Discurso do psicanalista: formalização do desejo do analista1
The psychoanalyst’s speech: formalization of the analyst’s desire

Rosa Guedes Lopes

Psicanalista
Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade Estácio de Sá
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
Membro da Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo
rosa.guedes.lopes@globo.com

Resumo

Partindo de dois axiomas lacanianos – a psicanálise é “essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai” e “é o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise” -, o texto interroga se a noção de desejo do analista é coerente com a criação do discurso do analista. Lacan formalizou o mito edípico freudiano com o conceito de Nome-do-Pai. Com isso, revelou a face mortificante da dimensão simbólica que submete todos os sujeitos à lei paterna interditora do incesto. Nos anos 1960, com o conceito de objeto a, Lacan redefiniu os conceitos de Nome-do-Pai e de Outro. Se o Outro é o campo onde o vivo é chamado à subjetividade, então, o Nome-do-Pai implica o ato de nomeação da causa (a) sexual do desejo. O discurso do analista formaliza e atualiza a noção de desejo do analista porque permite extrair o gozo em jogo na operação de nomeação.

Palavras-chave: psicanálise, desejo do analista, Nome-do-Pai, discurso do analista, discurso do mestre.

 

 

Abstract

Departing from two of Lacan’s main axioms – psychoanalysis is essentially what re-introduces the Name-of-the-Father in scientific consideration and is the “desire of the analyst, that ultimately operates in psychoanalysis” -, the text questions if the comprehension of desire of the analyst is cohesive with the creation of the analyst’s discourse. Lacan formalized the Freudian Oedipus myth with the concept of the Name-the-Father. With that revealed the mortifying face of the symbolic dimension that submits all subject to the paternal law of incest interdiction. In the 1960s, with the concept of object a, Lacan redefined the concepts of Name-the-Father and Other. If the Other is the field in which the living is called to subjectivity, so the Name-of-the-Father implies the act of naming the cause (a) of the desire as sexual. The analyst’s speech formalizes and updates the concept of desire of the analyst because it allows us to extract the enjoymentat stake in the naming operation.

Key words: psychoanalyst, desire of the analyst, Name-of-the-Father, analyst’s speech, master’s speech.

 

Introdução

Este texto parte de dois axiomas lacanianos datados dos anos 1960:

  1. 1965: a psicanálise é “essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai” (Lacan, 1998, p. 889).
  2. 1964: “é o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise” (Id., p. 868).

Segundo a periodização da obra de Jacques Lacan feita por Jacques-Alain Miller (2002), os anos 1960 estão inseridos no segundo ensino de Lacan. Portanto, as afirmações lacanianas que servem de ponto de partida para este texto devem ser compreendidas a partir dos avanços conceituais que Lacan introduz entre o Seminário 11 e o Seminário 17.

O conceito de Nome-do-Pai foi criado com a pretensão de formalizar o mito edípico - lugar da realidade psíquica em Freud - porque Lacan considerava que o campo mítico não era suficiente para explicar a estrutura subjetiva por parâmetros científicos. Ao conceituar o Nome-do-Pai, Lacan deu um passo a mais que Freud. Passou da representação e dos mitos ao conceito e ao matema. Em seguida, identificou o conceito à estrutura e essa ao sujeito. Com este gesto, elevou o mito à dignidade de estrutura (Lacan, 1969-70) e retirou da psicanálise o excesso de imaginário que poderia tornar precário o seu campo de conhecimento. Foi nesse contexto que Lacan afirmou que a tarefa da psicanálise é a de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica.

A reinserção do Nome-do-Pai na consideração científica, no âmbito do segundo ensino de Lacan, deve levar em consideração a revisão conceitual que é promovida em relação à linguagem e que dá lugar ao conceito de objeto a. Lacan forjou esse conceito para tratar de alguma coisa que se apresenta como obstáculo à análise: uma parte do ser do sujeito que comparece como fading (desvanecimento) e surge na transferência como objeto destacado do campo do Outro, ou seja, fora de qualquer dialética. O conceito de objeto a demonstra que, neste ponto, a pulsão não se apresenta como demanda, mas como traço unário. No Seminário 17, Lacan cria o matema do discurso do analista e coloca o objeto a como seu agente justamente com o objetivo de promover na análise a histerização do discurso do paciente ali onde seu discurso estanca. Operando a partir das coordenadas do objeto a, a ação do analista deverá, então, instaurar a divisão subjetiva e permitir que o que aparentemente comparece fora do discurso encontre suas coordenadas de gozo. Trata-se de introduzir no dispositivo analítico uma operação artificial que leva o sujeito a produzir significantes-mestre.

Já a expressão “desejo do analista”, Lacan a utilizou pela primeira vez em 1958, no texto “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”, no qual discutiu a questão do ser do analista e da sua operatividade no que concerne à direção do tratamento analítico. Sendo o psicanalista um sujeito como qualquer outro e, portanto, não estando a salvo da mortificação que o significante impõe à vida quando a reduz ao número (Lacan, 1998, p. 620), como ele poderia ajudar o paciente? Lacan realiza um debate com a ciência moderna, seguindo os passos de Freud em “A questão de uma Weltanschauung” (1933 [1932]), e articula o campo da psicanálise ao da ética. A psicanálise deve responder aos efeitos do advento da ciência moderna sobre o sujeito que a própria ciência engendra, o sujeito da falta-a-ser, aquele que já sabe que o projeto humanista de felicidade é um projeto fracassado. Porém, o analista deve responder com o desejo do analista e não com qualquer outra coisa que compartilhe o sonho de felicidade ou de simetria porque “o progresso humanista [...] não satisfaz às aporias da felicidade” (Lacan, 1998, p. 620-621).

Este texto pretende tomar o uso do desejo do analista pelo psicanalista, tal como Lacan o formulou nos anos 1950, e a operação do analista a partir do objeto a, enquanto agente do discurso do analista, como operações homólogas que precisam ser compreendidas a partir do axioma que define a psicanálise como responsável por reinserir o Nome-do-Pai na consideração científica. Desta articulação é possível extrair a tese de que o discurso do analista formaliza e atualiza, nos anos 1960, a noção de desejo do analista.

Reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica2

A metáfora paterna foi a formalização mais precisa do Nome-do-Pai no primeiro ensino de Lacan. Ela mostra como se dá a produção de um sentido novo por meio da substituição de um significante (Desejo da Mãe) por outro (Nome-do-Pai) ao qual se acrescenta um valor fálico (Lacan, 1957-58; 1998, p. 563):

 Nome-do-Pai       .             Desejo da Mãe        = Nome-do-Pai (A/)
Desejo da Mãe             significado para o sujeito

A intervenção do pai na relação mãe-filho contribui para o recalque e promove a renúncia à satisfação pulsional e a identificação. Além disso, provoca uma transformação no âmbito da pulsão. O falo fornece a medida da passagem do valor de uso da criança pela mãe por outro tipo de valor, simbólico. O Nome-do-Pai sustenta a ordem simbólica e o falo é o significante que, por retroação, reúne todos os significantes sob a égide do desejo. O desejo recobre a ausência de saber sobre o sexo interpretando-a com o mito edípico.

A consequência teórica mais importante decorrente da metáfora paterna foi a introdução do desejo no campo do Outro, ponto de partida para o segundo ensino de Lacan. Escrever o falo em A é afirmar que ali há uma hiância e que a operação do recalque funciona também a serviço do princípio do prazer. Como resíduo dessa operação lógica, o desejo prova que o sujeito é marcado pelo significante-mestre no mesmo lugar em que é habitado pelo desejo do Outro. O sintoma expressa a face de objeto que impede que o sujeito possa ser reduzido à cadeia significante S1-S2. Incluir a significação fálica (ou a sexualidade e o desejo) no campo do Outro torna impossível passar pelo código (A) sem que o desejo se apresente enquanto objeto vazio de imagem, resto do encontro do sujeito com a linguagem (Miller, 1998).

