Contratransferência e desejo do analista: a transmissão de um sintoma analítico1
Counter-transference and the desire of the analyst: the transmission of an analytical symptom

Ana Carolina Borges Leão Martins

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará
Membro do Corpo Freudiano – Seção Fortaleza
carolinablmartins@yahoo.com.br

Resumo

Esse texto pretende discutir as relações entre a contratransferência e o desejo do analista em três situações distintas: no diálogo teórico entre Freud e Ferenczi, nos fragmentos da análise didática de Margareth Little com Ella Sharp e em três relatos do passe, tornados públicos por GenevièveMorel. Nas conclusões finais, sob as contribuições de Lacan, demonstraremos de que maneira o conceito de contratransferência cede espaço à ideia de transmissão de um sintoma analítico.

Palavras-chave: contratransferência, desejo do analista, final de análise, passe, psicanálise.

 

Abstract

This text aims to discuss relations between counter-transference and the desire of the analyst involving three distinct situations: in the theoretical dialogue between Freud and Ferenczi, in the fragments of the training analysis by Margareth Little with Ella Sharp, and in three reports of pass unveiled by Geneviève Morel. In the final findings, referring to Lacan’s contributions, we will demonstrate how the concept of counter-transference retreats to open space for the idea of transmission of an analytical symptom.

Key words: Counter-transference, desire of the analyst, end of analysis, pass, psychoanalysis.

 

 

“Lidar com a transferência é uma cruz.”
Trecho da carta de Freud ao pastor Oskar Pfister (05.06.1910)

Na década de 1950, o conceito de contratransferência conferia substância a uma função simbólica, dotava-a de carne, osso e demais atributos de qualificação, ora contribuindo para o avanço do tratamento, ora tornando-se o único responsável por seus entraves. Diante dos engodos relacionados ao ‘ser’, Lacan (1961) nos ensinou a prescindir da contratransferência, remetendo-nos às implicações do analista na transferência e deslocando o operador lógico do tratamento: do ser ao desejo. “Sou possuído por um desejo mais forte” (Lacan, 1961, p. 187), diz-nos ele, ao discutir os sentimentos do analista diante do analisando, e acrescenta, em seguida:“Ele está autorizado a dizê-lo enquanto analista, enquanto produziu-se, para ele, uma mutação na economia de seu desejo” (Lacan, 1961, p. 187).

Longe de sepultarmos as contribuições dos pós-freudianos, pretendemos demonstrar de que modo a contratransferência condiciona o desejo do analista, tanto em termos teóricos - visto que foram as discussões sobre o ser do analista que fizeram com que Lacan se ocupasse do desejo do analista -, quanto na prática clínica. Conforme nos aponta Coelho dos Santos: “trata-se de tomar a contratransferência como o único índice do inconsciente do lado do analista. Trata-se de torná-la um instrumento que prenuncia o desejo de analista, também, ele mesmo, sempre em vias de advir” (Coelho dos Santos, 2004, p. 71).

Ao longo desse trabalho, discutiremos de que maneira o ‘ser analista’ constitui-se como um sintoma, referindo-se a mais uma resposta, fixa e estável, à enigmática pergunta “quem eu sou?”. À semelhança da resposta histérica ou obsessiva, o ‘ser analista’ também sofre as incidências do circuito inconsciente, é passível de reduzir-se a elementos mínimos, cujas particularidades sinalizam o advento do desejo (do analista). Sob essa perspectiva, talvez nos seja possível reconsiderar o conceito de contratransferência, não para situá-lo, ao modo dos pós-freudianos, no domínio dos fatores que interferem no tratamento, mas para concebê-lo enquanto instrumento capaz de sinalizar a passagem contínua, do ser, ao desejo.

Entre Freud e Ferenczi: a gênese do conceito

Em 1909, no retorno da viagem à América, Freud e Ferenczi consultaram uma médium berlinense, com o intuito de pesquisar sobre a ‘transmissão (Übertragung) de pensamentos’. Nessa ocasião, Ferenczi se surpreende com o modo pelo qual seus pensamentos, inacessíveis a ele próprio, foram enunciados, de forma distorcida, nas previsões da médium Madame Seidler. Em carta a Freud de 14 de novembro de 1909, descreve o ocorrido como “(...) o despertar de impressões visuais por meus pensamentos (cs. ou ics.) em um psiquismo estranho ao meu” (Freud & Ferenczi, 1908-1911, p. 144), acrescentando, em seguida, uma necessidade de ampliar o conceito de transferência.

