que a fonte do sintoma são mensagens que emanam da estrutura significante do sujeito do inconsciente implica admitir que ele se escreve de um modo profundamente anti-universal. Ainda que se possa organizar em tipos, o sintoma manifesta-se sempre, para cada sujeito, como um processo de escritura, fundamentalmente, singular. É por isso que a operação de redução do sentido dos sintomas, ao longo da análise, pode confluir no sinthoma, à medida que se extrai dessa escritura uma lei singular que regula o funcionamento de um modo particular de gozo.

Ao longo da primeira conferência acima destacada, nota-se o tom otimista de Freud no tocante à operação interpretativa do sintoma. É o sintoma visto pelo lado da sua dinâmica substitutiva no interior da estrutura simbólica. O que se afirma, então, como uma dedução do princípio, referido anteriormente, de que o sintoma desaparece quando se consegue tornar consciente o seu sentido (Freud, 1916-17, p. 329).

À proporção que avança nessa elaboração, no transcorrer da “Conferência 23”, impõe-se, para ele, a importância decisiva do fator econômico da libido. Proposto o princípio de que tornar consciente o sentido do sintoma favorece sua resolução, Freud é levado, mais tarde, a admitir  que “não é exatamente assim". O princípio é excelente, porém os próprios sintomas não sabem disso.

Um substituto do que se intercepta

Isso quer dizer que, ao encarar o fator econômico das fixações libidinais, Freud privilegia, de um modo radicalmente distinto, o lado da estática do sintoma – algo que se opõe à chegada do sentido na consciência. Diante disso, na “Conferência 19: Resistência e repressão” –, ele busca desvendar o fator que explica essa resistência inconsciente. E obtém, como uma pista de resposta, uma evidência clínica aparentemente paradoxal: “Os neuróticos sofrem de seus sintomas, no entanto, não dão mostras de querer curá-los” (1916-17, p. 338). É esse núcleo não interpretável do sintoma que coloca, em primeiro plano, a reação terapêutica negativa. Exatamente nesse ponto intervém aquilo a que se referiu antes como condição inconsciente [Unbewusstheit] inerente à formação do sintoma. Um sintoma floresce apenas a partir do inconsciente – ou seja, emerge em decorrência de um sentido que quer se expressar, sem que no entanto tal objetivo possa alcançar algum êxito.

Portanto, sob a ótica do gozo, o sintoma se define como uma verdade que é impermeável ao saber, ou seja, ao deciframento. Ainda que seu sentido possa ser interpretado, há no sintoma um gozo que resiste ao trabalho de decifração. É o que permite a Freud formular, de maneira inédita, que “a formação dos sintomas é um substituto de algo diverso que está interceptado” (Freud, 1916-17, p. 330). Deve-se destacar, a propósito, que o termo “interceptado” é fundamental. O próprio Lacan valeu-se dessa formulação do sintoma, para propor o Esquema L como um “querer dizer” que se apresenta como um material simbólico, “interceptado”, obstruído por algo diverso, que é a instância imaginária:

Freud revela-se tão satisfeito com essa concepção do sintoma, que chega a repeti-la: “[...] um substituto do que se intercepta”.

O sintoma não é o sonho

Neste ponto, coloca-se a hipótese da clínica diferencial do sintoma e do sonho, pois, ainda que apresentem semelhanças, ambos revelam também diferenças. O uso frequente, na obra de Freud, das expressões Traumbildung (formação do sonho) e Traumarbeit (trabalho do sonho) como termos equivalentes explicita que a componente trabalho é essencial na formação do sonho. É o trabalho de formação que aproxima o sonho do sintoma e faz dele a base de inclusão prática analítica do sintoma. Entretanto Freud não se cansa de repetir, ao longo de sua obra, que o sintoma não é sonho. É preciso, assim, levar em conta as razões pelas quais ele insiste neste ponto relativo à clínica diferencial entre o sonho e o sintoma.

Nesta clínica diferencial, o aspecto que sobressai é o recalque - motor essencial do sonho - que é, nada mais nada menos, que uma condição prévia para a formação do sintoma. Segundo Miller (1997), apenas o sintoma introduz o sujeito no âmbito do mais íntimo de sua vida sexual; os sonhos, pelo contrário, permanecem como uma opacidade subjetiva permanente no que, em última instância, modifica o corpo. Freud propõe, textualmente, que

“a intenção pré-consciente que age quando da formação do sonho visa somente a preservar o sono, a não deixar nada penetrar na consciência que seja suscetível de perturbá-la; ainda que não se oponha ao desejo [querer dizer] inconsciente, optando por um ‘não, ao contrário’” (Freud, 1916-17, p. 412).