No tempo em que o campo do Outro (A) foi definido por Lacan como tesouro dos significantes, o Nome-do-Pai devia ser entendido como o significante da tradição que localizava o sujeito em relação às diferenças sexual e geracional, interditava a relação primária entre o sujeito e o objeto, e garantia a consistência da inserção do sujeito na cultura e na partilha dos sexos, identificando-o a uma significação fálica. O Nome-do-Pai era o nome do sujeito suposto saber a razão e a ordem dos corpos e das coisas. A introdução do desejo em A promoveu uma mudançano conceito de Nome-do-Pai. Ele passou a ser compreendido em duas vertentes: uma, referente à formalização do mito edípico pela metáfora paterna (exclusão do gozo incestuoso e indicação da série constitutiva do desejo) e outra, relativa à nomeação, isto é, a uma articulação particular (e não mais universal) do sujeito com o Outro primordial pelo complexo de castração. A segunda vertente liga o significante do Nome-do-Pai ao objeto perdido. Trata-se da sua função de escritura. O nome próprio inscreve, nomeia a perda de realidade que funda a ordem simbólica. Esta perda não é sem relação com a libido, portanto, o sujeito que é produzido pela metáfora paterna retém algo da relação primordial do significante com o objeto. Não se trata de um significante sem qualidades, mas de uma escritura de gozo.

No primeiro tempo de seu ensino, Lacan formalizou o Édipo freudiano pelo Nome-do-Pai. Superposto ao simbólico, o Nome-do-Pai excluía o gozo com o objeto. Essa exclusão era necessária à consistência da própria simbolização que localizaria o sujeito no laço social. Neste sentido, na operação analítica, a reinserção do Nome-do-Pai requeria a reintrodução da dimensão alteritária da constituição subjetiva que havia sido recalcada e que retorna por meio do supereu herdeiro do complexo de Édipo. Entretanto, tornou-se necessário pensar que se o significante guarda um rastro da sua ligação primordial com o objeto isto se deve ao fato de que o sujeito do significante se encontra encarnado em um corpo.

A psicanálise coincide com a ciência ao reduzir o sujeito a um significante primordial. No entanto, se separa dela ao demonstrar que este significante não é sem qualidades. Há gozo na equação entre o sujeito e o significante unário. O significante guarda relações com o gozo e é isso que a relação do desejo com a perversão exemplifica muito claramente. Na sua relação com o objeto, o perverso substitui o objeto (pênis) que falta à mãe por outro objeto em relação ao qual realiza um lucro por lhe dar a condição de fetiche. Assim, eleva o objeto de uso à dignidade de objeto de troca. O pai não é um ser supremo. É um homem. E homens e mulheres não podem ser reduzidos a significantes puros porque é preciso considerar as consequências psíquicas do complexo de castração, ou seja, como cada um recupera o gozo pulsional perdido na assunção do seu lugar na partilha dos sexos. O conceito de Nome-do-Pai precisará, portanto, incluir algo relativo ao gozo. Lacan responde a esta necessidade com o conceito de objeto a e com a ênfase no fantasma (Miller, 1999).

A estrutura do objeto a considera a recuperação, pelo circuito pulsional, do gozo ao qual o sujeito (macho ou fêmea) renunciou para constituir-se como tal. A libido expulsa do aparelho psíquico é irredutível à metáfora paterna. Ela implica a estrutura fantasmática (a perda de uma parte do ser e a recuperação desta perda sob as espécies de a) e não só a trama edípica.

Entre o plano da existência do sujeito e o do sentido da vida, entre o campo do ser e o campo do Outro, é preciso pensar o inconsciente como lugar da inserção entre a linguagem e o corpo. A definição do inconsciente como discurso do Outro, campo da linguagem, tinha como consequência a interpretação pelo método da decifração. Mas há algo que comparece maciçamente na transferência e que não permite a decifração. O conceito de Nome-do-Pai, o objeto a e a fórmula do fantasma provam que a constituição da subjetividade sempre mantém algo do imaginário infantil. Isto impede que o sujeito possa ser reduzido a uma equação isenta de qualidades e que o campo do desejo seja pensado como anônimo.

Com a criação do conceito de Nome-do-Pai, Lacan recompôs a estrutura subversiva da psicanálise freudiana em relação à cultura. Mostrou que o simbólico é anterior a qualquer experiência e que o pai era o eixo de toda constituição subjetiva como mortificada, mas desejosa por um gozo impossível de ser alcançado. A partir do Seminário 10, Lacan altera o estatuto do pai. Ele dá testemunho de um gozo acessível em pequenos fragmentos. Portanto, sua intervenção na relação mãe-filho não produz um sujeito desconectado do gozo. Lacan substitui o sujeito do significante por um corpo vivo e coloca a primazia de sua constituição sobre o complexo de castração e não mais sobre o Édipo. A operação da Aufhebung não abole a ligação do sujeito ($, correlato do par S1-S2) com a sua face de gozo (a). A função paterna de nomeação não produz apenas um sujeito normalizado pelos caminhos da lei, mas “o fato de que, na manifestação do seu desejo, o pai sabe a que [objeto] a esse desejo se refere”. O pai não é uma causa sui tal como os mitos freudianos fazem crer, mas “o sujeito que foi longe o bastante na realização de seu desejo para reintegrá-lo no que há de irredutível na função de a” (Lacan, 1962-63, p. 365-366). No lugar de excluir o gozo, o pai o localiza como acessível em um objeto causa do desejo (a). Instaura o gozo como parcial, fragmentado, marcado pela impossibilidade de ser desfrutado de modo pleno.

Este passo, que considerou a libido como objeto que repara a perda de vida em jogo na posição sexuada, dependeu de uma redefinição do conceito de Outro. A introdução do desejo no Outro questionou a relação da pulsão com a sexualidade e tornou necessário considerar o Outro como um campo em que o vivo do sujeito é chamado à subjetividade. Além disso, questiona a relação da pulsão com a sexualidade. Como a sexualidade se apresenta no psiquismo se nenhuma pulsão é capaz de representar a função da reprodução? Se o sujeito deve aprender o que fazer como homem ou mulher no campo do Outro, como ele aprende? O problema da identificação é que não há significante do sexo feminino, então, só o gozo da pulsão parcial pode orientar o sujeito. Lacan desmonta o conceito freudiano de pulsão e mostra que, por oposição ao campo narcísico do amor, a pulsão implica uma satisfação obtida no contorno que denuncia a hiância e impede a reciprocidade. As reversões pelas quais a pulsão se articula à sua fonte e ao objeto revelam o artifício gramatical da pulsão e isolam a zona erógena em relação ao metabolismo da função à qual ela pertence. A pulsão se reduz à sua atividade e é dirigida pela forma verbal reflexiva fazer-se (fazer-se sugar, defecar, ver...).

O gozo pulsional é parcial e implica, de saída, tanto a presença de uma falta quanto o sujeito, em posição de objeto, fazendo-se contornar, suturando a falta do Outro com a sua própria. A função do objeto a demarca o vazio no qual a pulsão se satisfaz (Lacan, 1964). O inconsciente estruturado pela linguagem tem também uma vertente pulsional, que é homogênea a uma zona erógena. Esta correlação introduz a lei do significante no domínio da causa e torna o sujeito equivalente à causa do seu desejo (a) como algo que não se encaixa nessa lei Então, o inconsciente é também repetição do fracasso da articulação significante. A articulação entre S1-S2 e identifica a nova topologia do inconsciente, que dá conta da constituição do sujeito como sexuado. Essa topologia é composta pelas operações de alienação e de separação3, que Lacan conceituou no Seminário 11.

Na operação de alienação Lacan unifica os conceitos de identificação e recalque: o sujeito adquire uma identificação à custa da perda de uma parte da realidade que não se dobra ao sentido, o objeto a. Essa parte, que implica o apagamento do sujeito, faz com que ele compareça como objeto que suplementaria a castração localizada no Outro e pague pelo logro narcísico no qual o vivo sexuado é induzido à completude. O efeito da operação de separação é uma fixação no Outro por meio do fantasma. Estas operações mostram que há gozo no Outro. Coordenadas ao “abre e fecha” das zonas erógenas, superam a metáfora paterna e a metonímia do objeto como objeto do desejo. Abrem o caminho para a abordagem da linguagem como produtora de mais-de-gozar e para o gozo discursivo.