De volta à Budapeste, o experimento é repetido com uma vidente local, Madame Jelineck, e, desta feita, incluem-se perguntas sobre a recente amizade travada com Freud: “o que você pode me dizer do meu amigo de Viena?” (Freud & Ferenczi, 1908-1911, p. 163), pergunta Ferenczi. Mais uma vez, é sua própria mensagem que se faz ouvir, pela boca da vidente:

“Você deve ser fiel a ele. É verdade, agora que está vivendo um bloqueio (sic!) pela intromissão de um terceiro, mas você não deve parar de enviar-lhe as cartas e os relatos. Não só ele é útil a você; você também é útil a ele, por isso, nunca o deixe. Até que você seja reconhecido, sua confiança se firmará completamente.” (Freud & Ferenczi, 1908-1911, p. 163)


As ocorrências telepáticas ultrapassam os domínios do ocultismo e alcançam a prática clínica: ao longo do ano de 1910, Ferenczi observou, repetidas vezes, que as associações dos pacientes estranhamente lhe remetiam a seus próprios pensamentos, tocavam em assuntos privados, concernentes ao analista, e, tal qual um corpo estranho, pareciam desconectados dos sintomas dos analisandos. Assim, certo paciente, após se ter deitado no divã, levantou-se, bruscamente, exclamando com visível excitação: “Estou sentindo cheiro de fósforos” (Freud & Ferenczi, 1908-1911, p. 265), disse ele, “Quantos vermezinhos o senhor tem no divã! Uma infinidade!” (idem). Em carta de 17 de agosto de 1910, Ferenczi confia à Freud os pensamentos que lhe ocupavam a mente no instante anterior às estranhas afirmações do seu analisando: naquele dia, tivera relações sexuais, e não lhe parecia justo utilizar o mesmo leito para os fins amorosos e de trabalho. “Pensei (...) na possibilidade de que alguém com uma fina sensibilidade olfativa pudesse sentir pelo cheiro que alguma coisa tinha acontecido ali” (idem., p. 265), concluiu, colocando-nos na pista da gênese de um conceito.

Embalado pelas contribuições de Ferenczi, em março de 1910, por ocasião do II Congresso de Psicanálise, Freud nos fala, pela primeira vez, sobre a contratransferência: “Tornamo-nos cientes da ‘contratransferência’, que, nele, surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes (...)” (1910, p. 150) e, muito embora as alusões ao conceito se tornem cada vez mais escassas ao longo de sua obra, as preocupações com a ‘transferência de pensamentos’ mantêm-se: dez anos depois, Freud discute o assunto pela primeira vez, no artigo intitulado ‘Psicanálise e telepatia’ (1921). Nesse trabalho, a definição freudiana da transferência de pensamentos em muito se aproxima às discussões sobre a contratransferência:


“Mostra-nos que um desejo extraordinariamente poderoso, abrigado por determinada pessoa e colocado numa relação especial com sua consciência, conseguiu, com o auxílio de uma segunda pessoa, encontrar expressão consciente sob forma ligeiramente disfarçada (...)” (Freud, 1921, p. 196).


Ao inserirmos a definição freudiana em um contexto clínico, temos que um desejo extraordinariamente intenso – esse desejo ‘mais forte’ de que nos fala Lacan (1961) - se expressa de maneira distorcida em razão das interferências de uma relação dual. No corpo a corpo com o analisando, o desejo do analista é deformado, sofre as incidências do ser (do analista), não mais se prestando à direção da cura. Esses impasses, por vezes, assumem contornos dramáticos, conforme demonstrou o episódio envolvendo Gizella Pálos, Elma Pálos e Ferenczi.

