A psicanálise aplicada à terapêutica e a política da psicanálise hoje1
Psychoanalysis applied to therapeutics and politics of psychoanalysis nowadays

 

Sérgio Laia

Psicanalista
Doutor em Letras e Mestre em Filosofia (UFMG)
Professor Titular IV da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura)
Pesquisador com Projeto apoiado pelo ProPIC-FUMEC e pela FAPEMIG
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretor Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG)
laia.bhe@terra.com.br

Resumo

Procura-se, neste texto, esclarecer, com base em referências históricas e de intervenção na cultura, o que se concebe como “psicanálise aplicada à terapêutica”, bem como demonstrar por que essa aplicação, no que concerne à orientação lacaniana, é norteada pela “psicanálise pura”, ou seja, por um comprometimento com a produção de um analista ao final de uma análise e com o futuro da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise, cultura, terapêutica, objeto a, pulsão, final de análise.

 

 

Abstract

This text aims to clarify, based on historical references and cultural intervention references what is conceived as “psychoanalysis applied to therapeutics”, as well as demonstrate why this appliance, in its aspect of Lacan’s orientation is directed by “pure psychoanalysis”, which means through a commitment to the production of an analyst in the end of an analysis and to the future of psychoanalysis.

Key words: psychoanalysis, culture, therapeutics, object a, pulsion, end of analysis.

 

“A vida do psicanalista não é um mar de rosas”
(Lacan, 1955)

Em 1970, quando Deleuze ainda não era muito conhecido, Foucault publicou em um número da revista Critique um texto no qual apresentava dois livros desse filósofo (Diferença e repetição e A lógica do sentido) que considerava um dos mais importantes e com quem manteve uma intensa amizade intelectual. Declarou, então, serem dois livros que “não caberão em nossas cabeças” e almejava: “um dia, quem sabe, o século será deleuziano” (Foucault, 1970, p. 75-76).

Lanço mão dessa frase-utopia de Foucault como um tipo de contraponto à política da psicanálise hoje em dia porque, neste tempo em que estamos muito envolvidos em efetuar os mais variados desdobramentos da aplicação da psicanálise à terapêutica, nesta época na qual descobrimos que a extraterritorialidade não é mais o único lugar em que se localizam os psicanalistas na civilização, não me parece compatível com nossa política (ao menos no que concerne à psicanálise de orientação lacaniana) aspirar a que, um dia, o século seja psicanalítico. Em outros termos, por mais afiadas que sejam as críticas da psicanálise ao que nos é oferecido como pílulas da felicidade, por mais contundentes que sejam nossas denúncias de como as novas formas do discurso do mestre não cessam de aumentar o mal-estar contemporâneo, por mais que façamos uma desmontagem efetiva das novas formas de como a segregação se espalha muitas vezes sutilmente no nosso cotidiano, a orientação lacaniana não deve aspirar a uma generalização secular de suas proposições ou, para retomar uma expressão já utilizada inclusive por Freud, a psicanálise não deve se apresentar como uma forma de “visão de mundo”, uma Weltanschauung (Freud, 1926, p. 117-118; 1933, p. 193-220).

Há, portanto, um paradoxo que se apresenta na ação dos psicanalistas no mundo. Por um lado, se a psicanálise não propõe respostas aos impasses da civilização, sua própria sobrevivência está ameaçada; por outro lado, se estas respostas fossem adotadas mundialmente, se ninguém mais resistisse à subversão psicanalítica, a psicanálise não deixaria de estar seriamente em risco ou talvez inclusive já morta.

Um exemplo

Com a Primeira Guerra Mundial, a psicanálise havia conquistado um sucesso além dos consultórios psicanalíticos, graças ao tratamento das chamadas “neurose de guerra” (Jones, 1955, p 197-205). Descobriu-se, ao contrário da impressão generalizada até então, que esses tipos de sofrimento gerados pelas guerras não eram uma trapaça com que se pretendia passar por cima das autoridades e evitar, por exemplo, o regresso aos campos de batalha. Havia verdade nesses “traumas da guerra”, e uma verdade particular, porque não eram todos os combatentes que os apresentavam, e não se poderia solucioná-los deixando se perder essa verdade que neles se corporificava.