Esta reformulação conceitual do inconsciente fornece-lhe um estatuto ético em relação ao desejo. A ética do corte constitui o circuito pulsional no qual o desejo se realiza de um modo sempre inédito, mas sem se satisfazer. Esta visada do inconsciente dependeu da nova definição que Lacan outorga ao conceito de Outro: “campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (1964, p. 194). No lugar do gozo impossível, excluído do circuito, advém o gozo normal ou parcial inerente ao próprio circuito (Miller, 1999). O simbólico não mais se reduz à transmissão de uma identificação válida para todos. Ele também cria, faz existir algo que não existia antes. Como efeito, a transferência não é pensada somente pela suposição de saber, pela decifração de algo que já estava lá, mas também implica a presença do novo (Coelho dos Santos, 2005). O valor do inconsciente estrutural é relativizado à luz da perspectiva do inconsciente como pulsação temporal (Miller, 2002; Coelho dos Santos, 2002). Na descontinuidade, o inconsciente introduz o Um da fenda, do traço, da ruptura da relação direta sujeito-objeto, e não o Um da unidade egóica (Lacan, 1964).

O caminho de Lacan para chegar à noção de discurso implicou localizar, no Seminário 16, o objeto a como função lógica, consistência que responde à inconsistência () do Outro (Miller, 2005-06). Para além de sua parcialidade, o objeto a é o nome da perda correspondente à inscrição do traço unário. É o que é reincluído no sistema simbólico como mais-de-gozar, como suplência à inconsistência do próprio sistema. Todo significante-mestre (S1) coordena-se a uma fatia de gozo (a) relativa à recuperação, sob a forma de mais-de-gozar, do pedaço de ser perdido. Todo Um é sempre 1+a. O unário opera com o zero. Isto quer dizer que o princípio de ordenação da cadeia significante é o próprio corte. O real é ordenado pelo corte simbólico. O Um contável implica a pura diferença porque ele se funda nela. À radicalização da autonomia do significante corresponde necessariamente à produção de um mais-de-gozar, a transformação em ganho do que se produziu como perda no interior do sistema simbólico. Isso desloca o gozo para o campo do inconsciente e situa a castração como estrutural e não mais como resultado da operação paterna.

O significante passa a regular o gozo por meio de um aparelho, o discurso. Essa regulação define o discurso como uma interpretação do real, uma submissão do real à lei do significante unário (e não unificador) e traz a ideia de que a relação entre o significante e o gozo é primitiva e originária porque todo discurso é movido por uma causa. Essa é a razão pela qual Lacan faz a passagem do significante aos discursos. Ao axioma “um significante é o que representa o sujeito para outro significante”, Lacan acrescenta a definição do significante como aparelho de gozo. A linguagem é veiculo, causa de gozo. Portanto, a repetição não visa ao encontro com o objeto perdido, mas ao desperdício porque ela é gozo com a falta desse objeto. No discurso a repetição é definida como repetição de gozo e o mais-de-gozar é o lucro, o bônus que se obtém quando se goza com a falta. O discurso é “uma forma de vincular o sujeito e suas pulsões, sempre parciais, com o Outro” (Coelho dos Santos, 2001, p. 231). É, portanto, laço social.

No Seminário 17, Lacan elaborou quatro discursos que se caracterizam por uma sucessão e uma combinatória de letras que sempre inclui uma impossibilidade interna. Ao incidirem sobre o corpo, os significantes engendram um saber sobre a verdade que o causa: a ausência de relação prévia entre os significantes. É deste modo que a hiância estrutural ressurge como mais-de-gozar.O ponto de partida é o discurso do mestre. Todos os outros discursos (histérica, universitário e psicanalista) são formados a partir desse, girando os elementos na proporção de ¼ de volta.

No discurso do mestre moderno, um significante-mestre (S1) se localiza em exterioridade ao campo do Outro, campo do saber (S2) inconsistente. Para que se encadeie como enunciado, S1 deve intervir sobre a bateria de significantes (S2) que, justamente por ser prévia e se organizar como saber, não constitui uma bateria dispersa. Ao intervir sobre S2, S1 passa a representar o sujeito como mortificado ($) (Lacan, 1969-70). O nome próprio comanda o processo identificatório enquanto agente do discurso e se torna, então, o significante em nome do qual o sujeito fala (Coelho dos Santos, 2004). Quando S1 intervém sobre S2, ele produz um sujeito dividido ($) e um resto (a). O discurso do mestre grafa simultaneamente o que se perde com a mortificação do sujeito pela incidência do significante-mestre sobre a bateria de significantes e o que se consegue recuperar como mais-de-gozar.

A distinção entre a castração estrutural e seu comparecimento fantasmático tem efeitos sobre a interpretação da operação do pai: ele não é o que efetua a castração, mas aquele que dá provas da castração à qual ele próprio está submetido. Enquanto metáfora, o pai só opera secundariamente porque a castração não é uma fantasia (Lacan, 1969-70). A função de nomeação ligada ao Nome-do-Pai localiza a eficácia da nomeação na palavra do pai. Identificada ao ideal, a operação paterna se desloca na direção de localizar o corpo como sexuado e o gozo ligado ao modo como a pulsão se articula à linguagem. Para que um homem transmita a seu filho um saber sobre o corpo como sexuado, e não apenas a identificação a um ideal, ele precisa ter alguma relação com o que causa o seu desejo. O Nome-do-Pai restitui ao sujeito a tragédia própria à existência humana: o fato de que todo sujeito tem um corpo destinado à morte e um sexo que inscreve no corpo esse destino. O que o Nome-do-Pai introduz pela vertente da nomeação é que não há saber e tampouco sujeito fora do dizer de alguém. A nomeação não é um semblante porque inclui o gozo relativo ao recorte simbólico feito por um sujeito, inclui a castração. Portanto, é enquanto reintrodução da causa como sexual que compreendo o sentido da reintrodução do Nome-do-Pai como tarefa da psicanálise no segundo ensino de Lacan (Lopes, 2009).

O objeto a e o discurso do psicanalista

Com o discurso do psicanalista, Lacan formaliza a operação analítica que visa reintroduzir a causa sexual na consideração do analisante. Localizar o objeto a no lugar de agente do discurso tem como efeito conectar as palavras do sujeito ao seu gozo singular relativo a um objeto que não é qualquer um. A operação analítica coordena os significantes-mestres ao objeto a, ao objeto mais-de-gozar correspondente e não ao objeto parcial. A identificação resulta da castração presente no sujeito. Falta-lhe o significante que responda sobre a causa do seu gozo. Enquanto mais-de-gozar, o objeto a desvela que a identificação se fundamenta na satisfação pulsional. É o objeto mais-de-gozar que fixa o sentido da fantasia, do qual o sujeito precisa se separar.

O objeto a como agente do discurso do analista é “esse objeto que não é nem empírico nem ontológico”, mas lógico. Sua operatividade “faz valer a função do objeto como desarmado da significação que o analisando, no entanto, confere [ao analista] em sua fantasia” (Cottet, 1985, p. 79-80). É isto o que separa o objeto pulsional dos outros objetos, imaginários, e também o que opera um efeito especial sobre a fantasia. Esse efeito é conhecido como destituição subjetiva, desidealização da falta-a-ser ou queda das identificações.

A dominância do objeto a intervém sobre o mais-de-gozar. Isso ocorre porque o objeto a desloca a ênfase na cadeia S1-S2 como articulação necessária para mostrar o que ela efetivamente tem de impossível. É isso o que está escrito na parte inferior do discurso do analista: S2 // S1.

Qual é o objetivo de provocar o esvaziamento dos significantes-mestres? Certamente, não é a produção em série de sujeitos “desidentificados”, que acreditam não ter nenhuma dívida simbólica. A queda das identificações objetiva ancorar o sujeito na sua dependência original em relação ao significante, naquilo que a simbolização primordial do sujeito sexuado deve à morte. A operação analítica visa conduzir o sujeito à produção dos significantes primordiais que condicionam sua sujeição. Lacan conceituou este trajeto de queda das identificações como travessia da fantasia.

Segundo Cottet (1985, p. 76-78), a redução teórica do analista ao objeto a instaura uma profunda dessimetria entre o analisante e o analista. “O analista não opera com sua divisão, [...] com seu inconsciente”. Deste modo, Lacan varre definitivamente qualquer brecha que vincule a condução do tratamento analítico à contratransferência e à intersubjetividade. Se o analista não é sujeito, ele é objeto, objeto causa do desejo.