Ferenczi mantinha um relacionamento amoroso com Gizella a qual, por sua vez, era casada com Géza Pálos. Em julho de 1910, ele aceita receber em análise Elma, filha de Gizela, e o tratamento parece caminhar em bom termo, até que... O analista se apaixona pela analisanda. A situação se torna insustentável, o tratamento é interrompido e Elma é encaminhada à Viena para se analisar com Freud. No decorrer dessa segunda análise, empreendida a contragosto, Freud escreve uma carta à Frau Gizella, reprovando a conduta de Ferenczi: “Ele se volta da mãe para a filha e espera de mim que eu reconheça esta troca como uma troca auspiciosa.” (Freud & Ferenczi, 1908-1911, p. 375). Em meio às intervenções de Freud, Ferenczi oscila na decisão de romper com Gizella e casar-se com Elma, quadrilha transferencial que, por fim, enseja a redação dos “Artigos sobre a técnica”, onde Freud formaliza, em termos teóricos, as dificuldades concernentes ao amor de transferência:


“É, portanto, tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido. O caminho que o analista deve seguir não é nenhum destes (...). Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição” (Freud, 1914, p. 182).


Sob essa perspectiva, e levando em consideração o aspecto de resistência do amor transferencial, as recomendações freudianas visam postular uma única regra, verdadeiro sustentáculo da função analítica: no ponto em que as paixões do ser promovema filtragem tendenciosa da fala dos pacientes, o analista deverá manter uma “atenção uniformemente suspensa” (Freud, 1912, p. 125), concedendo igual valor a tudo o que for dito, sem seguir às suas próprias inclinações. Essa não é uma tarefa fácil, muito pelo contrário, requer o preenchimento de uma importante condição: a ‘purificação psicanalítica’ (idem), onde o inconsciente do analista será submetido à prova de seu método. Temos, ainda em 1912, o princípio do que depois constituirá a exigência da análise didática para a formação do psicanalista.

Podemos observar as ressonâncias das recomendações freudianas em seus destinatários, de tal modo a promover, na pena de Ferenczi, uma fina articulação entre o fim de análise e a formação do analista. Assim, em 1927, em exposição feita durante o X Congresso Internacional de Psicanálise, Ferenczi (1927) apontou para a necessidade de que a análise do analista seja inteiramente terminada, uma ‘superterapia’, capaz de prover habilidades especiais ao candidato em formação: “o analista, de quem depende o destino de tantos seres, deve conhecer e controlar as fraquezas mais escondidas de sua própria personalidade, o que é impossível sem uma análise inteiramente terminada”. (Ferenczi, 1927, p. 21).

Essa é uma concepção solidária aos obstáculos observados na clínica: a exigência de qualificação mostra-se uma saída viável para lidar com os pacientes ‘refratários’, os que não associam livremente, mentindo ou ocultando dados relevantes à direção da cura, apenas para conquistar a ‘disposição amistosa’ de seus analistas. Esses pacientes exigem de seus analistas uma posição quase ‘divinatória’, princípio da técnica ativa, em que o analista infere, a partir de silenciosos traços de caráter, os conflitos psíquicos ainda não deflagrados. Em 1937, quatro anos depois da morte de Ferenczi, Freud (1937) responde ponto a ponto às ambições terapêuticas do seu discípulo, condenando o manejo da transferência para fins profiláticos. O famoso texto “Análise terminável e interminável” (1937) é o último grande diálogo entre os dois psicanalistas e o registro da posição freudiana sobre o problema do fim de análise.

Recuando um pouco mais no tempo, no início da década de 1930, as preocupações com o ser do analista continuam a atravessar a produção teórica ferencziana, mas, agora, os obstáculos do ‘ser’ põem em cheque a eficácia das técnicas ativas. Ferenczi (1933) se dá conta de que as tentativas de acossar as resistências do caráter produzem efeitos inusitados, senão desagradáveis: diante da ‘autoridade’ das interpretações, os analisandos se mostram submissos, concordam com tudo o que é dito, ou, no extremo avesso, enfurecem, disparando ataques contra seus analistas. As técnicas ativas perigosamente aproximam a transferência da sugestão, fato que não lhe passa despercebido. Desse modo, em uma postura mais ‘amena’, no artigo “Confusão de língua entre o adulto e a criança” (1933), Ferenczi faz uma denúncia de uma ‘hipocrisia profissional’, condenando a insinceridade dos analistas em demonstrar erros e fraquezas.