Em razão deste sucesso, o Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, que se realizou em Budapeste pouco antes do fim da Primeira Guerra Mundial, pôde contar não somente com a participação de muitos analistas, mas também com a presença de muitas autoridades do Estado e militares. Eram muitos, nessa ocasião, os trabalhos psicanalíticos apresentados sobre as neuroses de guerra (Jones, 1955, p. 197-205). Porém – e isso provavelmente já nos assinala como ao criador da psicanálise não interessava transformá-la em uma Weltanschauung – quando Freud toma a palavra nesse Congresso, ele não fala sobre o tratamento das neuroses de guerra (1918). No início de sua exposição, convida os analistas a renovarem a técnica sem abandonar o deciframento do inconsciente, a revelação do recalcado e o combate às resistências. Em seguida também os anima a irem além do já reconhecido tratamento psicanalítico das histerias e afrontar os domínios menos permeáveis das fobias e das neuroses obsessivas. Porém, será sobretudo ao final que Freud apresentará o mais novo e desafiante: os analistas não devem mais ficar no espaço privado de seus consultórios, recebendo somente os que podem pagar por seus serviços e, portanto, devem passar a visar também “a enorme quantidade de miséria neurótica existente no mundo e que talvez não precisasse existir (...) nas camadas sociais mais amplas” (Freud, 1918, p. 209-210). De outra maneira, o combate a ser empreendido pelos psicanalistas num pós-guerra – que logo se mostrou (Freud, ele mesmo, o previa) como um inquietante e sofrido entre-guerras – deveria ocorrer não somente no privado (fonte da sobrevivência dos analistas), mas também no campo da então nascente “Saúde Pública” (importante para o que eu chamaria de sobrevivência da psicanálise).

Em outro texto, já havia destacado o quanto esse futuro da psicanálise se transformou em nosso próprio presente, se considerarmos a grande quantidade de analistas que trabalham nos serviços públicos de saúde, educação, desenvolvimento social etc. (Laia, 2003), ainda que nosso presente cada vez mais se imponha também como o tempo em que a psicanálise é muito criticada e ameaçada por práticas terapêuticas cognitivo-comportamentais e biologizantes. Aqui, estou muito mais interessado em sublinhar os impasses que a extensão mesma da psicanálise exige que os analistas enfrentem e quais respostas são encontradas do ponto de vista da orientação lacaniana. Porém, se consideramos o momento em que Freud profere sua exposição no Congresso Internacional em Budapeste, é interessante observar como essa extensão para ele não se faria sem um aumento do número de analistas e sem a oferta de tratamento gratuito em instituições criadas por analistas, inclusive antes que a psicanálise fosse reconhecida em sua utilidade pública. Assim, com tal oferta, Freud me parecia querer forçar a entrada da terapêutica psicanalítica no espaço público como uma estratégia para antecipar seu reconhecimento pela sociedade.

A história nos demonstrou como a Policlínica de Berlim, inaugurada dois anos depois do Congresso de Budapeste, foi pioneira e muito atuante nessa nova política da psicanálise proposta por Freud em 1918. E, após essa Policlínica, instituições similares foram criadas em várias cidades do mundo, constituindo o que Danto (2005), uma investigadora norte-americana, já no título mesmo de um precioso livro relacionado a esses percursos públicos da psicanálise, chamou de Freud’s free clinics (“As clínicas gratuitas de Freud”). Sabemos também que todo esse desdobramento da terapêutica psicanalítica se fez acompanhado de um grande investimento na formação dos analistas: essas clínicas muitas vezes se encontravam ao lado dos “Institutos de Formação”. Assim, dois movimentos diferentes e, em certo sentido, antagônicos, nasceram dessas clínicas: por um lado, já apontada em 1918 pela proposta freudiana de um número maior de psicanalistas para ocupar-se da miséria neurótica no mundo, a preocupação com a formação dos analistas vai dar lugar a uma concepção standard da psicanálise e do psicanalista; por outro lado, em sua expansão para além dos consultórios privados, a terapêutica analítica se encaminhou para a educação, para a medicina geral, para o direito, ou seja, por campos onde não se podia sustentar um standard, um padrão de conduta analítica.