O discurso do analista tem sua especificidade localizada pela interrogação da utilidade do saber formal introduzido pela ciência, do saber cuja produção e articulação são reduzidas às necessidades de escritura. O saber científico serve para rechaçar o saber mítico, rechaço do qual a psicanálise participa. Entretanto, ele também serve para produzir o esquecimento de que, enquanto sujeitos, somos todos determinados ($/a) - “cada um de nós é determinado primeiro como objeto a” (Lacan, 1969-70, p. 152), ou seja, como objeto de gozo e não como significante puro.

No Seminário 17, Lacan resume o motor da investigação psicanalítica. Trata-se de “saber como aparece, em suplência à interdição do gozo fálico, algo cuja origem definimos a partir de uma coisa totalmente diversa do gozo fálico, que é situada e[...] mapeada, pela função do mais-de-gozar” (Lacan, 1969-70, p. 70).

Toda relação significante produz uma perda de gozo fálico, uma perda no nível do ser do sujeito, porque a relação entre S1 e S2 é um artifício decorrente de que o significante não foi feito para a relação sexual (Lacan, 1969-70). Em sua origem, o significante não significa nada (Lacan, 1955-56). Como falta-a-ser, o sujeito é, então, um objeto perdido. A função de acumulação dessa perda, própria ao mais-de-gozar, está ligada à origem, à entrada em ação do significante. O acúmulo de mais-de-gozar tem origem na separação entre o sujeito e seu valor libidinal ($ // a).

O conceito de objeto a permite uma articulação íntima entre o significante e o gozo porque inclui o gozo no funcionamento significante. Com a noção de discurso, Lacan introduz a ideia de que a relação entre a pulsão e o objeto, ou entre o significante e o gozo, é originária. Assim, traduz de um modo novo o problema deixado por Freud relativo ao final da análise: o fim “concerne sempre à relação do sujeito com o gozo e à modificação que pode ser feita nisso” pelo tratamento analítico (Lacan, 1969-70, p. 99). De que modo a operação analítica pode modificar a relação do sujeito com o gozo?

Segundo Cottet (1985), quando o analista funciona no lugar do Outro (A), tal como Freud, ou seja, como representante do pai, ele se torna uma invenção do analisando, um sujeito suposto saber. Exercer essa função é fazer com que a estrutura do desejo funcione sempre como desejo do Outro. Por essa via, a transferência se torna interminável porque, dividido, o sujeito engendra mais efeito de saber (S2) dirigido ao Outro. Consequentemente, o analista não é real, mas sempre uma suposição. Operar um tratamento analítico no âmbito do discurso do mestre (S1→S2), resulta na localização do gozo como impossível ao sujeito porque apenas o pai poderia alcançá-lo. Do lugar de exceção, o pai profere a lei que faz a castração incidir sobre todos os sujeitos. Isso os torna desejantes em relação ao lugar da exceção ().

No Seminário 17, Lacan mostrou que a crença no pai como exceção tem como efeito a impossibilidade de que o sujeito consiga castrá-lo. Assassinato não é castração porque, morto, o pai se torna mais forte do que vivo. Do assassinato decorre o amor pelo pai e é deste amor que procede uma certa ordem, a ordem fálica, cujo efeito é a impossibilidade de se alcançar o gozo todo. Mas daí também provém o desejo de alcançar este gozo. Para Lacan (1969-70), toda essa mitologia é apenas um saber com pretensão de ser apreendido como verdade e só serve a uma finalidade: esconder a castração do pai.

Freud não partiu da linguagem nem tampouco da castração aí situada. Por isso, precisou lançar mão do mito. Referia-se ao pai como privador do objeto primordial relativo à satisfação da pulsão. Por este caminho, jamais se toca a relação estrutural que o significante mantém com o gozo. Só quando se concebe essa relação como primária, anterior à operação paterna, é que se pode aceder ao gozo autoerótico.

No discurso da histérica, Lacan grafou o limite das análises freudianas: a reivindicação fálica. O que Freud (1937) nomeou como rochedo da castração - ponto de impasse ao qual chegou na condução das suas análises - corresponde à reivindicação como efeito do sujeito marcado pela interdição ($). Ao instaurar a falta de gozo, a proibição produz tanto o gozo impossível quanto o desejo de exceção. Isso tem consequências e esse é o aspecto teórico novo que Lacan traz: à impossibilidade de se obter um gozo absoluto a partir do gozo fálico corresponde um acréscimo de gozo como suplência. Trata-se da função do objeto a como mais-de-gozar.

Formalizar o discurso do analista representa, portanto, um avanço de Lacan em relação ao lugar ocupado por Freud no tratamento e também um giro teórico importante. Agir a partir do lugar do objeto a não faz do analista uma suposição, cuja capitonagem se presentifica nos significantes proferidos pelo analisante (Cottet, 1985). Ao contrário, a faz objeção à significação oriunda da cadeia significante, faz objeção ao imaginário. Deslocar o acento da operação analítica do encadeamento significante para privilegiar o mais-de-gozar intrínseco ao próprio funcionamento da cadeia implicará, doravante, ter como ponto de partida o que Lacan (1972-73) conceituou mais precisamente no Seminário 20 como substância gozante. Esse é o nível onde se situa o significante.

O discurso do analista mostra que a autoridade do significante-mestre se origina na satisfação obtida na própria articulação significante. Mostra que não há discurso desinteressado e que a verdade em jogo se fundamenta no gozo – “toda verdade é um enredo, uma fantasia, uma explicação que visa, essencialmente, um cálculo, uma extração de gozo, uma satisfação a retirar dali”. O que o discurso do analista ilumina é que “há sempre uma satisfação no discurso” (Coelho dos Santos, 2005, p. 146). Se tanto o objeto a quanto o S1 podem ocupar o lugar de agente de um discurso, isso quer dizer que S1 comporta gozo. Então, é possível afirmar que, como agente, a interpreta a mestria de S1. Denuncia que, de algum modo, a histérica tem razão: a identificação tem uma relação íntima com o gozo. Portanto, o mestre é castrado.

Para ocupar o lugar de objeto a, o analista precisa se extrair logicamente, em sua própria análise, como a. Esta passagem requer que ele também se despoje de todo o saber que esteja situado no lugar da verdade (Cottet, 1989). Encarnar a posição de dominância no discurso do analista, a posição de objeto a, requer que o psicanalista se separe da sua própria posição de objeto.

O objeto a, a angústia e o desejo do analista

O que é, afinal, essa posição discursiva cuja função de domínio é ocupada pelo objeto a? Tomarei como orientação a afirmação de Lacan de que a topologia da situação analítica implica um “ponto de disjunção e de conjunção, de união e de fronteira [ou seja, ‘de borda’], que só pode ser ocupado pelo desejo do analista” (Lacan, 1964, p. 153, grifo meu). Esta definição situa no mesmo ponto o desejo do analista e as operações de alienação e de separação, constitutivas da subjetividade. Ela será usada como guia para pensar o que Lacan quer dizer, no Seminário 17, quando localiza a dominância da operação analítica no analista situado como objeto a.

Segundo Coelho dos Santos (1994, p. 45), “a angústia é a legítima representante da pulsão de morte na vida psíquica”. Lacan (1954-55) retomou a teoria freudiana das pulsões e mostrou a ligação essencial entre a pulsão de morte e a estrutura significante através do funcionamento da máquina simbólica. Em seguida, conceituou o objeto a e o introduziu no funcionamento da linguagem. Identificou a estrutura do isso à do inconsciente e a estrutura do inconsciente à do sujeito – “ao nível do inconsciente, há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito” (Lacan, 1964, p. 29).

Pulsão, linguagem, isso, inconsciente e sujeito possuem a mesma estrutura de fenda que promoveu o surgimento da ciência e do sujeito modernos. O suporte da homologia que proponho é a função de corte executada pela introdução, no mundo, da função do significante sem qualidades, função que separa o significante de todas as cadeias de sentido originadas da tradição. É esta a razão que permite a Lacan afirmar que o sujeito da ciência é aquele sobre o qual a psicanálise opera (Lopes, 2008).