As tentativas em conquistar um absoluto estado de franqueza fizeram com que Ferenczi, por vezes, ‘trocasse’ de posição com seus pacientes, deixando-se analisar por eles e permitindo-lhes um contato físico mais aprofundado, incluindo beijos recíprocos. Tão logo travou conhecimento da técnica da ‘análise mútua’, Freud escreveu uma longa carta admoestatória a Ferenczi, em 13 de dezembro de 1931. A carta fora publicada na íntegra por Ernest Jones e constituiu, como bem sinalizou o tradutor inglês das obras de Freud, “um interessante pós-escrito” (1914, p. 175) ao artigo técnico “Observações sobre o amor transferencial”. Vale a pena transcrevermos um trecho da crítica freudiana:


“Percebo que as divergências entre nós atingem seu ponto culminante a partir de um detalhe técnico que vale a pena ser examinado. Você não faz segredo do fato de que beija seus pacientes e permite que eles também o beijem. (...) Até o momento sustentamos, dentro da nossa técnica, a conclusão de que os pacientes não devem ter satisfações eróticas”. (Freud apud Jones, 1979, p. 718)


Do início ao fim do diálogo teórico entre Freud e Ferenczi, as discussões sobre a contratransferência se referem às possibilidades de neutralizar o enviesamento do ser do analista no curso do tratamento. No capítulo VII de “Análise terminável e interminável”, Freud (1937) se mostra contrário aos esforços de normalização do ser do analista, defendendo a tese de que a análise didática é a única verdadeiramente interminável. Sem propor qualificações ideais, a exigência freudiana recai sobre uma “convicção firme da existência do inconsciente” (Id., p. 265), condição primeira à função analítica, e benefício comumente adquirido por qualquer um que se submete ao método. Em 1937, a normalidade é um ideal inatingível, a totalidade da pulsão não pode ser integrada ao aparelho psíquico e o tratamento de homens e de mulheres esbarra no incontornável rochedo da castração.

Nas linhas desse longo diálogo, podemos observar de que maneira o fim de análise deixa, em seu rastro, um sintoma irredutível e avesso a qualquer tentativa de normalização: trata-se do próprio analista, em seu estilo.

Entre Margaret Litlle e Ella Sharp: a crítica do conceito

Na década de 1950, o movimento psicanalítico, tomado como um todo, compartilhava a crença de que problemas na transferência ao didata estranhamente retornavam nas análises terapêuticas empreendidas a posteriori, sob a forma de sentimentos não racionalizáveis. Os analistas ingleses e americanos divergiam, entretanto, sobre o uso da contratransferência: uns se esforçavam em reduzir ao máximo as interferências do ser do analista, outros aquiesciam à inevitabilidade dos pontos cegos das análises didáticas, utilizando-os em prol da técnica. É nesse contexto que Lacan (1953-54) inicia o seu seminário sobre Os escritos técnicos de Freud, propondo-se a discutir os impasses clínicos a que chegaram os pós-freudianos, mas, agora, tomando-os sob a referência da tópica do imaginário. No terceiro capítulo desse seminário, Lacan recupera os fragmentos de uma análise didática, cuja responsabilidade é creditada a Annie Reich, mas, conforme veremos, trata-se do tratamento de Margareth Little com Ella Sharp, com duração de sete anos, e interrompido em 1947.

Com algumas modificações, o ponto nodal do relato se refere a uma situação de luto impossível de ser simbolizada diante das interpretações propostas pelo analista:


“Um paciente precisa fazer uma comunicação na rádio sobre um tema que muito interessa ao analista. Apesar de todas as condições desfavoráveis - a mãe desse paciente havia morrido na semana anterior -, a empreitada fora um sucesso. No dia seguinte à comunicação, o paciente chega à análise em estado de angústia e de confusão e, diante desse quadro, o analista interpreta: diz-lhe que o quadro depressivo se refere ao temor de que o analista o prive do sucesso, por razões de ciúmes e inveja. A interpretação é acatada, a depressão do paciente cede e a análise continua por mais um ano. Algum tempo depois de concluído o tratamento, esse paciente se lembra, de modo fortuito, do falecimento de sua mãe, redimensionando o episódio da comunicação no rádio: naquela época, estava triste porque a mãe não pôde testemunhar seus êxitos e, diante da interpretação do analista, fora obrigado a negar a morte de um ente querido, “de um modo quase maníaco” (Little apud Safouan, 1991, p. 117).