Para ele, o sonho se permite ser mais tolerante com o desejo inconsciente, visto que a situação do sono é menos ameaçadora. O estado do sono, em si barra o acesso do desejo à realidade. 

Ao contrário do que ocorre na formação do sonho, é dessa modificação na vida libidinal corporal que é preciso dar-se conta na formação do sintoma. Em consequencia, a diferença entre o sonho e o sintoma, assinala Freud, consiste em que “os sintomas servem sempre ao mesmo propósito da satisfação sexual” (Freud, 1916-17, p. 113). Como se vê, ele não questiona qual é o uso possível do sintoma, pois é sempre o mesmo: a satisfação sexual, ou, no limite, servir de substituto à satisfação que falta na vida. É, nesse ponto, que Freud concebe a Versagung, frustração como um dito, um veto, no sentido de um “dizer não” ao desejo inconsciente (Miller, 1996, 474).

Nesses termos, torna-se patente a definição do sintoma como um meio de gozo, o que leva em consideração, como consequência, seu caráter de formação de compromisso entre o gozo e a defesa. A observação de Freud é de que, no sintoma, se trata de obter a satisfação e de, ao mesmo tempo, defender-se dela. Desse nexo entre o gozo e a defesa deduz-se a hipótese clínica de que, no gozo, há algo excessivo que obriga o sujeito a defender-se do gozo que ele próprio busca. Lacan capta esse funcionamento paradoxal do sintoma como modo de gozo, ao distinguir o significante e o gozo, considerando que o primeiro age, negativizando o segundo. O poder repressor manifesta-se pela linguagem e o Nome-do-Pai é linguagem. Resta, assim, o mais-gozar, o ganho de prazer, o Lustgewinn.

Tudo o que Freud formula ao longo das “Conferências 17 e 23” prepara o terreno para se poder responder à questão de como os homens adoecem, problema que é tratado na primeira delas. Nessa conferência, formula o postulado de que “a realidade não é a única que funciona como barreira” (1916-17, p. 429). Cada vez que a frustração tem lugar, a libido regride e busca uma nova modalidade de satisfação; nesse momento, porém, depara com um veto interno. Quais são os verdadeiros poderes do que se constitui como veto à aspiração libidinal? Essa é a porta de entrada para o desenvolvimento da elaboração de Freud durante os anos 1920.

O “querer dizer” nas formações do inconsciente

Retoma-se, então, a questão do por que, entre as diversas formações do inconsciente, o sintoma se apresenta como uma formação diferenciada. Há razões internas à própria concepção da direção do tratamento analítico que levam a destacar o sintoma da série de formações do inconsciente – a saber, lapso, ato falho, chiste, sonho e sintoma.

O primeiro aspecto a ser levado em conta é a intenção de significação, ou o que vem sendo referido, neste texto, com frequência, em termos coloquiais, como um “querer dizer”. Com relação ao lapso, não há um “querer dizer” prévio e distinto, como ocorre, por exemplo, no sonho. Fala-se de lapso quando se configura a interferência de outro “querer dizer”, como se um outro houvesse falado e essa outra suposta intenção pudesse provocar o fracasso do primeiro “querer dizer”. No chiste, ao contrário do que se caracteriza no lapso, há um triunfo tão significativo e excessivo do “querer dizer”, que é o outro que se apropria dele, obtendo um ganho de prazer maior que o próprio autor da produção inconsciente. Por outro lado, o ato falho é um equivalente do lapso no plano da ação – ou seja, concerne a uma “intenção de fazer”, que se apresenta falha em decorrência de estar atravessada por uma interferência.

Quanto ao sonho, admite-se que o ponto de partida é, também, um “querer dizer” que veicula um desejo inconsciente, porém, nesse caso, apresenta-se substituído por outro “querer dizer”, que, por sua vez, se mostra velado, ou, mesmo disfarçado. O sonho e o sintoma assemelham-se, pois, na medida em que ambos, por meio de um trabalho complexo de formação, consistem na substituição de um desejo inconsciente. O trabalho do sonho (Traumarbeit) corresponde aos mecanismos que se interpõem entre um presumível “querer dizer” e os produtos, expressos pelo material onírico, pelos quais ele se traduz. O sonho é, portanto, a consumação de um trabalho, pleno de transformações, que, no sentido inverso, a interpretação estará em condições de efetivar.