O significante é introduzido como traço unário ou identificação primordial e se caracteriza por possuir uma ligação causal com o objeto perdido freudiano, que Lacan conceituou como perda de gozo relativo ao funcionamento da linguagem. É também o lugar do recalque original que funda o inconsciente, o Urverdrängung. A relação primitiva e topológica da constituição subjetiva com a função do corte permitiu que Lacan definisse a experiência subjetiva que o inconsciente proporciona como “o um da fenda, do traço, da ruptura” (1964, p. 30) entre o sujeito e o Outro. A cisão entre o sujeito e o Outro, lugar de incidência do corte, é também o lugar da angústia. É o que justifica a afirmação de que o desejo, a lei e a própria angústia convirjam em direção ao mesmo objeto. A estrutura que faz com que a angústia, a lei e o desejo não sejam sem o objeto implica certo tipo de ligação condicional entre os termos, que conecta de um modo inédito uma coisa à outra.

O objeto a é o objeto da angústia. Lacan (1962-63) o define como resto auto-erótico destacado do corpo, peça indiferenciada, que não se sabe se pertence ao corpo do sujeito ou ao do Outro. Para que ela se coordene ao desejo como lei, é preciso a função paterna. O desejo do pai cria a lei do que se deve desejar porque “na origem, o desejo, como desejo do pai, e a lei são uma e a mesma coisa” (Lacan, 1962-63, p. 120). A metáfora paterna coordena parcialmente os restos de corpo ao “x” pelo qual o desejo do Outro, ou seja, a castração situada no nível da linguagem, se apresenta ao sujeito como completamente enigmática. Entretanto, o fato de o objeto a referir-se às perdas sofridas pela criança antes de sofrer a ameaça de castração proferida pelo pai é o que justifica que a parte do gozo que não se submeteu ao circuito das trocas simbólicas sempre se faça presente como estranha ao eu. O que está em jogo são objetos que não se coordenam pela hegemonia da função fálica. Esta função é responsável pela regência de todo o processo substitutivo decorrente da entrada em jogo da diferença sexual e também pela constituição de todos os sujeitos enquanto submetidos à lei do pai. Desejar é enveredar pelo caminho da lei fundada pelo pai (Lacan, 1962-63, p. 93). Os objetos a estão aquém da diferença sexual, “são objetos anteriores à constituição do objeto comum, comunicável, socializado” e correspondem às cinco formas de perda, que são os momentos de aparecimento do sinal da angústia. Os objetos oral, anal, fálico, olhar e voz não são “egoificáveis”. Isso quer dizer que eles nunca se tornam familiares ao eu. Eles


“são o resto do corte significante, resto da divisão do sujeito no campo do Outro, e é como resto execrado, odiado do Outro que são sempre reencontrados. Por isso, esse resto do Outro a que o sujeito se identifica não é passível de ser proposto ao reconhecimento do eu” (Coelho dos Santos, 1994, p. 48).


É porque não podem ser reconhecidos no nível dos processos egóicos que a descarga referida ao gozo desses objetos não pode ser feita pelo aparelho psíquico. Ela sempre confinaria com a dor. Como consequência, esse gozo rechaçado irá se encravar no sintoma. Portanto, faz-se importante considerar a presença da angústia no dispositivo analítico como “o modo essencial de comunicação do sujeito com o Outro, [como] o que lhes é comum” (Coelho dos Santos, 1994, p. 49). Ela é um sinal importante: o de que esse objeto irrecalcável surgiu no campo psíquico. Esta é a razão pela qual Lacan afirmou que a angústia não é sem objeto (1962-63, p. 87). Esta afirmação implica poder acolher a possibilidade de que o eu emerja reduzido a um desses objetos afetados pelo desejo. Nessa emergência, o eu estaria completamente despojado dos atributos ideais que constituem sua referência ao falo.

Segundo Coelho dos Santos (1994), com a teorização do objeto a, Lacan questiona a redução feita por Freud em relação à angústia em “Análise terminável e interminável” porque ela não permite escapar à lógica fálica. Para Freud (1937, p. 285), a angústia se restringe, em ambos os sexos, a uma atitude coordenada ao complexo de castração. Nos homens, ela se refere à “luta contra sua atitude passiva ou feminina para com o outro homem” e, nas mulheres, à inveja do pênis, que se traduz por “um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino”.

O conceito de objeto a permite que Lacan questione estas teses. Simultaneamente, convoca o desejo do analista a ouvir o sujeito quando ele aparece identificado ao objeto. Para isso, é imprescindível a consideração da angústia como evidência clínica do comparecimento no dispositivo analítico dos objetos que o ego não consegue reconhecer. Esses objetos não se endereçam ao ego. Eles se referem à relação do sujeito ao desejo do Outro, que é sempre enigmático para o sujeito. Portanto, o único modo de fazê-los entrar no tratamento analítico é tomá-los como endereçados ao desejo do analista (Coelho dos Santos, 1994), ao “desejo do Outro, na medida em que esse é o desejo correspondente ao analista como aquele que intervém como termo na experiência” analítica (Lacan, 1962-63, p. 68).O que é e como se constitui esse endereçamento do objeto ao desejo do Outro?

Freud (1915) definiu a pulsão através de quatro termos: Drang, a pressão (exigência de trabalho, pura e simples tendência à descarga); Ziel, a finalidade (obtenção de satisfação que requer a eliminação do estado de estimulação na fonte da pulsão); Objekt, o objeto em jogo, e Quelle, a fonte, a origem das pulsões (localizada nos processos somáticos que ocorrem em um órgão ou em uma parte do corpo). Lacan (1964) trouxe importantes contribuições para esse campo. Primeiramente, chamou a atenção para a observação freudiana de que a pulsão se satisfaz mesmo que o alvo (Ziel) esteja inibido. Neste caso, a sublimação questiona que a satisfação ocorra unicamente pela via do recalque e torna paradoxal o campo da satisfação porque coloca em jogo algo novo: no lugar do objeto ser tomado como perdido surge o objeto teorizado como impossível, mesmo que o aparelho psíquico não o reconheça como tal. O objeto é impossível porque nenhum objeto da necessidade pode satisfazer as exigências pulsionais. Por isso, a pulsão aprende que sua satisfação não está na apreensão do objeto, mas em seu contorno.

Se o objeto é impossível, qual é, então, o lugar do objeto na economia pulsional? Para responder a essa pergunta, Lacan usou dois termos da língua inglesa. Afirmou que o objeto é turn, o contorno, a borda da zona erógena por onde a pulsão circula, dá a volta, e que é trick, a “volta de uma escamoteação”, a volta ou o ato de contorno que faz desaparecer o objeto – “a pulsão de morte não se cumpre no nível do S1, senão que exige chegar até esse apagamento completo que se traduz por a” (Miller, 1986-87, p. 101).

A essência da montagem da pulsão que Lacan (1964) apresenta a partir da montagem freudiana mostra que o traçado da pulsão é o próprio ato que dá forma a uma hiância. O objeto, portanto, é esse cavo que o circuito pulsional faz aparecer. É porque o afeto não sofre a vicissitude do recalque que a angústia é a única tradução subjetiva possível ao objeto a (Lacan, 1962-63).  A pulsão é a montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica. E a transferência é, aquilo que, na experiência analítica, manifesta a atualização da realidade sexual do inconsciente. A realidade sexual do inconsciente é a de que não há no psiquismo “nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou como ser de fêmea” (Lacan, 1964, p. 194). A finalidade biológica da sexualidade é a reprodução, mas em relação a isso as pulsões são parciais. A essência da sexualidade é a de que, diante dela, todos os sujeitos estão em pé de igualdade. A integração da sexualidade à dialética do desejo depende do jogo do significante. Depende do que, no corpo, é aparelho e tem a ver com o que, da sexualidade, passa às redes do significante que, por isso mesmo, só se realiza de forma parcial.

A pulsão pode ser satisfeita sem que precise atingir seu alvo, se o alvo for definido como o emparelhamento que realizaria a finalidade biológica da reprodução. Então, ela é pulsão parcial e o alvo é sempre o contorno, o circuito, porque o objeto “é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável [...] por não importa qual objeto” que só é possível de ser subjetivado como perdido (Lacan, 1964, p. 170). É este contorno que permite que a contabilidade do gozo com a falta surja como mais-de-gozar.