Safouan (1991) nos remete a um capítulo intitulado “Diálogo: Margaret Little/Robert Langs”, para confirmar que esse conhecido fragmento se refere, de fato, à análise de Margaret Little com Ella Sharpe. Em lugar da comunicação ao rádio, tratava-se da defesa da monografia de Little diante da Sociedade Psicanalítica de Londres, um pré-requisito ao ingresso de novos candidatos. Seu pai havia falecido uma semana antes da defesa, e Little precisou de muito tempo, dois anos, para elaborar a –óbvia – tristeza pela perda do pai. O longo período de luto é consequência de uma interpretação desastrosa, denunciandoo efeito do atravessamento do ‘ser do analista’ sobre a direção da cura.

Seguindo o raciocínio dos teóricos da contratransferência, os pontos cegos das análises didáticas se estendem à prática clínica e à produção teórica dos candidatos em formação. Antes de enunciarmos a crítica lacaniana a essa tese, façamos um breve relato de outro caso de luto, dele extraindo suas devidas consequências. Trata-se de Frieda, paciente de Little, cujo sintoma principal girava em torno de uma ‘compulsão por roubar’.

Little (1957) nos conta que os primeiros sete anos de análise foram dedicados a tornar a transferência ‘real’: muitas interpretações foram dadas, e todas elas passavam ao largo dos problemas da analisanda, como se entrassem por um ouvido e saíssem por outro. O quadro apresentou uma reviravolta quando uma amiga de Frieda, Ilse, faleceu, depois de uma operação na Alemanha. A paciente chegou à sessão com o rosto inchado, vestida de preto, em verdadeira agonia e completamente inconsolável. Cinco semanas se passaram, e a tristeza não arrefeceu, muito pelo contrário, houve pioras, Frieda parecia ‘fora de contato’: não dormia, não comia, espalhava fotos de Ilse pela casa e julgava ver a imagem da morta em todos os ambientes de seu convívio. A analista disparou interpretações: ‘você quer que eu traga Ilse magicamente de volta à vida’, ‘você quer punir a si e ao ambiente por sua infelicidade’, e nada surtia feito. Diante dos riscos de suicídio e de morte por exaustão, Little, já tomada de angústia, tenta um último recurso: diz-lhe o quanto aquela dor e tristeza tocam não apenas os parentes e amigos, mas atingem particularmente a ela, sua analista: “I felt sorrow with her, and for her, in her loss” (Little, 1957, p. 247), acrescenta. O efeito fora instantâneo: o luto patológico cedeu lugar a um choro ordinariamente triste e, nas semanas seguintes, Frieda seguiu com a própria vida.

No ponto em que Ella Sharp se recusa a admitir as interferências do ‘ser do analista’ na direção da cura, Margaret Little opera analiticamente a partir de seu ‘ser’: propõe uma ‘resposta total’- somatório de tudo o que o analista diz, faz, pensa ou sente - no confronto com as necessidades de seu paciente. Nas considerações teóricas, Little (1957) afirma que a ‘resposta total’ torna-se um artifício técnico imprescindível diante de casos graves, de psicoses e de neuroses de caráter, em que há falhas no processo de simbolização. Neles, a interpretação da transferência, responsável por instaurar o real no domínio da fantasia, não surte efeito. Com esses pacientes, Little mobiliza recursos mais primitivos, propõe a realização da presença do analista, tomada, aqui, enquanto único parâmetro de realidade. Para tanto, a contratransferência precisa ser explicitada, quase em termos confessionais, e qualquer semelhança com a exigência ferencziana de sinceridade e de franqueza não é mera coincidência.

A partir das contribuições de Lacan (1962-63), podemos isolar um ponto comum a todas essas preocupações relativas ao do ser do analista: trata-se do esforço, muitas vezes renovado, em operar o ‘fechamento’ da experiência com o inconsciente. Em Ferenczi, a análise didática inteiramente terminada garante a assunção de um ‘analista-tipo’, fixo e imutável, o qual conduzirá as análises de seus pacientes a um termo igualmente invariante, princípio da ideia do tratamento-padrão. Margaret Little também toca no osso dos problemas da formação, mobiliza a tipologia analítica, esse recurso ao ‘ser’, para avançar em torno do que é impossível de simbolizar. Um e outra, em suas respectivas contribuições, falharam em localizar a dupla função da falta, conforme nos ensina Lacan (1962-63), em seu Seminário 10.