Porém, especialmente depois de 1938, com a propagação do Nazismo, as iniciativas psicanalíticas europeias comprometidas com o que Danto nos convida a chamar de “justiça social” são quase totalmente desbaratadas. O que permanece, por exemplo, em Londres ou, mais além, na América do Norte, vai estar muito mais implicado com o desenvolvimento do que se consolidou como uma formação analítica standard e muito mais associada ao que se passava nos consultórios privados do que a uma prática inovadora e preocupada com a “justiça social” (Danto, 2005, p. 167-196, 221-239). Assim, o que a Policlínica de Berlim inicialmente se propôs a praticar como muito articulados – formação dos analistas e expansão da psicanálise – logo se tornaram duas retas diferentes que, no melhor dos casos, foram consideradas paralelas. Por consequência, a psicanálise pós-freudiana, na formação standard proposta aos que se interessavam em se tornar psicanalistas, transformou-se em uma ortodoxia e, em sua expansão, acabou sendo um tipo de “boa conselheira”, capaz de dirigir uma série de doxas tranquilizadoras aos pais e mães aflitos com seus filhos ou também aos trabalhadores da assistência pública.

De qualquer modo, me detendo, sobretudo, na extensão da psicanálise, não deixa de ser interessante sublinhar que Anna Freud, ao traçar, em 1965, um amplo panorama da “visão psicanalítica da infância”, vai justamente destacar como os analistas tiveram sucesso na transformação do mundo porque: 1) ampliaram o diálogo entre pais e filhos sobre a sexualidade; 2) diminuíram consideravelmente a obstinação das crianças graças a um melhor conhecimento dos problemas da fase anal e a uma educação menos rígida dos esfíncteres; 3) praticamente acabaram com os graves distúrbios alimentares das crianças, uma vez que puderam fazer a amamentação e o desmame mais compatíveis com o que se passa nas pulsões orais; 4) extinguiram várias perturbações do sono porque o combate contra a masturbação infantil e o chupar do dedo tornou-se menos rígido (Freud, 1965, p. 14). Assim, a expansão da terapêutica e das ideias psicanalíticas no mundo trouxeram mais tranquilidade aos corpos e, sem dúvida, não me parece falso o que Anna Freud percebeu: a psicanálise teve uma grande responsabilidade na mudança dos modos de gozar do que é sexual. Porém, o que Anna Freud ainda não havia podido vislumbrar com melhor acuidade1 é que as contribuições da psicanálise a uma experiência menos hipócrita da sexualidade em nossa vida não nos exime de outros tipos de sintomas, de outras formas de mal-estar.

“Como se comportar com a cultura?”

A orientação lacaniana tem indicado outro caminho. O êxito da psicanálise no mundo pode se mostrar como uma armadilha na qual a própria psicanálise corre o risco de ficar presa. Assim, a desinibição contemporânea já apontada por Anna Freud na segunda metade do século passado se processou graças a uma contribuição da psicanálise, mas essa liberalização da moralidade ainda tem a ver também com o que Jacques-Alain Miller extraiu de Lacan como “a ascensão do objeto a ao zênite social” (2004, p. 8). E o inquietante em tal ascensão é que “o discurso da civilização hipermoderna”, muito diferente do que se apresentaria ainda nos tempos de Freud, passa a ter “a estrutura do discurso do analista” (Id., p. 9), isto é, já não haveria mais grandes tensões entre as aspirações da civilização e os modos de gozar descobertos pela psicanálise. Nesse inquietante contexto de nossa época, não me parece excessivo afirmar que o século provavelmente se tornou psicanalítico e – isso é realmente um paradoxo – tal difusão da psicanálise no século não tornou um mar de rosas nem a vida dos analistas, nem o futuro de nossa prática... Mas ainda é importante notar que não se trata de uma transformação completa do século em um tempo psicanalítico porque, por mais que haja convergência – e não mais simplesmente avesso e anverso – entre os termos que compõem o discurso analítico e o discurso da civilização hipermoderna, uma diferença capital entre estes dois discursos é sublinhada por Miller: a civilização apresenta como dispersos os elementos que “apenas na psicanálise, na psicanálise pura” são postos de forma ordenada (Id., p. 10).

