O encontro de Marie de la Trinité, uma mística cristã, com Jacques Lacan
The meeting of Marie de la Trinité, a Christian mystic, with Jacques Lacan


Ana Paula Corrêa Sartori
Psicanalista
Doutora em Teoria Psicanalítica – PPGTP/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Membro da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo
Correspondente da Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise
apcsartori@uol.com.br

Resenha do livro: TRINITÉ, Marie de la. Carnets, Les grandes grâces, tome I, Paris, Éditions du Cerf, 2009, 536 pp.

 

Neste ano de 2009, as Éditions du Cerf, em Paris, publicou os Carnets, de Marie de la Trinité, um livro de 536 páginas, das 3.250 páginas manuscritas por ela, na forma de diários. Estes Carnets espirituais se dividem em cinco tomos, dispostos da seguinte maneira: Les grandes grâces; Revêtir le sacerdoce; Du sacerdoce à la filiation; Le mystère de Paternité; En holocauste sur l’autel.

Marie de la Trinité (1903-1980), nascida Paule de Mulatier, era mística, dominicana, e foi analisanda de Lacan durante um período de sua vida.

No primeiro tomo, As grandes graças, aborda-se a vida desta mística, suas experiências místicas, denominadas de “graças”, e destaca-se sua relação com a psicanálise, em especial, sua análise com o Dr. Jacques Lacan.

Para se compreender melhor a história e a personalidade de Marie de la Trinité, foi feita uma pesquisa de sua correspondência com duas pessoas em especial: com a madre Saint-Jean, fundadora dos Dominicanos missionários dos campos, e com o padre Antonin Motte, seu confessor, além da minuciosa pesquisa de seus diários.

O itinerário místico-espiritual de Marie “começa no ápice, pela graça misteriosa, para em seguida, precipitar-se na aflição psíquica” (Trinité, 2009, p.14). Esta evolução não é tão comum aos místicos, uma vez que, com a maioria deles, o percurso se inicia nas angústias e aflições e culmina no êxtase místico. Contudo, sua experiência espiritual mostra-se interessante do ponto de vista psicanalítico, não apenas por seu contato com Jacques Lacan, mas também porque esta experiência “se situa na junção da vida espiritual e da vida psíquica e coloca o problema de sua relação” (Trinité, 2009.).

O pai de Marie era industrial e foi cônsul na Bélgica. Sua mãe era dona de casa. Marie é a caçula de cinco filhos. Sua mãe ficou grávida dela após a perda de um bebê. Durante a gravidez de Marie, sua mãe achou que teria um menino, que se chamaria Paul. Contudo, quando nasceu Marie, ela lhe deu o nome de Paule (por ser o feminino de Paul) Marie Aimée (Amada).
Sua educação foi baseada nos valores cristãos e nas boas maneiras. Ela escreve, em sua autobiografia, que sempre se sentira apartada da família. Até seus sete anos de idade apresentou diversos problemas de saúde, e era muito irritadiça. Queixava-se da falta de um maior contato afetivo com sua mãe, uma vez que, desde muito pequena, tanto ela quanto seus irmãos foram entregues aos cuidados de empregadas domésticas.

Apresentava problemas nos estudos. Desde o início, ainda na alfabetização, mostrava uma “incapacidade de pensar” (Trinité, 2009, p.18). Isto lhe dava muita vergonha. Era uma moça afetuosa, mas arredia. Não se sentia bem com as pessoas, nem com sua família. Sentia-se bem apenas com Deus.

Em sua autobiografia, escrita quando tinha quarenta anos, descreve sua vida, que ela dispõe em três “colunas”: “a primeira é dedicada à vida corporal e social, a segunda à vida mental e afetiva, a terceira à vida espiritual – se as duas primeiras enumeram suas perdas, a última se apresenta como a coluna dos ganhos, que contrabalançam com todo o negativo” (Trinité, 2009, p.19).

A puberdade de Marie iniciou-se precocemente, aos dez anos e meio, e isto representou para ela uma “catrástofe” (Ibid.). Aos treze anos ela foi para a Itália, como interna do Sacré-Coeur. Distanciou-se de sua família, por vontade própria e pelo desejo de estar junto das religiosas. Ela sente que Deus “se inclina em sua direção” (Trinité, 2009, p.29).