A primeira função da falta é interna à lógica da linguagem, refere-se à ausência do significante último em que o ser possa agarrar-se. A pergunta ‘quem eu sou?’ não encontra articulação significante, sua resposta é um lugar vazio, o lugar do falo (- phi), terreno propício à ancoragem dos sintomas neuróticos. Assim, nos primeiros anos de seus seminários, Lacan se esforçou em demonstrar a estrutura metafórica dos sintomas, esse efeito positivo de sentido, destinado a suplementar a falta no campo do Outro: “a neurose é uma questão que o ser coloca para o sujeito” (Lacan, 1957, p. 254), diz-nos ele. Dessa forma, o neurótico responde, com o recurso do seu sintoma, à castração do Outro, oferta ‘falaciosa’, conforme Lacan (1962-63), porque destinada a recobrir uma falta mais estrutural: a inexistência de um objeto que suture as bordas do corpo.

Sob essa perspectiva, a segunda função da falta é constitutiva do ser humano, insere-se nos domínios do corpo e do autoerotismo. Uma vez que temos acesso à linguagem, perdemos as relações de complementaridade entre o real e o imaginário: o nosso corpo sempre se mostra um tanto insuficiente para designar seus objetos de satisfação, ampla diferença entre homens e animais. No Seminário 10, Lacan (1962-63) se interessa pela gênese dessa falta estrutural, remontando-a aos resíduos da dialética do sujeito ao Outro. Desse modo, a incidência da linguagem opera um corte na substância, institui, de um lado, as bordas ou zona erógenas, e, de outro, compõe a forma do objeto, afinada com tais bordas da superfície corporal. À diferença do sintoma, passível de reduzir-se pelas vias da linguagem, a relação do sujeito ao objeto causa de desejo é irredutível: não há relação de complementaridade entre os sexos, fórmula radicalizada nos seminários de Lacan da década de 1970.

As concepções sobre a contratransferência confundem essa dupla função da falta, porque falham em localizar a importância do objeto causa de desejo. O ‘analista-tipo’, supostamente fruto de uma análise inteiramente terminada, não mais padeceria de sua divisão subjetiva, apresentando-se ‘uno’, ‘inteiro’, ‘normal’, como se fosse possível instituir uma relação harmônica entre o sujeito e o objeto. Nessa empreitada, o fracasso se mostra previamente anunciado: a contratransferência torna-se o instrumento que sinaliza a impossibilidade de uma tipologia do analista.

O ‘ser analista’, enquanto resposta sintomática à pergunta “quem eu sou?”, sofre as incidências do circuito inconsciente, é possível de ser reduzido no percurso de análise, dando a ver a relação do sujeito ao objeto causa de desejo. Ao fim, o desejo do analista assim se apresenta enquanto uma saída, singular, para essa falha de ordem ainda mais constitutiva: trata-se de um ponto de ancoragem às respostas, continuamente inventadas, para o impossível da relação sexual.

Na década de 1960, o dispositivo do passe é instituído com o intuito de verificar a passagem do ser ao desejo. Nesse ponto, Lacan (1969) abandona a ‘tipologia do ser’ para inaugurar uma ‘topologia do sujeito’, cujo móbil seria o próprio desejo do analista.

Três testemunhos do passe: a transmissão de um sintoma analítico

Qual seria o efeito do ensino de Lacan sobre as discussões referentes ao ser do analista? No último tópico, discutiremos o dispositivo do passe, a partir de três relatos, tornados públicos por Geneviève Morel (2008).

Partiremos da ideia, lançada por Lacan (1962-63), de que a estrutura metafórica do sintoma recobre uma segunda falta, constitutiva e irredutível, relacionada à impossível relação entre os sexos. Morel (2008) avança essa ideia retomando as contribuições do último ensino de Lacan (1975-76), para afirmar que, ao final de análise, o nó sintomático de partida não desaparece, mas é reduzido ao ponto dessa falha estrutural. Desse modo, no confronto com a falta de relação entre os sexos, cada analisando é convidado a inventar sua saída, um sinthome, o qual assinala a função de suplência diante do irredutível. Esse sinthome analítico, criado pelo analisando durante a cura, longe de se constituir como um fator que irá interferir nas análises empreendidas a posteriori, é o meio pelo qual o analista necessariamente opera. Mais ainda, “a invenção de um sintoma a partir de um sintoma anterior do sujeito (...) prolonga o do analista ou a ele responde, sem ser exatamente o mesmo, com uma invenção” (Morel, 2008, p. 174 no original – tradução do revisor). Pelas vias do sintoma, torna-se, portanto, necessário investigar aquilo que é “ordinariamente transmitido em silêncio”, tarefa de difícil observação, já que a literatura psicanalítica não comporta tantos exemplos sobre o assunto. Por essa razão, a autora recorre ao dispositivo do passe.