O que Lacan nomeou de “psicanálise pura” tem, então, uma importância capital para a política da psicanálise hoje em dia e, por isso, no final deste texto, vou comentar brevemente dois sonhos relatados por uma psicanalista que conseguiu dar prova de sua relação com o mais puro que a terapêutica psicanalítica pode alcançar. Entretanto, para realmente realçar o que se produz em uma psicanálise pura, me parece importante esclarecer um pouco mais como se deu essa “ascensão do objeto a no zênite da civilização”. Assim, sublinho que, no início da última década de 70, Lacan forjou um termo – lathouses (traduzido para o português como “latusas”) – graças a sua inserção na subjetividade da época e a uma espécie de implantação de Heidegger em Freud através das línguas francesa e grega, uma vez que em lathouses se aglutinam la Chose (“a Coisa”), les choses (“as coisas”) e ainda alethéia (“verdade”) (Freud, 1895; Heidegger, 1946, 1950). Com a invenção desse termo, Lacan quis nomear “essas coisinhas e gadgets” que cada vez mais tomam o espaço e o tempo de nossas vidas, esses objetos sem os quais parece que não vamos conseguir mais viver porque são “feitos para causar... desejo” (Lacan, 1969-70, p. 174, 189). E insistindo em seus jogos com as palavras para extrair o que é real em nosso entretenimento com as lathouses, Lacan não deixa de nos assinalar que, se lathouse rima com ventouse (“ventosa”), é porque “há vento ali dentro” desses objetos, “muito vento”, e “vento da voz humana” (Id., p. 189).

Se a psicanálise de orientação lacaniana nos permite “uma melhor aproximação da lathouse” e “acalmar um pouquinho” nossas relações com esses objetos terrivelmente encantadores, é justamente porque lhes extrai a “voz humana” que neles foi encerrada e que é uma voz áfona. Trata-se então – como política da psicanálise hoje – de fazer ouvir essa voz sem som do canto dessas sereias contemporâneas chamadas lathouses, sereias que são tão silenciosas e terrivelmente encantadoras como aquelas que Kafka nos pôde fazer escutar em sua versão reduzida da Odisseia (Kafka, 1989, p. 51-52).

Portanto, após uma ocasião em que havia falado neste meio de comunicação de massa que é a rádio – e justamente neste meio pelo qual se fazem ouvir vozes – Lacan nos oferece uma instigadora resposta a uma questão de grande importância para a política da psicanálise hoje em dia. A questão “Como se comportar com a cultura?” é então formulada por ele e logo respondida da seguinte forma: diante de um público amplo como aquele de uma rádio, “por que justamente não elevar o nível proporcionalmente à pressuposta inaptidão – que é pura presunção – desse campo? Por que baixar o tom? A quem vocês têm que aglomerar?” (Lacan, 1969-70, p. 215). Quando se lê “Radiofonia” e “Televisão” (Lacan, 1970, 1973), é ainda notável como Lacan realmente não fazia “concessões” em seu estilo barroco frente ao “grande público”. Sua proposta me parece inserir-se na mesma via apontada por Oswald de Andrade, escritor modernista brasileiro: “a massa terá de comer a massa fina do biscoito que fabrico”.

Interessa-me sublinhar que, na resposta de Lacan, encontramos o verbo “aglomerar”, tradução do francês attrouper, isto é, formar uma tropa, uma massa homogênea e dirigível. Assim, quando os analistas se põem a falar para as massas ou quando, em nossos consultórios privados e nas instituições públicas, trabalhamos para a extensão da psicanálise, não se trata de nos propor como novos significantes-mestre capazes de aglomerar as pessoas. A extensão da psicanálise de orientação lacaniana não deve ser feita com o lançamento de “palavras de ordem”, ainda que essas palavras sejam proferidas, assim como já ocorreu na história da psicanálise, como se fossem conselhos, orientações educativas, aclarações para o publico em geral... Ao contrário, inclusive nos meios de comunicação de massa, trata-se de mantermos o nível alto não no sentido de nos fazermos incompreensíveis, mas no sentido de ampliar o tom do que é voz áfona nas lathouses tão presentes em nossas vidas, sobretudo hoje em dia. E nessa ampliação, nessa extração de voz, trata-se de capturar o mais próprio de cada um, trata-se de dar lugar, como nos indicou Dominique Laurent, não ao que faz tropa, mas ao que se pode apresentar como exceções (Laurent, 1998).