Para Lacan (1964), o aspecto mais importante relativo a cada pulsão é o fato de que toda pulsão se estrutura em um vaivém. Ele comenta que, quando Freud declinou as vozes gramaticais que constituem o circuito pulsional, ele mostrou, pelos dois polos verbais (ver - ser visto, etc.), que o percurso das pulsões jamais pode ser separado de “sua reversão fundamental, do [seu] caráter circular”. Outro aspecto que também deve ser ressaltado é a importância de se fazer a diferença entre o circuito circular de uma pulsão e o que daí surge como novidade: o sujeito que não havia ali antes do circuito ter sido feito. “Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar seu curso singular. É somente com sua aparição no nível do outro [ou seja, do objeto] que pode ser realizado o que é da função da pulsão” (Lacan, 1964, p. 168-169). Onde esse circuito se engata? Ele é promotor de uma continuidade entre as diferentes pulsões?

Lacan introduz o objeto a como hiância que só pode ser contornada, uma vez que não há objeto da necessidade que possa responder à exigência de satisfação por parte da pulsão. Por esta mesma razão, uma pulsão parcial não pode engendrar outra. Não se trata de um progresso em espiral ou de um circuito em desenvolvimento. A passagem da pulsão oral à anal não se dá por maturação. Um circuito pulsional é sempre percorrido em descontinuidade com outro. Ele requer a “intervenção, o reviramento da demanda do Outro” (Lacan, 1964, p. 171). É no endereçamento ao Outro de uma questão sobre o seu desejo – Che vuoi? O que queres? - que o sujeito tem acesso à possibilidade de fazer da falta do objeto um modo de fruição peculiar. O sujeito goza com o vazio suplementando-o com um objeto que é o próprio sujeito, enquanto objeto parcial, na função de mais-de-gozar. A passagem do circuito da pulsão pelo Outro como campo do desejo faz surgir o Outro como campo do gozo e o sujeito fixado na posição de objeto do gozo do Outro.

É este endereçamento que permite que, do ponto de vista lacaniano, a questão da angústia seja tomada na relação transferencial. Nas palavras de Coelho dos Santos (1994, p. 50), a angústia deve ser tomada “no eixo das relações do sujeito da demanda analítica (o analisando e seu pedido) ao desejo do Outro, ou ao desejo do analista que é seu ato interpretativo”. Isso só é possível porque Lacan (1962-63) enfatiza a primeira definição freudiana da angústia: a angústia enquanto afeto. Nesse nível, ela é um representante afetivo da pulsão. Como representante, ela é corte, então, tem uma afinidade de estrutura com o sujeito. O afeto nunca sofre a vicissitude do recalque, “ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado” (1962-63, p. 23). O recalque incide apenas sobre os significantes que se conectam ao afeto, mas nunca sobre o afeto propriamente. Portanto, o afeto da angústia será “o efeito do corte significante ou do corte interpretativo do analista e se refere à queda de um objeto, que é um resto da articulação do sujeito ao significante” (Coelho dos Santos, 1994, p. 50). Este é o sentido de operar a partir da localização do objeto a como agente do discurso do analista.

A angústia é um fenômeno de borda porque se situa entre o gozo (fixado pela identificação fantasmática do sujeito ao traço unário) e o desejo (oriundo da operação de castração). Entre a identificação e a castração, a angústia é o ponto de origem do sujeito como não sabido, como traço apagado, “o que significa inconsciente, Unbewusste” (Lacan, 1962-63, p. 75-76). A angústia não é sem objeto. Sua substância surge como “aquilo que não engana” (Id. , p. 88). Mas a presença disso que não engana causa a dúvida que visa combater a certeza da presença do objeto. Afinal, o sujeito só entra em relação com o a quando a identificação que o constituiu como $ vacila e se mostra relacionada ao vazio que a linguagem cava ao se introduzir em um corpo (1+a), relacionada, portanto, ao recalque original.

Os objetos que o ego não consegue reconhecer são endereçados ao desejo do Outro, que também é a sua castração, e que no dispositivo Lacan nomeou como desejo do analista. Esse endereçamento visa tamponar a castração localizada no Outro. No entanto, essa operação é sinal de perigo para o sujeito porque realiza o enredo fantasmático que o fixa na posição de objeto, não do desejo, mas do gozo desse Outro. Por isso, Lacan sempre advertiu que a análise se diferencia do atendimento da demanda.

Por que se trata do gozo do Outro e não do desejo? Porque o sujeito nunca interpreta a castração do Outro como sendo a presença de um impossível estrutural, mas como falta. E se algo falta ao Outro isso é sinal de que ele goza com algum objeto. “Nesse lugar de falta, o sujeito é chamado a dar o troco através de um signo, o de sua própria castração”. Se a emergência do desejo do Outro ou de sua castração, é também “o momento da interpretação da castração” como falta, então, é aí que comparecem as peças destacadas do corpo, os objetos parciais. “Aquilo diante de que o neurótico recua não é a castração, é fazer de sua castração o que falta ao Outro. É fazer de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia da função do Outro” quando o Outro comparece como faltoso. (Lacan, 1962-63, p. 56).

É importante observar que, embora os objetos parciais sejam anteriores à entrada em jogo da função paterna, sua extração como mais-de-gozar depende do recalque. Os objetos a como mais-de-gozar requerem a castração, ou seja, a subtração de gozo que se faz presente na vertente discursiva S1-S2 e que é reinterpretada à luz da diferença sexual.

No Seminário 17, Lacan define o mais-de-gozar como o modo pelo qual o sujeito recebe sua própria mensagem de uma forma invertida. Ou seja, recebe o seu próprio gozo sob a forma do gozo do Outro. É disso que se trata quando acontece de a fantasia juntar a imagem do pai com o que de início é uma outra criança.O gozo do pai com o espancamento é apenas a metade da verdade. A outra, se encontra do lado do próprio sujeito que, na posição de objeto do gozo do pai, se torna o suporte de sua própria fantasia. Ele vem em suplência ao  como um bônus, um acréscimo. O sujeito suplementa a falha do Outro introduzindo ali a sua própria, recuperada em um objeto parcial tomado como objeto mais-de-gozar. O mais-de-gozar é uma operação executada sobre a interdição do gozo fálico, sobre o gozo do Outro marcado pela castração.

Portanto, quando a angústia surge no dispositivo analítico, isso quer dizer que a castração se fez presente e que o sujeito foi chamado a aí comparecer como objeto para tamponá-la. É por isso que a angústia deve ser tomada como endereçada ao desejo do analista. Somente pela intervenção do desejo do analista, a castração poderá ser interpretada como tal, fazendo aparecer aí o sujeito e um objeto. A intervenção do analista, tendo o objeto a como agente de seu discurso, permitirá o surgimento do mais-de-gozar ali onde o gozo comparece ligado a um objeto parcial. É por esta razão que Lacan afirma, no Seminário 10, que a função da análise se dá no espaço ou no campo do objeto parcial em jogo na fantasia. É através do recorte dos objetos parciais que a intervenção do analista pode fazer o objeto a operar no dispositivo a partir de sua função lógica, a de contornar o vazio onde o sujeito transforma em objeto a parte do ser, da qual abriu mão para se constituir como tal, para tamponar a castração do Outro.

Nome-do-Pai, objeto a, discurso do analista e desejo do analista

Lacan introduziu a categoria de desejo do analista justamente fazendo referência ao ser do analista e à sua operatividade no dispositivo analítico. Ele cunhou este termo para responder, do ponto de vista da ação empreendida pelo analista na condução de uma análise, ao mau uso da teoria e da técnica psicanalíticas pelos pós-freudianos. A teoria e a prática da psicanálise, tal como legada por Freud, se opõe frontalmente aos desvios tomados pela escolha da sugestão como técnica analítica. Desta escolha decorreram a manipulação da transferência, o abuso do poder que tal prática propicia e o forçamento educativo, isto é, a disseminação da crença na possibilidade da existência de um domínio subjetivo sobre o inconsciente (Cottet, 2005). Esses pontos situam o cerne das críticas feitas por Lacan em 1958. Creio, então, ser legítima a afirmação de que o termo desejo do analista tenha sido um dos pontos de partida para o diálogo de Lacan com a comunidade analítica pós-freudiana no que se refere à formação dos analistas e à transmissão da causa freudiana.