Em contraposição ao sonho, o “querer dizer”, no âmbito do sintoma, se apresenta de uma maneira bastante discreta. É quase como se ele estivesse ausente. Sabe-se que, em seu estado selvagem, fora do trabalho da transferência, o sintoma pode passar desapercebido para o sujeito, notadamente no contexto da neurose obsessiva. Em compensação, no caso do sintoma conversivo histérico, esse “querer dizer” exprime-se de tal maneira, que é muito difícil não se dar conta dele. Tomando como exemplo o Homem dos Ratos, Freud assinala que o sintoma obsessivo apenas adquire o envoltório formal na relação transferencial com o analista. Diante disso, pode-se conjecturar que a inclusão do sintoma no circuito da palavra torna o “querer dizer” mais evidente e, portanto, mais suscetível ao trabalho analítico. É somente a partir disso que o sujeito pode interrogar o que quer dizer seu sintoma. Antes de Freud, ninguém pôde se perguntar sobre o “querer dizer” do sintoma, isto é, não houve qualquer consideração científica a respeito do sentido deste para seu portador. Como se vê, a localização do “querer dizer” do sintoma é algo que implica a edificação do inconsciente e de suas formações, bem como a possibilidade de distingui-lo destas últimas.

É evidente que a emergência do “querer dizer” em função do sintoma é algo que envolve grande complexidade, exige tempo e, muitas vezes, permanece como um imponderável do sujeito. Não é algo que se faz de uma vez por todas e tampouco para todos os sintomas. Ao afirmar a importância do “querer dizer” do sintoma, Lacan formula uma proposição que nem sempre encontra seu justo valor: o sintoma é um fenômeno de crença; o que constitui o sintoma é que se crê nele (on y croie), como se tratasse de uma entidade que pode dizer algo. (Lacan, 1974-75, lição do dia 21/01/1975). Importa ressaltar, nesse ponto, a convicção de que se poderia pensar que o sintoma se impõe por si mesmo, tornando-se indispensável qualquer tipo de crença nele. Se o “querer dizer” do sintoma é mais discreto que aquele que aparece no sonho, por outro lado, quando ele se faz presente, concretiza-se a crença de que representa uma via de revelação dos impasses da existência do sujeito. Em suma, a decifração dos sonhos é, certamente, um dos instrumentos que o analista possui para pôr em cena o “querer dizer” do sintoma.

Repetição e acontecimento

J.-A. Miller questiona-se se é caso de conceber o sonho como inteiramente reduzido a esse registro do “querer-dizer” próprio ao sujeito da encunciação (Miller, 1997, p. 507). Com efeito, é caso de formular a pergunta: um sonho pode se transformar em sintoma? Conjecturo que, quando um sonho se repete sistematicamente é possível, então, considerá-lo como um sintoma. Tome-se, por exemplo, o caso de determinado sujeito que, ao longo de sua experiência de análise, vivencia um sonho de conteúdo sexual aflitivo que, além de se repetir de tempos em tempos, era tido como profundamente inadmissível e pertubador. Que dizer, nesse contexto, do lapso ou do ato falho? Se uma dessas manifestações se repete com frequência, talvez se possa tomá-la como um sintoma. E o chiste? É provável que a atividade de um homem com relação ao chiste se torne um sintoma, à medida que ele busca, quase compulsivamente, fazer os outros rirem. Tudo isso indica que, para o analista, o essencial do sintoma é a repetição. Esse fator repetitivo do sintoma opõe-se ao aspecto fugaz das outras quatro formações do inconsciente mencionadas. 
 

Como se trata da concepção do tratamento analítico do sintoma, porém, é preciso dar lugar às exceções. Em outros termos, deve-se considerar que pode haver sintomas que não apresentam essa pregnância do fator repetitivo. É o que se confirma em um caso que tive oportunidade de supervisionar, durante um tempo significativo, em que a presença de um fenômeno elementar se manifestou apenas uma única vez. Essa manifestação única foi, no entanto, suficiente para fazer com que fosse avaliado como um sintoma psicótico. E, além disso, ninguém pode afirmar que tal sintoma não vai se repetir posteriormente. Não há como evitar em psicanálise, quando se fala de sintoma, se está sempre voltado para o horizonte da repetição. Em suma, é com base na clínica diferencial do inconsciente-acontecimento e do inconsciente-repetição que se compreende por que, em dado momento, Lacan se refere ao etecétera do sintoma. Um sintoma deve sempre repetir-se e adquire sentido clínico em contraste com o relâmpago e a surpresa próprios a outras formações do inconsciente.

Referências bibliográficas

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FREUD, S. (1916-17) “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (Os caminhos da formação dos sintomas), in Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1976, p. 419-439.

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Citação/Citation:
SANTIAGO, J. Psicanálise e laço social: interferências do paradigma clínico do sonho no tratamento do sintoma. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
04/08/2010 / 08/04/2010.

Aceito/Accepted:
25/10/2010 / 10/25/2010.

Copyright:
© 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.