O mestre – sublinha-nos Lacan, não sem nos fazer notar que o próprio inconsciente também é mestre – “joga com... o cristal da língua” (1969-70, p. 178). Neste jogo, nosso próprio ser é capturado porque, por exemplo, Lacan nos faz escutar, na palavra francesa maître (mestre), as ressonâncias de um m’être (“ser-me”) e de um m’être à moi-même (“ser-me para mim mesmo”). Entretanto, inclusive quando nos extrai essas ressonâncias do mestre a propósito da designação de nosso próprio ser, Lacan não deixa também de jogar com o cristal da língua, mas nesse jogo muitas vezes irônico é mais para um desêtre (“des-ser”) – para uma destituição do ser – que Lacan aponta. E é justamente neste percurso rumo ao des-ser que a psicanálise pura se mostra indispensável: sem passar por tal destituição e difundi-la além deles mesmos, os psicanalistas sempre correm o risco de produzir standard e orientações massificadas onde deveriam dar lugar muito mais a exceções.

O não reciclável

Há muito tempo, quando as lathouses ainda não existiam de fato, eram os santos que ascendiam ao zênite da civilização. Em seu jogo com o cristal da língua, em uma época em que este zênite começava a sofrer o que hoje podemos chamar de uma superpopulação de lathouses, Lacan ousou falar – e justamente na televisão – do santo, comparando-o, não sem ironia, aos analistas (Lacan, 1973, p. 518-520). Nesta comparação, interessava-lhe, justamente, a relação com o dejeto, com o resíduo, isto é, com o “des-ser” (desêtre). Em um mundo cada vez mais envolvido com o que pode ser útil inclusive em sua própria inutilidade (é o que encontramos em muitos gadgets, em várias lathouses), trata-se, então, para Lacan, de capturar o que faz as vezes de resíduo e, parece-me importante agregar, de resíduo que não pode ser reciclado.

Do testemunho relativamente recente de uma A. E. (Analista da Escola), nomeada pelo Cartel da Escola Brasileira de Psicanálise, destacarei dois sonhos, nos quais encontrei, se é que posso dizer assim, dois modos de fazer-se resíduo: no primeiro, um dejeto ainda reciclável, em contraposição ao segundo.

No primeiro sonho, um cachorro faz um cocô que, graças ao jogo do mestre-inconsciente com o cristal da língua, é ao mesmo tempo – reciclagem bem sucedida!, própria ao trabalho dos sonhos – um patê. Desse primeiro sonho, destaco, então, essa lathouse "incontornável” que é o cocô-patê de um cachorro. A interpretação recebida do analista não é menos um jogo com o cristal da língua, mas diferente do que faz o inconsciente porque não tem a função de reciclar infinitamente o sentido e, seguida de um corte na sessão analítica, é ainda destacado da trama-ficção do sonho e deflagra o que evoquei como o des-ser: “você é este patê”, disse o analista à analisante.

Com essa interpretação analítica, o que estava áfono na lathouse cocô-patê de um cachorro se amplifica, se faz escutar como voz humana nas mais diversas posições do ser a que essa analisante se sujeitou ao longo de sua vida: “fazer-se ‘patê’ (para ser tida), fazer-se ‘pavê’ (para ser vista), fazer-se ‘pá cumê’ (para ser comida), fazer-se ‘pá tudo’” (Holck, 2007, p. 36). E ainda foi possível à analisante extrair, das ressonâncias da lathouse cocô-patê de um cachorro amplificadas pela interpretação analítica, o termo psicanalítico pas tout ("não-todo"), com o qual Lacan se refere às relações do gozo feminino com o falo. Mas essa analisante terá que fazer ainda um longo percurso, ao longo de sua vida e de sua própria análise, até alcançar realmente seu modo de ser pas toute e graças a uma experiência mais radical com um dejeto reciclável.