Lacan alinhou-se contra as teorias que pregavam a contratransferência, a intersubjetividade e o uso intelectual, no sentido imaginário, da palavra no ato interpretativo. Coelho dos Santos (2004a) observa que a noção de desejo do analista era uma alternativa à saída contratransferencial como solução para os problemas4 que “empurravam” os analistas a escolhas teóricas que passassem ao largo da transferência. Os analistas favoráveis à contratransferência5 observavam com frequência que os casos difíceis requeriam a presença do corpo do analista. Isto tornava urgente questionar se a intersubjetividade poderia comparecer como o modo mais indicado de se fazer esta inserção.

Freud (1937) fazia objeção a tais procedimentos. Lacan, por sua vez, considerava que o efeito da inserção do corpo do analista no dispositivo analítico, sob a forma do ego do analista, dava lugar ao apagamento da dimensão alteritária necessária e própria à relação analítica. Sua ênfase na tese da primazia do registro simbólico, distinto dos planos imaginário e real, responde a esse momento e a esses problemas. Além disso, retifica o campo próprio ao tratamento analítico.

Para Lacan, era fundamental colocar em jogo o ser do analista. Mas, ele considerava impróprio à manutenção do campo psicanalítico fazer confluir a ação do analista com a contratransferência, uma vez que, desde Freud, analisante e analista sempre foram situados de modo assimétrico. Instalar essa relação sob a égide da simetria era fazer dela um uso imaginário, uso que Lacan sempre repudiou e em relação ao qual Freud ficava atento, fazendo disso teoria e matéria para advertências.

Em “A direção do tratamento...”, Lacan critica a psicanálise americana por desconhecer o que, em relação à prática freudiana, poderia verdadeiramente ser chamado de tratamento psicanalítico. Se a condução não se mostra capaz de sustentar uma práxis autêntica, esta se reduz a uma direção de consciência, portanto, a um mero exercício de poder.

O termo desejo do analista surge neste texto para falar da questão do ser do analista, que se coloca na análise desde muito cedo. Lacan observa que quanto mais o analista estiver interessado em seu próprio ser, menos seguro ele estará no que se refere à sua ação. Ele lembra que a orientação que devemos à Freud é a de que “é preciso tomar o desejo ao pé da letra” (Lacan, 1998, p. 626). Isto significa reconhecer “a relação do desejo com essa marca da linguagem que especifica o inconsciente freudiano e descentra nossa concepção do sujeito” (Id., p. 627). Essa marca, identificatória, implica a presença do falo, “a identificação última com o significante do desejo” (Id., p. 633), que faz com que o desejo do homem seja irremediavelmente o desejo do Outro.

O campo de ação da interpretação está subordinado à função do significante, à determinação simbólica característica do sujeito em questão. Estar convencido disso é fator indicador do quanto um analista se deixa atravessar pelo discurso da psicanálise. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. Por isso, a doutrina do significante – tradução lacaniana da determinação psíquica descoberta por Freud – é o verdadeiro suporte da interpretação analítica. A direção do tratamento parte da retificação do sujeito em relação à realidade, dirige-se ao desenvolvimento da transferência e, só depois, dá lugar à interpretação. Para Lacan, a inversão dessa sequência levou os analistas a perderem o horizonte da psicanálise (1998, p. 603-604).

Do ponto de vista fenomenológico, a transferência aponta situações que parecem concernir às relações do eu com o mundo. No entanto, desde Freud se conhece a “aparência enganadora” do eu. Originalmente incluído no id, ele é também mundo externo (Freud, 1930 [1929]). Pensar a transferência de modo parcial engendra três tipos de desvios: o geneticismo, a relação de objeto e a noção de introjeção subjetiva, que leva à fantasia de devoração fálica. Nela, além de entrar como suprimento, o analista se situa em uma relação dual com o paciente. O total desconhecimento da natureza da incorporação simbólica leva os analistas “ao recurso ao ser como um dado real” (Lacan, 1998, p. 618).

Foi Ferenczi quem trouxe a questão do ser do analista. Concebeu a transferência como absorção pela economia do sujeito de tudo o que o analista “presentificava no duo como hic et nunc de uma problemática encarnada” (Lacan, 1998, p. 619). Os ingleses pensaram o fim do tratamento pela identificação do sujeito com o analista, porém sem chegarem a qualquer conclusão unívoca sobre se o objeto da identificação seria o eu ou o supereu. Melanie Klein mostrou a homologia entre sujeito e objeto e a patologia da propensão à qual o sujeito é impelido em um mundo onde suas necessidades são reduzidas a valores de troca. Mas, apesar disso, ela não foi além da identificação do sujeito aos objetos fantasísticos. Não pôde ver que a patologia da propensão só encontra seu valor pela mortificação que o significante impõe à vida quando a reduz ao número (Id., p. 620). Sendo um sujeito como qualquer outro e, portanto, não estando a salvo desta patologia, como o analista poderia ajudar o paciente? Imagina-se que ele “deva ser um homem feliz”, pois é a felicidade o que lhe pedem. Como poderá dá-la se ele não a tiver?

Penso que o cerne do debate de Lacan em 1958 foi retomado em 1965, em “A ciência e a verdade”, que é também a retomada, de um modo novo, do diálogo com a ciência moderna iniciado por Freud em “A questão de uma Weltanschauung”. É um debate que articula a psicanálise ao campo da ética. Implica saber como a psicanálise deve responder aos efeitos do advento da ciência moderna sobre o sujeito que ela mesma engendra, o sujeito da falta-a-ser, que já sabe que o projeto humanista de felicidade é um projeto fracassado.

Em 1958, Lacan afirma que o analista deve responder à falta-a-ser do sujeito com o desejo do analista e não com qualquer outra coisa que compartilhe o sonho de felicidade ou de simetria porque “o progresso humanista [...] não satisfez as aporias da felicidade” (Lacan, 1998, p. 620-621). Freud chamou a atenção para o fato de que “a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída nos planos da ‘Criação’” (Freud, 1930 [1929], p. 95). Por isso, Lacan conclui que, se é na relação com o ser que o analista assume seu nível operatório, “cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista” (Lacan, 1998, p. 621).

Freud introduziu o conceito de desejo fundado no desconhecimento do sujeito em relação a si próprio. Definido como incestuoso, o desejo sofre a vicissitude do recalque. Por isso, se realiza sem se satisfazer. Deste modo, o conceito de desejo remete, de saída, à dessimetria, à clivagem presente na constituição subjetiva e à desarmonia existente entre sujeito e desejo. É por isso que o dispositivo analítico não só induz ao surgimento dessa distância como também opera com ela, alargando-a. Ao separar o enunciado e a enunciação, o analista dá nova forma à demanda, introduz o mal entendido que permite questionar o desejo e a relação do sujeito com o desejo, relação diante da qual naturalmente recua porque é fundamentalmente inconsciente. O imaginário tem seu valor na constituição do desejo, mas é no campo do simbólico que o conceito ganha sua definição como desejo do Outro. O desejo nasce alienado a uma fórmula - Che vuoi? – que constitui o sujeito como desejante, falta-a-ser, falta endereçada ao Outro.

O termo desejo do analista reintroduz a dessimetria existente entre o desejo do neurótico e o desejo daquele que se propõe a dirigir um tratamento analítico. O próprio conceito de desejo já chama a atenção para a estrutura sobre a qual se assenta o tratamento analítico – a estrutura da falta-a-ser, da qual o neurótico nada quer saber. Portanto, com a categoria de desejo do analista, Lacan colocou em questão a análise dos analistas. Se o desejo fundamental é o desejo de dormir, o desejo do analista precisa constituir uma exceção em relação a esse ponto. Precisa ser um desejo de despertar da alienação constitutiva do desejo como desejo do Outro.