Enquanto Analista da Escola (AE), Morel (2008) escutou uma série de momentos difíceis do tratamento, a autora observou que o analista responde com os meios de seu sintoma: no caso de M.X., tratava-se de querer fazer o papel de ‘bom pai’, aquele que encarna uma norma ideal para seus filhos. A ‘carência’ de M.X., resposta do analista à falta estrutural, produz efeitos sobre o sintoma de partida de seus analisandos. Esses últimos, por seus turnos, puderam inventar outra resposta sintomática, inteiramente nova e singular, que guarda a marca daquela dada pelo analista, conforme veremos nos relatos a seguir.

Gil entra em análise com M.X., contando-lhe um segredo: dentre alguns filhos naturais, o analisando possui um ilegítimo, o qual não o assume, nem o reconhece em nenhum plano. Seu pai, enquanto vivo, conservava uma vida dupla: tinha uma esposa, mãe de Gil, e uma amante, enfermeira, com a qual possuía filhos igualmente não reconhecidos. Esse pai se dizia médico, sem jamais ter feito estudos na área, impostura que lhe possibilitava seduzir as mulheres com maior facilidade. Quando o pai morre de infarto, a criança, então com nove anos, é convidada a tomar seu lugar, ao lado da mãe.

O sintoma de partida se refere, portanto, aos efeitos da impostura paterna: Gil dizia-se filho de médico, aparentava conhecedor de vários domínios fora de sua competência, sustentava um saber de ‘contrabando’, que o impelia a se fazer ‘passar por aquilo que não era’. Na ocasião do passe, Gil deduz o ponto de ancoragem da sua fantasia fundamental: uma criança à procura de um pai, para se fazer ‘ver’ e se fazer ‘reconhecer’ por ele. Esses dois objetivos foram amplamente conquistados na transferência com M.X.

A ocasião do passe se faz em meio a um momento político importante: M.X ocupa um lugar estratégico em uma instituição em vias de expandir-se. Em suas intervenções, o analista assume a função de um pai protetor: ‘deixe de palhaçadas!’, ‘você é um bom pai’, diz ele a seu analisando. Essa posição de ‘bom pai’ se redobra sobre o sintoma de partida, cujo ápice se refere à admissão de Gil na “confraria dos analistas patenteados e não-impostores” (Morel, 2008, p. 182). Assim, o passe e o reconhecimento de Gil deixaram para trás o “enigma do filho secreto”, fixando e consolidando a problemática inicial, sem grandes transformações.

O mesmo não se pode dizer de Jules, outro analisando de M.X.: nesse caso, há a invenção de um sinthome, fundado no que Jules nomeia como ‘efeito de letra’.

Jules planeja engravidar sua mulher logo após ter um sonho no qual uma frase se destaca: “Sara penetrará”. Sara é o nome de sua analista à época do sonho. Essa frase é seguida de uma fantasia: fazer-se penetrar por uma mulher. Durante onze anos, tal fantasia é encenada com diferentes massagistas, ‘perversão transitória’, em acordo com o analisando.

Após se desligar de Sara, Jules recorre a M.X. durante uma conferência sobre psicanálise em que o analista cita várias obras de autores judeus. A escolha lhe remete a uma carência da palavra paterna: o pai nada dizia ao filho, apenas costumava citar livros e leituras. As múltiplas interpretações de M.X. aparecem portanto, como suplência ao silêncio paterno: o analista assume, em transferência, o lugar do ‘pai que fala’. Durante o passe, Jules é capaz de reproduzir minuciosamente dezenas de interpretações de M.X., frases inteiras, que possuem o valor de uma lei, tornam-se uma espécie de regra de conduta diante da falha simbólica de seu próprio pai.