Para cingir algo dessa experiência, abordarei um segundo sonho, feito depois do pedido de entrada no dispositivo do passe da Escola Brasileira de Psicanálise. Sem dúvida, esse sonho nos mostra um resíduo que não tem mais as virtudes recicláveis da lathouse cocô-patê de um cachorro e, ainda mais, assinala um savoir y faire, um saber lidar com essa substância nomeada por Lacan como “gozo”. Nesse sonho, essa que agora é uma A.E. (Analista da Escola) se encontra dentro de seu próprio corpo e se move entre suas entranhas, carnes, sangue, bílis e excremento. Esse corpo despedaçado é ainda servido em uma bandeja, a sonhadora se experimenta como se fosse e estivesse neste corpo e é desperta pelo que ela mesma aponta como “um gozo indescritível, uma pulsão sem sentido” (Holck, 2007, p. 38).

O que me faz tomar esse segundo sonho como uma experiência mais radical de “des-ser” não é simplesmente pelo dejeto se apresentar muito mais escatológico e inquietante que o cocô-patê de um cachorro. A experiência do des-ser se mostra aí mais efetiva porque agora não se trata mais apenas de ser um resto a ser servido para o Outro, mas também de se mover, de sair e entrar pelo que se corporifica como dejeto. E, uma vez que se pode entrar e sair, o próprio objeto-dejeto se mostra oco, tomado por um furo. À compacidade ainda presente no cocô-patê de um cachorro se contrapõe, agora, o furo muito mais próprio à causa do desejo. Portanto, se Lacan nos orienta a “introduzir um pouquinho de ar na função do mais-de-gozar” (1969-70, p. 207) que caracteriza as lathouses, o segundo sonho desta A.E. ensina-nos que esse ar não é mais simplesmente aquele das vozes do supereu silenciosamente misturadas no cocô-patê de um cachorro e que foram separadas graças à interpretação analítica, mas do ar que torna leve a causa analítica porque o objeto que a apresenta ao mundo é marcado por um furo que faz dele um dejeto não reciclável.

Se hoje as lathouses ascenderam ao zênitede nossa civilização, é porque elas nos convocam a uma experiência de gozo e a vida contemporânea é muito movida pela satisfação pulsional. Assim, o segundo sonho acima comentado é ainda muito oportuno para nos orientarmos na política da psicanálise hoje, porque nos apresenta outra maneira de lidar com a pulsão. E essa apresentação se faz não apenas porque esse sonho é, ele mesmo, relatado no final como uma experiência de gozo, mas porque, como nos disse Ana Lúcia Lutterbach Holck, ele “indica uma ruptura com o semblante e um encontro com o real da Coisa”, mas é um sonho e, como tal, “um artifício” (Holck, 2007, p. 38) ou, por que não dizer, mais um semblante do qual uma analista pôde entrar e sair, mostrando-nos, tal como propôs Lacan, ao final de uma análise, outro modo de “viver a pulsão” (Lacan, 1964, p. 246).

A “ascensão do objeto a” ao zênite social impõe que nossa civilização seja cada vez mais tomada por compulsões: as drogadições, o “consumismo”, o “individualismo”, a bulimia, a anorexia, a obesidade são alguns dos sintomas que encontramos hoje em nossas clínicas e que giram ao redor de objetos cheios de promessas de satisfação. Portanto, se tais compulsões não deixam de ser modos de viver a pulsão, reciclando sem parar as satisfações sintomáticas, é importante que a política da psicanálise, inclusive na extensão de nossos campos de intervenção, seja norteada pelo objeto oco e não reciclável que somente a psicanálise pura nos permite cingir: é ao redor de um tal vazio que, como nos mostra Ana Lúcia Lutterbach Holck, outro modo de viver a pulsão terá lugar.

Tradução: Isabel Collier do Rêgo Barros.

Nota

  1. Digo que lhe faltou “melhor acuidade” porque Anna Freud chegou mesmo a notar que o que não responde propriamente ao avance da "educação analítica" do mundo é o anxiety, ou seja, esse nome inglês para o que Freud preferiu chamar de angst, isto é, a angústia; entretanto, Anna Freud não me parece extrair grandes consequências dessa sua observação.

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Recebido em: 03/01/2010; aceito em: 19/02/2010.
Received in: 01/03/2010; accepted in 02/19/2010.