Penso que a introdução do termo desejo do analista, em 1958, proporcionou a Lacan a possibilidade de reinserir a estrutura cortante da psicanálise no seio da comunidade analítica. Uma espécie de ‘refundação’ da psicanálise pela lembrança da estrutura mínima do inconsciente, a estrutura do desejo. A proposta de Lacan de que se formule “uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista” (Lacan, 1998, p. 621, grifo meu) guarda uma homologia com a reinclusão do Édipo por Freud nos anos trinta (1933 [1932]) e tem a mesma estrutura do axioma lacaniano de 1965, “a psicanálise é essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai” (1998, p. 889). Proponho que se trata de um mesmo debate sobre a natureza da estrutura do sujeito moderno, sujeito clivado, bem como do papel da psicanálise no mundo. Esse debate se desdobra em três tempos superpostos, que organizo do seguinte modo:

  1. Freud: a reinclusão do Édipo no campo do saber da ciência como prova de que não se pode abrir mão totalmente das ilusões porque elas são estruturais;
  2. 1958 - a reinserção, feita por Lacan, da dimensão simbólica da análise e da natureza edípica do desejo relativa à falta-a-ser, à falha central onde o sujeito se experimenta como desejo. A novidade é o termo desejo do analista, nunca usado por Freud, como o operador dessa reinserção através da interpretação analítica comandada pela lógica do falo. Tomado como desejo do Outro, o desejo do analista é o que permite o surgimento do discurso do inconsciente.
  3. 1965 - a reintrodução do Nome-do-Pai na consideração científica por meio do conceito de objeto a, também inexistente em Freud. Com este conceito, Lacan reintroduziu no dispositivo analítico a presença do analista tão requisitada pelos pós-freudianos. Enquanto objeto a, causa do desejo, o analista é uma presença que não pode ser reabsorvida de modo algum. Ele encarna a parte do gozo do analisante que não foi simbolizada. A partir desta operação o sujeito pode se separar de suas identificações e extrair o modo de gozo só apreensível pelo circuito pulsional e por suas coordenadas de linguagem.

Defendo a tese de que, ao formalizar o matema do discurso do analista, Lacan reuniu esses três momentos. Na parte superior do discurso (a→$) encontramos invertidas, as letras que também compõem o matema da fantasia (). O fato de estarem invertidas, separadas pela flecha, e de a se situar como agente, tem como consequência a histerização artificial do discurso (Lacan, 1969-70, p. 31). Acossado pela causa, o sujeito barrado produz os significantes-mestres que orientam a formalização da fantasia cujo enredo é sempre edípico. Se o objeto a é causa do desejo, então a é relativo ao ponto onde a metáfora paterna falha em sua operação de significação fálica do desejo do Outro. Ele traduz a impotência da identificação ao pai e é o que vem em suplência a essa falha. Isso tem como efeito a introdução da distinção entre os níveis da demanda e do desejo, o que abre as portas ao inconsciente como pulsão, ou seja, ao gozo.

Um outro modo de dizer isso é pelo apontamento da parte inferior do discurso do analista, onde o significante-mestre (S1) encontra-se completamente separado do saber (S2) engendrado pela articulação entre eles. O efeito da reintrodução do Nome-do-Pai como causa sexual é o esvaziamento do gozo contido nos significantes-mestres, o que é o mesmo que dizer que se trata da redução da fantasia ao funcionamento pulsional, da verificação pelo sujeito do funcionamento pulsional na falha central onde ele se experimenta como desejo. A dimensão do desejo do analista é tão subversiva quanto a própria introdução da psicanálise no mundo por Freud. Implica o analista como homem de desejo. Entretanto seu desejo deve estar articulado ao insuportável para que ele não recue diante do ponto de insuportável de cada um.

No diálogo da psicanálise com a ciência está em questão a relação fundamental do analista com a dimensão política. O inconsciente é a política da psicanálise e também aquilo com que um analista tem sempre que lidar. Se, após uma análise, um analista nada souber sobre a dialética que o enreda e o compromete com as vidas que o procuram, como poderá se envolver numa prática que o faz pagar com seu próprio ser? O conselho que Lacan nos deixou quanto a isso é o de “que renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (1998, p. 321).

Minha tese é a de que o discurso do analista reune e resume, sob a forma de um matema, os três tempos, referidos acima, do diálogo da psicanálise com a ciência, iniciado por Freud e consolidado por Lacan no decurso de seu ensino. Além disso, acrescento que o âmbito do próprio Seminário 17, serve como porta de entrada para um quarto tempo desta conversação, à qual Lacan responderá com o seu último ensino. Localizo o ponto de partida para esse novo tempo do debate na formalização do discurso do mestre contemporâneo e do discurso do capitalista, que não trabalharei aqui.

No que se refere à operatividade da psicanálise definida como reintrodução do Nome-do-Pai na consideração científica, mostrei que a teoria dos discursos foi o ponto de chegada do segundo ensino de Lacan. Além disso, esta teoria também condensa, como um quiasma, o debate constante e necessário entre a psicanálise e a ciência. Correlacionei o discurso do analista à noção de desejo do analista e defendo as seguintes teses:

  • O desejo do analista é o germe do objeto a, localizado no Seminário 17 como agente do discurso do analista, e também o seu operador, se ele for pensado como uma posição subjetiva que sempre recusa o que lhe é oferecido pelo paciente no dispositivo analítico porque sabe que “não é isso”;
  • O discurso do analista é a formulação amadurecida, conceitual e lógica do desejo do analista, é a redução do desejo do analista à sua lógica essencial.

Notas

  1. Este trabalho integra a pesquisa da tese de doutorado em teoria psicanalítica “O desejo do analista e o discurso da ciência”, desenvolvida no PPGTP/IP/UFRJ, orientada pela profa. Dra. Tania Coelho dos Santos, com o fomento da CAPES e defendida em 2007.

  2. Este tema foi amplamente desenvolvido em outro trabalho (Lopes, 2009), que retomo parcialmente aqui.

  3. O esquema utilizado encontra-se publicado em Laurent, 1997, p. 37.

  4. Segundo Coelho dos Santos (2004a, p. 69), trata-se dos problemas enunciados pelo uso do termo borderline, estabelecido por Adolph Stern para nomear manifestações clínicas, tais como: narcisismo, hemorragia psíquica, hipersensibilidade extraordinária, rigidez psíquica e física, reação terapêutica negativa, sentimentos constitucionais de inferioridade, insegurança orgânica ou angústia, masoquismo, uso excessivo de mecanismos projetivos, dificuldades no uso do teste de realidade, particularmente nos relacionamentos interpessoais. A autora também se refere ao uso do termo por dois outros autores: PhyllisGreenacre, o usa em relação à predisposição constitucional à angústia; Hélène Deutsche, o redefine como personalidades as if, apoiada no falso self de Winnicott, ambos, aproximando-o de uma patologia do caráter.

  5. Sándor Ferenczi desenvolveu “procedimentos terapêuticos ativos” que deveriam ser utilizados quando e onde uma longa tentativa de análise não obtivesse êxito em penetrar as estruturas do ego. Ele “acreditava que o analista devia dar afeto a esses dificílimos pacientes, com a finalidade de resolver os problemas patológicos pelo acesso a suas experiências pré-traumáticas. Para tanto, assumia e desempenhava certos papéis na relação de transferência designada para influir sobre o processo mental e emocional do paciente. Descreveu esse enfoque procurando demonstrar como o analista pode, conscientemente, criar uma atmosfera de facilidade na situação analítica. Sua tese consiste em que o contato direto com o paciente, por intermédio da interpretação, é insuficiente nos casos de grave distúrbio, e que, além disso, torna-se necessária uma aproximação mais direta do substrato infantil do paciente” (Alexander, Eisenstein, Grotjahn, 1981, p. 481, 33, 35-36).

    Money-Kyrle entende que, no caso de alguns psicóticos, antes que a análise possa ser iniciada, o analista precisa “dar corpo” ao objeto ideal em relação ao qual estes pacientes podem formar uma relação, não sendo suficiente interpretar os esforços do paciente para forçar este papel ao analista (ELF, 2002, p. 88, n. 8).

    Paula Heimann, por sua vez, sustenta a tese de que a resposta emocional do analista à situação analítica representa uma importante ferramenta de seu trabalho, desde que não seja intensa (sic!). Ela deve ser extensiva, diferenciadora e móvel (Ibid., p. 16).

    Annie Reich inclui no termo contratransferência “todas as expressões do analista que caracterizam o uso da análise em termos de acting out” (Ibid., p. 22)

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Recebido em: 14/04/2009; aceito em: 22/07/2010.
Received in: 04/14/2009; accepted in 07/22/2010.