Aos quinze anos, morando na Itália, ela escreve para sua mãe dizendo sobre seu desejo em tornar-se religiosa. Nesta época, seus pais não consentem. Ela queria entrar para o Carmelo, assim como Tereza D’Ávila, mas o padre Périer a encoraja a ir para uma nova fundação dominicana. Mesmo não se identificando com esta congregação, Marie, em função de seu voto de obediência ao seu confessor, no verão de 1929, parte para Champagne-sur-Loue. Nesta comunidade religiosa, ela conhece a madre Marie de Saint-Jean, a fundadora dos Dominicanos missionários dos campos, e, em 11 de agosto, Marie “faz a experiência de uma graça de união ao Pai” (Id., Trinité, 2009, p.21). Enfim, no dia 26 de junho de 1930, Marie entra para a vida religiosa, indo viver na congregação religiosa dos Dominicanos do campo.

Levando uma vida de jejuns e orações, após algum tempo, ela apresenta problemas de saúde, observados principalmente por seu isolamento de todos. Assim, precisa ser internada em Paris, num estado que ela chama de “estado de holocausto”: “meditação sobre o mistério e a perfeição da bem-aventurada Virgem Maria e São José” (Trinité, 2009, p. 36).

Seu primeiro psiquiatra a diagnostica como neurótica obsessiva, mas ela não segue o tratamento com ele. Inicia um tratamento com um médico de nome Nodet, que procura tratar sua “penitência alimentar” e a ligação desta com a castidade de Marie. Este tratamento não surte bons resultados, o que a leva a consultar-se com outros psiquiatras em Paris, até que um deles a encaminha para Lacan.

Seu primeiro encontro com Lacan aconteceu em três de abril de 1950. Ela seguirá em análise com ele por três anos, e escreve um diário deste tratamento analítico.

Mas o que faz com ela entre em análise com Lacan? É que “contrariamente aos seus colegas [de Lacan], que consideravam o voto de castidade da religiosa era o ponto nevrálgico do tratamento, Lacan tinha compreendido rapidamente que o nó estava no voto de obediência” (Trinité, 2009, p. 45). Além disso, o psicanalista jamais tentou abolir ou interpretar a escolha pela vida espiritual da mística, conforme relata a própria Marie neste fragmento de uma carta:

Não há grande coisa a dizer do próprio tratamento; senão que, no lugar de me confinar em Freud, como os precedentes doutores, este percorre, continuamente, no curso das sessões, todas as escalas da natureza humana [...]. Eu estou em segurança com ele, pois ele compreende as coisas espirituais e não as elimina como os precedentes, ao contrário (Carta de marie de la Trinité a madre Sait-Jean, de 29 de novembro de 1950).

Ela apresenta melhoras sensíveis, empreende novos estudos, inclusive, estudos “sobre problemas psíquicos da vida religiosa” (Trinité, 2009, p.47) e estudos de psicologia e psicanálise. No entanto, a relação com Lacan se torna conflituosa e, no verão de 1951, ela procura outro psicanalista. Comunica isto a Lacan por carta, e ele lhe responde, escrevendo:

Minha cara Irmã, vós me escreveis uma carta bem heterogênea. Vós estais livres para todas as vossas iniciativas, ainda que, durante a análise, essas iniciativas sejam mais ou menos contra-indicadas. Eu não me oporei àquela que vós falastes em vossas últimas linhas. Mas eu gostaria de ter uma entrevista antes: a mesma entrevista que projetei ter convosco na entrada. Que Deus vos guarde. (Carta de Lacan a Marie de la Trinité, de 21 de setembro de 1951; Trinité, 2009, p. 49).

A relação de Marie com Lacan segue seu curso, assim como outros tratamentos da mística, e, principalmente, sua relação mística com Deus. Isto pode ser lido em seus Carnets. Uma leitura imperdível para os psicanalistas, uma vez que Lacan, mais tarde em seu ensino, no Seminário 20, Mais, ainda, dirá que, quanto ao tema da mística, não se trata de crer ou não em Deus, mas de crer no gozo da mulher, “no que ele é a mais” ao gozo fálico (Lacan, 1972-73, p.103). E ele diz ainda: “E por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (Ibid.).

 

Referência Bibliográfica

Lacan, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.

 

Texto recebido em: 03/07/2009
Aprovado em: 20/07/2009