Depois de três anos de análise, Jules se separa da mulher e se casa novamente, época em que as ‘massagens’ são deixadas de lado.  “É lógico que, após a degradação, vem a idealização”, comenta M.X. (Morel, 2008, p. 184). A partir desse ponto, o trabalho de reconstrução segue três direções distintas: na primeira, a fantasia de penetração é remetida ao desejo materno; na segunda, há uma fórmula: “P implica F”, quer seja: “se pai então falha” (idem, p. 185 – tradução do revisor). Essa fórmula, condensada, promove um claro benefício terapêutico: redimensiona a fantasia de feminilização, a qual provocava horror no analisando. Por fim, na terceira direção, há a invenção de um sinthome, cujos suportes são a carência paterna e o sintoma do analista. O gosto pelos livros e pela leitura orienta Jules à função da letra na tradição judaica. Ele retoma o episódio bíblico do sacrifício de Isaac para fazer ressoar uma ‘letra-circuncisão’: “a cicatriz da renúncia a uma relação de sacrifício entre pai e filho” (idem, p. 186 – tradução do revisor). Para ele, a letra assume o lugar da castração simbólica, torna-se a via de transmissão da virilidade entre pai e filho.

Por último, Ève faz a sua análise a partir do sinthome criado por Jules. Essa moça diz saber ‘o que é a castração’, aquisição feita durante seu percurso analítico. Em uma sessão, Ève comenta o filme O império dos sentidos, e o analista interpreta, diz-lhe que a castração sofrida pelo personagem principal fora uma iniciativa da parceira. Em seguida, Jules lhe pede para soletrar um nome, Ève esquece uma letra. “A castração é isso”, diz ele, remetendo-a a um fenômeno de linguagem. O sintoma de Ève, via pela qual ela entra em análise, está relacionado à significação fálica: a analisanda é torturada pelo olhar dos homens face sua própria beleza. No ponto em que essa moça se sente desorientada pelo olhar masculino, a análise ‘orientada pela letra’ demonstra benefícios terapêuticos, incidindo sobre o sintoma de partida.

Muito embora não saibamos de que maneira M.X. construiu seu próprio sinthome, os três exemplos demonstram os efeitos diferenciados de uma mesma marca sintomática, a ressoar na estrutura e no problema de cada analisando. Diante do embaraço de um obsessivo em relação à impostura paterna, M.X. ‘banca’ o pai imaginário, permitindo-lhe o acesso ao reconhecimento social em uma instituição psicanalítica. Nesse caso, o sintoma de partida fora fixado, sem grandes transformações. Mas, em face da carência paterna de Jules, M.X. ocupa o lugar do pai simbólico: o analista interpreta a castração em termos de ‘letra’ na mesma medida em que o analisando não logra acesso à metáfora paterna. A filiação é reinscrita, por Jules, na tradição judaica, sinthome absolutamente original, que lhe permite operar como analista.

Qual a diferença entre os efeitos de ‘ser’, postulados pelos teóricos da contratransferência, e a transmissão pelas vias do sinthome, tal qual discute Morel?

De Ferenczi a Freud, entre Margareth Little e Ella Sharp, as tentativas em neutralizar o ser do analista referem-se à insistência na multiplicação do idêntico: ao fim de análise, surgiria um termo invariável, o analista normal, garantidor dos procedimentos técnicos de uma psicanálise-padrão. A crítica de Lacan (1957) ao modelo de formação da IPA assim recai sobre uma transmissão por fac-símile, coroada pelo binômio identificação/idealização. Nessa perspectiva, a contratransferência, embora indesejável, tornava-se o sinal do estilo do analista, de sua responsabilidade na direção da cura.

Conforme demonstramos, Freud (1937) desconfia dessas formulações, remetendo-nos à ideia de que a única análise interminável é a do analista.  Nas linhas das contribuições freudianas, ao fim do nosso trabalho, o conceito de contratransferência sofre deslocamentos, remete-nos àquilo que é possível de se transmitir em transferência.

Em transferência, o ser do analista dá a ver o desejo que ele próprio encerra. Trata-se, entretanto, de um novo efeito de ‘ser’, consequência do percurso de análise e artifício singularmente inventado para fazer face ao impossível da relação entre os sexos. Essa marca se prolonga ao longo das gerações, ensejando transferências de trabalho e atravessando as produções teóricas e acadêmicas.

Notas

  1. Esse texto é consequência da minha dissertação de mestrado em Psicologia, intitulada “O percurso do conceito de fim de análise de Freud a Lacan”, sob orientação da Prof. Dra. Laéria Bezerra Fontenele, e com o financiamento da CAPES.

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Recebido em 04/02/2010; aceito em 10/03/2010.
Received in 02/04/2010; accepted in 03/10/2010.